Capa do Diário de Notícias de 11 Julho 2020 – Entrevista a Victor Ângelo

Entrevistas e artigos publicados no Diário de Notícias entre 25 de julho de 2020 e 03 de jun de 2022

Índice

03 JUN 2022 – Ucrânia: olhar para além dos cem dias da agressão

O presidente Zelensky tem sublinhado que a guerra só acabará com recurso à diplomacia. Tem razão. Precisa de construir um acordo de paz com o agressor. Não será fácil. O acordo não poderá premiar o que tem sido uma clara violação da lei internacional, uma sucessão de crimes de guerra, de destruição e de atos de pilhagem. Este é o grande dilema, que faz de qualquer processo de mediação um quebra-cabeças. Neste cenário, um acordo será apenas possível entre uma posição de força e outra de fraqueza. Esta é uma conclusão dramática. Leva à procura do esmagamento ou da humilhação do adversário.

À partida, dir-se-ia que o prolongamento das hostilidades avantaja o lado mais forte. A coragem e a determinação dos ucranianos não seriam suficientes para responder eficazmente a uma ofensiva prolongada, conduzida com uma brutalidade desmedida.

É nesse contexto que as ajudas externas são fundamentais. Nem os EUA nem os países da UE podem deixar a Rússia de Vladimir Putin derrotar a Ucrânia. Se isso acontecesse, a paz, a segurança e a democracia na Europa ficariam gravemente comprometidas. Agora seria a Ucrânia, amanhã poderia ser a Polónia, a Lituânia, ou qualquer outro país do nosso espaço geopolítico. Ou continuaríamos, simplesmente, a viver lado a lado com um vizinho sempre pronto para nos causar dano.

Assim, cada bloco deve assistir a Ucrânia com os meios disponíveis. Do lado americano, foi agora decidido fornecer um arsenal de armas de tecnologia avançada e de longo alcance. As admoestações vindas de Moscovo, no seguimento dessa decisão de Joe Biden, encontraram resposta no texto que o presidente assinou esta terça-feira no New York Times: não se anda à procura de uma guerra entre a NATO e a Rússia. Trata-se, isso sim, de permitir aos ucranianos dispor dos meios indispensáveis para o exercício do seu direito de legítima defesa.

Do lado europeu, o pacote de sanções aprovado esta semana no Conselho Europeu deve ser visto de modo positivo. Vai tão longe quanto o consenso o permite. O essencial é que seja finalizado sem mais demoras – a Hungria continua a levantar obstáculos – e aplicado a um ritmo acelerado.

Mais importante ainda é o acordo entre a UE e o Reino Unido que torna impossível aos navios que transportem produtos petrolíferos russos assegurar a sua carga nas praças de Londres e do resto da Europa. Sem esses contratos de seguro, as grandes companhias marítimas deixam de ter condições para operar ao serviço das exportações russas. A experiência com o Irão mostra que uma medida desse tipo reduz acentuadamente a exportação do petróleo. Esta é certamente uma das sanções até agora com maior impacto.

Como já várias vezes referi, as sanções têm fundamentalmente três objetivos. Expressar uma condenação política. Reduzir a capacidade financeira que sustenta a máquina de guerra. E desconectar a Federação Russa das economias mais desenvolvidas, para realçar que há uma conexão entre o respeito pela lei internacional e a participação nos mercados globais.

As sanções deverão fazer parte de uma futura negociação de normalização das relações. Mas só poderão ser levantadas quando o Kremlin deixar de ser visto pela Europa e pelos seus aliados como um regime imprevisível e ameaçador.

Para além das armas e das sanções, será necessário continuar a apoiar financeiramente a Ucrânia. Este apoio é um assunto potencialmente delicado, numa altura de crescimento económico relativamente anémico na Europa e quando o aumento do custo de vida começa a ser uma preocupação maior. Mas é o preço que temos de pagar para manter a nossa estabilidade e segurança. Trata-se de um esforço que vai durar algum tempo. Mais tarde, quando se entrar na fase de negociações, os mediadores terão de incluir na agenda a questão das compensações de guerra e do financiamento da reconstrução da Ucrânia.

Na realidade, neste 100.º dia da agressão, estamos perante uma situação bem complexa. Os cenários futuros, sobretudo para as próximas três semanas, devem incluir várias preocupações. Mas, para já, os desafios prioritários são quatro: reforçar de imediato a capacidade de defesa de Ucrânia; aprofundar o isolamento e debilitar as finanças públicas russas; manter a unidade entre nós; e continuar a insistir na diplomacia da paz.

27 MAI 2022 – O ativismo digital num quadro de incertezas

Participei esta semana num webinar sobre “Internet e Geopolítica”. A pergunta no centro dos debates era muito direta: uma internet global, universal e aberta é possível?

A pergunta provinha das associações da sociedade civil que militam pela liberdade digital. E que seguem a linha das Nações Unidas: em junho de 2020, António Guterres propôs um Roteiro para a Cooperação Digital, com o objetivo de se conseguir que no final da década cada pessoa possa aceder à internet a um custo mínimo e sem entraves.

A realidade é muito distinta. Neste momento, existem dois universos digitais paralelos. O internacional, essencialmente norte-americano, construído à volta de plataformas que fazem parte do nosso quotidiano. E o chinês, numa reprodução taco a taco da constelação ocidental. Nós podemos inscrever-nos nas plataformas chinesas, mas os residentes na China não têm acesso às redes internacionais, que estão bloqueadas por Beijing. Logo, a resposta à pergunta central só pode ser negativa. O acesso à internet é, nos regimes autocráticos, limitado ou proibido, por razões políticas.

Para além dos apelos ao multilateralismo, das novas “rotas da seda” e dos progressos em matéria de comunicações e transportes, a verdade é que estamos a caminhar de modo acelerado para uma fase histórica de fragmentação e rivalidades declaradas entre blocos de países. Na área digital, essa competição centra-se nas questões da inteligência artificial, das nuvens de dados, da cibersegurança, da espionagem, das narrativas políticas concorrentes e também da vigilância sobre os cidadãos.

Os detentores do poder, seja ele qual for, utilizam cada vez mais as redes sociais para influenciar a opinião pública, manipular o discurso político e criar uma interpretação da realidade que lhes seja favorável. Donald Trump foi exímio nessa arte. Hoje, Narendra Modi é o dirigente no ativo que é seguido pelo maior número de pessoas, cerca de 175 milhões. Modi sabe que as imagens atraem atenção se forem intuitivas, dinâmicas, coloridas e empáticas. Em Portugal, António Costa tem à volta de 266 mil seguidores no Twitter. Não será muito, mas no nosso país o que continua a pesar é a presença frequente nos canais televisivos de sinal aberto. Já a conta oficial no Twitter do presidente Zelensky atinge 6,2 milhões de subscritores. O líder ucraniano tem demonstrado uma notável capacidade de comunicação através dos meios digitais.

A título de curiosidade, note-se que Cristiano Ronaldo tem cerca de 445 milhões de seguidores no Instagram, Lionel Messi 329 milhões e Khaby Lame, um influenciador italiano de origem africana, é seguido por 136 milhões através do TikTok. O que aconteceria se um deles se lançasse no ativismo político?

Já no respeitante ao confronto com a Rússia, parece-me evidente que irá contribuir para o aprofundamento das fraturas geopolíticas. Ninguém sabe como poderá evoluir a guerra de agressão contra a Ucrânia ou a enorme crise despoletada entre a Rússia, os Estados Unidos e os vários países da NATO. É, todavia, claro que continuamos numa rota de escalada, num contexto de grande complexidade e excecionalmente preocupante. Por um lado, não se pode aceitar que se viole sistematicamente a ordem internacional, tal como definida na Carta das Nações Unidas, nem que se desrespeite impunemente as instituições que são os pilares da paz e da segurança, como por exemplo o Tribunal Internacional de Justiça. Nem aceitar que a lei internacional, base das relações entre os Estados, deixe se aplicar às grandes potências, dando-se antes a primazia aos seus interesses geoestratégicos, na velha conceção da força como alavanca principal do poder. Por outro lado, existe um risco muito sério de uma nova confrontação global e em alta escala.

Neste contexto, a minha sugestão é simples: a sociedade civil pode utilizar as plataformas digitais para fazer pender a balança para o lado do direito, da moderação e da paz. E começar pela promoção de acordos internacionais de não-agressão cibernética a infraestruturas críticas, essenciais para o quotidiano de cada cidadão.

20 MAI 2022 – ONU: um guião para a paz na Ucrânia

Já passou mais de um mês desde o envio de uma carta aberta ao secretário-geral da ONU sobre a situação na Ucrânia, assinada por antigos altos funcionários. Entretanto, António Guterres esteve em Moscovo e em Kiev, e conseguiu fazer avançar a resposta humanitária das Nações Unidas. A dimensão política continua, porém, a ser determinada noutras sedes. De um modo geral, as palavras vindas do Ocidente têm estado a acentuar a possibilidade de uma vitória ucraniana. Declarações desse tipo tendem a agravar o confronto. É verdade que tem havido um aumento considerável do apoio em armamento à Ucrânia e que isso é positivo, ao permitir redobrar os esforços de legítima defesa. Mas, publicamente, deve-se falar apenas de legítima defesa e, em tandem, da urgência da paz.

Neste contexto, faz todo o sentido que o secretário-geral seja o porta-estandarte de um processo político que reconheça, simultaneamente, o direito à legítima defesa, às indemnizações de guerra, bem como o imperativo de um acordo de paz, garantido pelas Nações Unidas.

Uma nova carta aberta deveria agora insistir nessa linha de atuação. Um rascunho foi preparado esta semana. Fui um dos que consideraram o texto demasiado vago, quando o momento exige clareza e uma assunção firme das responsabilidades. Por isso e para já, não haverá uma nova missiva da nossa parte.

O importante é mostrar que o pilar político das Nações Unidas tem a autoridade necessária para propor uma saída da crise que contrarie a escalada da agressão militar e impeça a destruição da Ucrânia.

A agenda política da ONU poderia ser construída à volta de quatro linhas convergentes de intervenção.

Primeiro, procurando estabelecer pausas temporárias dos combates, em várias localidades consideradas vulneráveis, de modo a proteger os civis e a facilitar a assistência humanitária. Nessa visão, as pausas seriam monitorizadas por um contingente de observadores das Nações Unidas, com um mandato do Conselho de Segurança. A proposta de criação de um grupo de monitores internacionais seria apreciada por muitos, embora se reconheça que encontraria imensos obstáculos para ser aprovada.

Segundo, mantendo um apelo permanente, repetido até ser ouvido, para que cessem as hostilidades e se aceite um processo de mediação liderado pela ONU, que poderá incluir a preparação de uma conferência sobre um novo quadro de cooperação e segurança na Europa.

Terceiro, lembrando continuamente os Protocolos de Genebra sobre os limites da guerra. A grande preocupação é a defesa das populações civis. Os ataques indiscriminados são proibidos; os atos de violência militar para criar terror são um crime de guerra; as infraestruturas indispensáveis à sobrevivência das comunidades devem ser poupadas; certos tipos de munições são absolutamente interditos, incluindo as bombas de fragmentação, as armas químicas e biológicas. É igualmente altura de sublinhar as regras sobre o tratamento dos prisioneiros de guerra, agora que os defensores do último reduto em Mariupol se renderam às tropas russas. Essa rendição é um acontecimento altamente político e simbólico, que pede uma referência especial, em defesa dos direitos desses prisioneiros. E de todos os outros, claro.

Ainda sob esta rúbrica, parece-me essencial reiterar que a ONU já está empenhada na documentação dos possíveis crimes de guerra e que procurará, na medida do possível, aumentar os seus esforços nessa matéria.

Quarto, tendo presente as divisões existentes no Conselho de Segurança e considerando esta guerra a maior ameaça dos últimos 77 anos, o secretário-geral poderia tentar constituir um Grupo de Contacto sobre o conflito. Um grupo assim congregaria vários países influentes que estariam em constante ligação com Guterres na procura de soluções. É uma maneira de multiplicar a capacidade de intervenção do secretário-geral e de criar um círculo de apoio que o proteja dos ataques políticos. Permitiria, além disso, mostrar que a crise tem um âmbito internacional e não apenas europeu.

13 MAI 2022 – Ucrânia: quais os deveres da China?

No início da semana, Olaf Scholz reuniu-se por videoconferência com Xi Jinping. Um dia depois, foi a vez de Emmanuel Macron. Imagino que houve acerto de posições entre os dois líderes europeus, apesar do encontro presencial entre ambos só ter tido lugar umas horas após a reunião virtual do chanceler alemão com o presidente chinês. Xi Jinping está convencido que o reforço da unidade europeia permitirá, a prazo, uma maior autonomia da Europa em relação aos EUA. Por isso, deve ter comparado as intervenções de Scholz e Macron, para ver se vão no mesmo sentido, quanto ao essencial.

A grande questão, numa extensa agenda de assuntos a tratar entre a China e a Europa, é a da guerra na Ucrânia. Xi voltou a repetir frases que já havia pronunciado anteriormente – a segurança da Europa deve estar nas mãos dos europeus; é fundamental construir uma nova estrutura de segurança na Europa que tenha em conta as preocupações de todas as partes; a China tem agido diplomaticamente para que a paz volte à Ucrânia, a começar pela insistência num cessar-fogo e no respeito pela integridade territorial do país; continua a promover as soluções multilaterais, por reconhecer o papel central da ONU; e, finalmente, a China defende a globalização dos mercados. À partida, estas declarações são positivas. Mas que significam em termos concretos, quando se trata de pôr termo à agressão russa contra a Ucrânia e de travar os riscos de alastramento do conflito?

Scholz, Macron e o conjunto da liderança europeia têm de ir mais longe e confrontar sem ambiguidades Xi Jinping: que pretende a China fazer para contribuir com todo o seu peso político e económico para que a Rússia de Vladimir Putin cesse as hostilidades e respeite a soberania do seu vizinho? As videoconferências têm de ser mais exigentes e explorar o que significam, na prática, as grandes declarações de princípios. A gravidade da situação internacional requer um diálogo que vá além do faz-de-conta.

A China, para além do seu estatuto de membro permanente do Conselho de Segurança da ONU, é uma potência global, por muito que isso custe a alguns dirigentes ocidentais. Ambas as realidades, em Nova Iorque e no mundo, dão à China direitos e responsabilidades. E no caso da violação da soberania da Ucrânia, a China tem o dever de contribuir ativamente para o regresso da paz e da lei internacional. Não pode utilizar o argumento de que se trata apenas de um problema europeu e que por isso cabe aos europeus resolvê-lo. E nós também não devemos insistir nessa linha.

Estamos, isso sim, perante um conflito que pode pôr em causa a paz e a segurança internacionais de modo dramático, nomeadamente se houver recurso a armas não-convencionais. E que já tem um impacto bastante alargado sobre a segurança alimentar, as cadeias de abastecimento, os preços da energia e outras dimensões que levam ao empobrecimento de milhões, e ainda mais acentuado nos países economicamente mais frágeis.

No essencial, a minha mensagem é que a Europa tem de falar de modo mais assertivo com a China. Xi diz que é pela paz e pela ordem internacional, pela centralidade das Nações Unidas. Pergunte-se-lhe, então, como traduz esses admiráveis axiomas num processo de paz para a Ucrânia.

Entretanto, decorreu ontem em Tóquio a cimeira anual entre a UE e o Japão. Charles Michel e Ursula von der Leyen lideraram a delegação europeia. E começaram por lembrar que o Japão é o parceiro estratégico mais importante para a Europa na região do Indo-Pacífico, o que deve ter despertado uma certa atenção em Beijing. A intensificação das sanções contra a Rússia foi um dos temas centrais da discussão. Há uma convergência de vistas entre Bruxelas e Tóquio sobre o assunto. Mas também aqui teria sido estratégico discutir como envolver a China. Essa é hoje uma das grandes interrogações. Não chega escrever no comunicado final que a UE e o Japão irão “aprofundar o intercâmbio com a China”, nomeadamente nas áreas políticas e de segurança. Isso é mera conversa para chinês ver.

06 MAI 2022 – Democracia na época do instantâneo digital

A Associação para a Promoção e Desenvolvimento da Sociedade da Informação (APDSI), uma instituição cívica que tem contribuído ao longo dos anos para o crescimento da cibernética em Portugal, organiza hoje, no Convento da Arrábida, uma reflexão sobre as democracias na era digital. Ou seja, um debate sobre o futuro do exercício do poder político face aos avanços extraordinariamente rápidos na área das tecnologias da informação, que irão aprofundar ainda mais a época do instantâneo, como chamo ao período que vivemos.

O acesso imediato à informação sem referência ao contexto, a abundância de dados disponíveis em cada momento, o verdadeiro em competição com o falso, os progressos na inteligência artificial, tudo isso acabará por pôr em causa a representação política tal como a temos conhecido. Poderá igualmente prejudicar seriamente a credibilidade das instituições da governação, da administração da justiça, da representação e da comunicação social, e criar novas oportunidades de manipulação da opinião cidadã.

Como sempre, será a questão do controlo do poder que estará em jogo. São apenas as tecnologias e os métodos de atingir esse fim que mudam. Há cerca de noventa anos, os extremistas mobilizaram as populações graças à utilização com grande habilidade da radiodifusão. Agora, trata-se do aproveitamento engenhoso das plataformas digitais e da repetição ad infinitum do que é conveniente para quem detém a autoridade ou quer chegar ao poder, independentemente da veracidade do que é contado. Cria-se assim uma realidade enviesada, que em política serve dois objetivos: a destruição da integridade e da imagem do adversário; e a consolidação do poder nas mãos de quem dele se apropriou. Essa apropriação, nas nossas democracias ocidentais, faz-se primeiro por via eleitoral e depois pela manipulação da informação e os jogos de espelhos. Viktor Orbán é um exemplo concreto, entre vários. Ele sabe que estar no poder e perder as eleições só deve acontecer aos ingénuos.

A acessibilidade das plataformas digitais torna-as um terreno fértil para a propagação das ideias populistas. Esses movimentos, construídos à volta de um líder que combina carisma, arrebatamento e culto da personalidade com slogans simplistas, têm à sua disposição, nesta era digital, os meios que lhes permitem explorar massivamente três linhas de ação política. Uma, que passa pela criação e amplificação dos medos coletivos que depois utilizam como bandeiras de luta. Outra, que consiste na descredibilização das instituições e dos adversários, que são demonizados como “políticos profissionais”. E a terceira, que tenta subverter os princípios constitucionais pelo recurso aos referendos populares sobre temas fraturantes, com recurso a questões redutoras, redigidas de modo tendencioso.

Tudo isto põe em causa a democracia representativa. Mais facilmente ainda, quando a prática democrática passou a depender e a estar dominada pelo líder de cada grande partido e a representatividade parlamentar perdeu o seu significado, por resultar apenas da lealdade pessoal e da bajulação sem reservas. Não existe, então, qualquer ligação entre o deputado e o seu círculo eleitoral, numa altura em que as redes sociais promovem exatamente o contrário e tornam tudo mais pessoal e direto. Daqui resulta uma crescente desconexão entre o eleitor e o eleito, o que explicará uma boa parte da apatia que muitos cidadãos ressentem perante os processos eleitorais. Paradoxalmente, um maior nível de informação, possível por causa das redes digitais, leva muitos a abster-se, por não se identificarem com os menus prontos-a-votar das escolhas feitas pelos partidos.

Um outro fenómeno ligado à abundância de informação tem de ver com a fragmentação política. Através das redes sociais, cada pessoa tende a identificar-se apenas com um pequeno círculo que pensa do mesmo modo e acaba por se fechar nessa ronda de contactos. Isto leva à proliferação dos movimentos de opinião. No futuro, a governação terá de ter em conta essa tendência. Ou seja, deixará de ser possível governar eficazmente com 50% do eleitorado mais um. Surgirão, estou convencido, coligações mais amplas e relativamente díspares, mas necessárias para garantir a representatividade de vários segmentos da sociedade e a estabilidade governativa. A revolução digital acabará por abalar a cena política convencional.

29 ABR 2022 – Manter o contacto com o agressor, enquanto se apoia a Ucrânia

Numa situação de conflito entre Estados, cada palavra conta. A experiência também me ensinou que é melhor começar por colocar perguntas e ouvir atentamente as respostas, antes de se aventar uma qualquer hipótese de solução. É verdade que saber ouvir é uma arte difícil. As pessoas importantes consideram que o seu estatuto fica afetado se forem sóbrias em palavras.

No caso concreto da agressão à Ucrânia, a chave está nas mãos de Vladimir Putin. Mesmo sabendo que temos pela frente um líder manhoso, deve-se insistir para que nos diga qual é a sua proposta de saída da crise, uma proposta que terá de ser realista e respeitar a soberania dos países vizinhos.

Ao mesmo tempo e sem hesitação, é essencial que a pergunta seja acompanhada por uma referência cristalina aos princípios básicos que definem o bom relacionamento internacional e que estão perfeitamente estatuídos na Carta das Nações Unidas.

Dizer-lhe que se compreende as suas preocupações obsessivas em relação à segurança externa do seu país não é boa política. Essa frase enfraquece seriamente quem a pronuncia. Há sim que responder a essas obsessões com uma referência aos mecanismos internacionais existentes, de que a Federação Russa é signatária, e que permitem um tratamento pacífico dos diferendos entre os Estados. Foi isso que António Guterres fez, quando no Kremlin, e esteve bem.

Por outro lado, quando se fala das tragédias humanitárias, em Mariupol ou noutras localidades, a resposta deve ser igualmente clara: apenas o fim da agressão militar permitirá acabar com o imenso sofrimento que está a ser infligido às populações ucranianas. Ao dizer-se isso, está-se a fazer a ligação entre as questões humanitárias, os crimes de guerra e a problemática política. Para as Nações Unidas, o objetivo último consiste na promoção de um quadro político que permita restaurar a paz e a boa vizinhança.

O cuidado com as palavras também me leva a dizer que não se trata de modo algum de uma guerra entre o Ocidente e a Rússia, nem mesmo de uma guerra por procuração. Declarações proferidas esta semana, nomeadamente no contexto da reunião convocada pelos americanos na Alemanha, destinada a reforçar o apoio logístico à Ucrânia, foram imprudentes. Não deveriam ter sublinhado que o objetivo último é o de enfraquecer a Rússia, enquanto potência militar. O que deve ser dito é simples e precisa de ser expresso sem equívocos: a Europa, os EUA e os outros aliados estão a ajudar a Ucrânia a defender a sua integridade territorial, num processo de legítima defesa.

Os governos participantes nessa reunião poderiam ter acrescentado algo mais: a Rússia de Putin representa uma ameaça que precisa de ser contida. Se o apoio à Ucrânia falhar, a possibilidade de serem amanhã os próximos alvos de uma agressão semelhante é um receio fundado.

Estamos numa crise que se vai prolongar, com riscos e custos enormes. À medida que esses custos se acumularem, a tendência do lado russo será para o recurso a meios mais violentos e imensamente destruidores. Essa opção já faz parte dos cálculos de Putin, como o fez entender de novo esta semana em São Petersburgo. A melhor maneira de evitar o pior desfecho desse cenário passará por um aumento excecional da ajuda à Ucrânia e pela aprovação de uma nova ronda de sanções que diminua de modo determinante as receitas financeiras da Rússia e a isole ainda mais.

Em paralelo, cabe ao secretário-geral da ONU insistir na necessidade de uma solução política. O seu ponto de partida e de chegada será sempre a Carta das Nações Unidas. Depois, deverá frisar que uma crise como a atual comporta riscos muito sérios para a paz e a estabilidade internacionais, explicando claramente alguns desses riscos e as consequências dramáticas que acarretariam para todas as partes. Finalmente, será importante sublinhar que a única via razoável de saída passa pela organização de um processo político que leve a uma conferência para a paz, a reconstrução e a estabilidade no leste europeu. Ao proceder assim, estará a reforçar a credibilidade do pilar político das Nações Unidas e a trabalhar para evitar que resvalemos para um abismo de proporções insondáveis.

22 ABR 2022 – Que esperar das Nações Unidas?

Charles Michel esteve agora em Kiev. A visita seguiu-se às de outros dirigentes europeus, incluindo as efetuadas pelas presidentes do Parlamento, Roberta Metsola, e a da Comissão, Ursula von der Leyen.

Um dos primeiros a fazer a deslocação a Kiev foi Peter Maurer, presidente do Comité Internacional da Cruz Vermelha, que esteve na capital da Ucrânia a 16 de março, numa altura em que a cidade estava ameaçada de muito perto. E diz-se que o Papa Francisco está a preparar uma viagem semelhante.

Independentemente dos resultados práticos destas deslocações, há que reconhecer a sua importância simbólica. Numa situação de conflito, o simbolismo de certas iniciativas é fundamental para reforçar a legitimidade da causa que uma das partes defende, bem como para escorar a sua narrativa. Legitimidade e narrativa são essenciais nos conflitos como o da Ucrânia, que decorrem sob o olhar vivo da opinião pública mundial, graças à coragem de muitos jornalistas, ucranianos e estrangeiros.

Politicamente, cada visita procura evidenciar que existe solidariedade com o país vítima da guerra de agressão. Sublinha-se, assim, que a invasão decidida por Vladimir Putin é inaceitável. E permite reafirmar, ao mesmo tempo, a vontade de contribuir para a solução política de uma crise que não pode, de modo algum, ser resolvida pela força. Chegou a altura de demonstrar que o uso e abuso da força já não são aceites como fonte de direitos na cena internacional.

No caso de Maurer, tratou-se de fazer ressaltar a dimensão humanitária. É essa a razão de ser da Cruz Vermelha Internacional. Maurer, que de Kiev seguiu para Moscovo, sabe que liderar significa estar incansavelmente na linha da frente e em contacto com quem detém o poder.

Para as Nações Unidas, a resposta humanitária deverá ser igualmente uma via de abordagem. Por duas razões. Primeiro, porque se está perante uma crise humanitária de grandes dimensões.

Segundo, porque pode abrir as pontes diplomáticas necessárias para a mediação do conflito. Assim tantas vezes aconteceu, sem que se tenha comprometido a independência e a neutralidade do trabalho humanitário, cujo objetivo supremo é salvar vidas. Sempre defendi que deve existir uma separação nítida entre a ação humanitária e as iniciativas políticas. Mas também sempre advoguei que se pode construir um processo político a partir da intervenção humanitária.

É nessa linha que se insere a carta enviada esta semana a António Guterres, e assinada por um grupo de cerca de 250 antigos altos funcionários da ONU. A tragédia desencadeada por Putin mina seriamente a credibilidade política das Nações Unidas. Com base nessa inquietação, a principal mensagem dessa carta visa apelar para o máximo empenho pessoal e visível do secretário-geral na procura de uma solução para a crise. Perante a gravidade da situação, a função dá-lhe a autoridade moral para o fazer e exige-lhe a obrigação de ser claro, objetivo e resoluto.

No entender dos signatários, o secretário-geral deve repetir alto e bom som, e sem cessar, que uma agressão deste tipo viola a ordem internacional e desestabiliza perigosamente os equilíbrios existentes. Não se trata apenas de condenar as ações de um membro permanente do Conselho de Segurança. É essencial expressar um nível extraordinário de preocupação e, ao mesmo tempo, mostrar uma dinâmica inultrapassável e incansável de vai-e-vem entre as capitais que contam.

Primeiro, para insistir numa cessação das hostilidades – da agressão russa, melhor dizendo – e, depois, para propor um plano de paz. Um plano que permita indemnizar as vítimas, punir os responsáveis pela agressão e os crimes de guerra, e iniciar o processo de reforma do Conselho de Segurança. No fundo, o desafio é duplo: promover a paz e adaptar a ONU ao mundo de hoje.

Ao assinar a carta, tive presente três interrogações. Primeiro, sobre a complexidade da função de secretário-geral das Nações Unidas, que é, acima de tudo, uma incumbência eminentemente política. Segundo, sobre a necessidade de ter uma organização global atualizada, que corresponda ao mundo de hoje e aos desafios que temos pela frente. Terceiro, sobre a boa liderança, que exige um equilíbrio muito astuto entre a prudência e a coragem.

PS: Depois de receber a mensagem e de ver como a parte russa reagiu à mesma, Guterres mexeu-se e escreveu a Putin e a Zelensky.

15 ABR 2022 – Macron tem de saber ganhar

a primeira volta da eleição presidencial francesa, cerca de 56% dos eleitores votaram de modo radical, contra o sistema. Um resultado assim revela um mal-estar social profundo, num país que é um dos pilares da UE e membro permanente do Conselho de Segurança das Nações Unidas. É preocupante. Uma análise mais fina reforça a nossa inquietação – em cada três cidadãos, um votou pela extrema-direita. Ou seja, optou por uma visão retrógrada do que deverá ser a França de amanhã, pelo ultranacionalismo xenófobo e a favor de um líder prepotente, que se considera um salvador da pátria. E fê-lo com a convicção intransigente de quem vê o mundo a preto e branco, sem matizes nem respeito por ideias diferentes das suas. Os radicais são assim.

A primeira volta sublinhou, de novo, a fragilidade das democracias. Quando Donald Trump chegou ao poder, acreditou-se que a ameaça que ele personificava era muito própria do sistema institucional americano. Uma situação similar, na Europa, parecia improvável. Entretanto, agora a 3 de abril, o autocrata Viktor Orbán voltou a ser reeleito, pela terceira vez, como primeiro-ministro da Hungria. Mas esse facto foi mais ou menos varrido para um canto, com a desculpa que a Hungria pesa pouco no xadrez das relações europeias e que Bruxelas saberia como responder. Desta vez temos a França, uma peça-chave no nosso tabuleiro, e Marine Le Pen a bater à porta do Palácio do Eliseu.

Le Pen percebeu, ao longo dos últimos cinco anos, que não é com vinagre que se apanham moscas. Moderou o discurso, arquitetou promessas sociais aliciantes, embora irrealistas, e, acima de tudo, postou na empatia, no contacto pessoal com os eleitores. Vestiu a pele de uma democrata, mas continua, na sua essência, a ser uma extremista primária e perigosa. E, como todos os extremistas, é incapaz de ter uma visão de conjunto, de saber interpretar a complexidade dos problemas, reduzindo tudo a duas ou três ideias simplistas, que servem de pau para toda a obra.

É um erro considerar que Orbán ou Le Pen, ou gente da mesma prática política, são apenas uns democratas iliberais. São, isso sim, cada um à sua maneira, verdadeiras ameaças contra a democracia. Ponto final.

Certos intelectuais gostam de falar de “democracia liberal”. Mas esse é um conceito bacoco, utilizado apenas para soar a erudito. Ou há democracia, sem outros qualificativos, mas com tudo o que isso implica em termos das liberdades, da diversidade de opiniões e da separação dos poderes, ou não há. É isso que hoje se não vive na Hungria e que amanhã poderá acontecer em França. O mesmo se deve dizer da exaltação do nacionalismo populista e étnico, que é um atentado contra a consolidação da UE. Esses exaltados têm uma visão meramente oportunista e mercantil do projeto comum. No caso de Le Pen, as medidas que propõe levariam fatalmente à saída da França da UE, se fossem levadas a cabo.

No interesse da democracia em França e da unidade europeia, é fundamental que Emmanuel Macron ganhe a eleição. Pensar que a sua vitória são favas contadas poderá levar à derrota. Vive-se, em França, como noutros países, um período de incertezas, de frustrações e de crítica vulgar das elites. O frente-a-frente televisivo de 20 de abril será certamente muito importante. Mas poderá não ser tão decisivo quanto o foi o debate equivalente, há cinco anos, quando Macron pôs a nu a ignorância que Le Pen trazia na bagagem. É agora preciso ir mais longe. Macron tem de falar de modo concreto e evitar as ideias vagas e a verborreia. O fluxo palavroso é uma das suas fraquezas.

Ele, como outros políticos que conheço, confundem loquacidade com boa comunicação. É um erro. A política hoje faz-se falando a pessoas reais dos seus problemas e das suas aspirações, das dificuldades do presente e do futuro com otimismo. Tudo isso, com serenidade e um profundo toque humano. Barack Obama mostrou ser um mestre nessa arte. Esperemos que Macron o consiga igualmente fazer. É vital barrar Marine Le Pen.

08 ABR 2022 – De Bruxelas a Pequim e Nova Deli, em tempo de atrocidades

Na nossa parte do mundo, esta foi uma semana de viragem para pior. Estamos hoje numa situação bem mais delicada e perigosa. As atrocidades cometidas em Bucha, nos arredores de Kiev, e noutras localidades, chocaram quem delas tomou conhecimento e prejudicaram gravemente a possibilidade de um diálogo entre os países ocidentais e o regime de Vladimir Putin. Agora, e sem se pronunciar a palavra que todos temem, poderemos estar numa confrontação decisiva entre os dois lados.

Um dos dois terá de ceder. Seria um engano não pensar assim. E, claro, o recuo não pode ser do nosso lado. Mas seria um erro ainda maior não agir de modo consequente. Isto quer dizer que as sanções precisam de entrar num novo patamar, que vise minar de modo determinante a capacidade económica e financeira do Kremlin. É fundamental ir mais além do carvão e deixar de importar todo o tipo de produtos petrolíferos. As estatísticas são claras: em 2021, a UE importou da Rússia 74 mil milhões de euros de petróleo e de produtos derivados do petróleo, enquanto as importações de gás natural somaram 16,3 mil milhões. Há quem na UE se oponha a esse tipo de sanções, dizendo que provocaria uma onda inflacionista e dificuldades insuportáveis para muitas das nossas empresas. Estudos credíveis mostram que tudo isso é gerível, tendo em conta o grau de sofisticação das nossas economias e os recursos que podem ser mobilizados. Mas, mais ainda, deve-se compreender que a obtenção da paz e a salvaguarda do futuro da Europa não podem ser obtidos sem alguns sacrifícios no curto prazo.

É igualmente essencial isolar ainda mais a Rússia. Foi essa a questão central das preocupações europeias, aquando da cimeira com a China, na passada sexta-feira. Durante a reunião, a mensagem pareceu cair em ouvidos moucos. Os dirigentes chineses insistiram na excelente cooperação que existe entre eles e Putin. Mas, nos dias seguintes, o discurso público em Pequim evoluiu. Passou a ser mais positivo em relação à Europa. Quem tem dinheiro, tem amigos, e os chineses sabem que a UE se transformou no seu maior parceiro comercial. Não podem perder o mercado europeu. O comércio entre ambos cresceu 27,5% em 2021, apesar das dificuldades ligadas à pandemia, ao aumento dos custos dos transportes marítimos, às interrupções nas cadeias de circulação de componentes e a um clima geopolítico desfavorável. Também não podem perder os investimentos vindos da Europa. Ursula von der Leyen e Charles Michel souberam fazer valer a carta dos investimentos. O acordo nessa matéria, aprovado em Bruxelas, em finais de 2020, tem estado congelado desde então, o que irrita a parte chinesa. Um maior afastamento da China em relação à Rússia poderá fazer avançar o descongelamento.

Para além da vertente mercantil, a China quer uma UE forte, na esperança de assim conseguir desamarrar, política e militarmente, a Europa dos EUA. Isso explica que seja construtiva na maneira como se refere à UE e, ao mesmo tempo, siga e amplie a retórica da Rússia, no que respeita à NATO. Independentemente dessa narrativa, o importante é fazer ver a Pequim que uma proximidade excessiva em relação a Putin joga contra os interesses a prazo da China. E não se trata dos interesses económicos apenas, por muito importantes que sejam as matérias-primas extraídas do vasto território russo. A deterioração da imagem internacional do ditador russo não pode ser ignorada por um país que ambiciona ser olhado como um dos polos da nova ordem global e um farol de paz.

No meio de tudo isto, seria um descuido grave esquecermo-nos da Índia. Narendra Modi investe num relacionamento próximo com a Rússia, para evitar que esta caia apenas para o lado chinês. A rivalidade com a China e a inimizade contra o Paquistão são os dois eixos principais da política externa indiana. Não quer, por isso, dar uma qualquer oportunidade à China de beneficiar de uma relação comparativamente mais privilegiada com a Rússia. A UE não pode descurar, nesta matéria, o diálogo com a Índia, franco e em paralelo com o que deverá continuar a manter com a China.

01 ABR 2022 – O desassossego dos intelectuais confusos

Alguns dos nossos intelectuais andam algo confusos, nomeadamente quando se trata da guerra na Ucrânia. Queixam-se, por exemplo, da comunicação social e dos meios políticos, que estariam empenhados na perseguição dos que não seguem o que designam por “uma cartilha do pensamento único”. Pretendem, mesmo, que existe por aí um ataque contra “a faculdade de pensar”. Deve ser um ataque muito sub-reptício, pois as televisões e os jornais estão cheios de opiniões de todo o tipo e das teorias mais tolas e enviesadas, incluindo algumas das suas.

Essa manifesta confusão leva-os a tentar explicar o inaceitável, a todo o custo e com pretensas abordagens geopolíticas e históricas, que foram desenvolvidas durante a Guerra Fria e estão hoje em boa parte obsoletas. E o inaceitável é a violação das normas internacionais pelo regime antidemocrático e agressor que Vladimir Putin personifica. E esquecem também os crimes de guerra e contra a humanidade que as tropas de Putin levam diariamente a cabo, conforme a Amnistia Internacional nos lembrou esta semana. Crimes que já estão a ser objeto de investigação por parte do Tribunal Penal Internacional de Haia, bem como documentados pelo Alto-Comissariado da ONU para os Direitos Humanos, com base numa resolução dos Estados-membros, aprovada a 4 de março.

Esses intelectuais acrescentam ao seu desalinho ideológico várias investidas contra instituições intergovernamentais a que Portugal pertence e que são fundamentais para garantir a nossa defesa, segurança e prosperidade. Ao procederem assim parecem não entender a gravidade da crise em que a nossa parte da Europa se encontra, face ao revanchismo de Putin e à sua agressão contra o povo da Ucrânia, incluindo contra os ucranianos russófonos.

Quero acreditar que o alinhamento político com o adversário faz parte de uma atitude visceral de oposição à ordem vigente e ao senso comum, uma filosofia da contrariedade de bom tom, própria de quem se julga mais esperto do que os demais. Num momento como o de agora, poderá haver quem veja nesse posicionamento algo próximo da traição aos interesses nacionais. Penso ser exagerado caracterizar essa gente desse modo, porque não estamos numa guerra aberta contra nenhum Estado e, por isso, não é apropriado falar de traição.

Para entender a Europa de defesa de agora, seria bom lembrar que os países do antigo espaço de influência soviética, que aderiram à NATO no final dos anos 90 e já neste século, poderiam ter soberanamente optado por uma aliança com a Rússia. Moscovo havia criado uma estrutura militar paralela à NATO, em 1992, atualmente conhecida pelas iniciais CSTO – Organização do Tratado de Segurança Coletiva. Ora, na parte europeia, apenas a Bielorrússia e a Arménia fizeram essa opção. A esses Estados e à Rússia, juntaram-se apenas três países da Ásia Central, antigas repúblicas soviéticas: o Cazaquistão, o Quirguistão e o Tajiquistão. Os outros países, e são vários, ou ficaram de fora ou preferiram a Aliança Atlântica. O chamado alargamento da NATO foi, na realidade, o resultado de uma série de decisões nacionais soberanas. Por muito mediático que seja, que autoridade tem um pensador português para dizer aos povos polaco, letão, romeno ou qualquer outro, que não deveriam ter feito a escolha que fizeram? A mesma pergunta pode ser dirigida a Vladimir Putin.

À teoria das zonas estratégicas de influência, uma construção analítica que data do início dos anos 60 do século passado, mas que teve a sua origem nas movimentações coloniais e imperialistas do século XIX e que foi consolidada na Conferência de Yalta, em 1945, as Nações Unidas propõem uma nova visão. Uma alternativa que tem como fundamento o respeito dos direitos humanos e das normas universais, a resolução pacífica dos conflitos e a cooperação internacional. Isto poderá soar a idealismo e irrealismo geopolítico, sobretudo quando se tem presente a maneira de agir de Putin ou a competição estratégica entre os EUA e a China. Mas esse sim, deverá ser o estandarte dos intelectuais progressistas e de todas as pessoas razoáveis.

25 MAR 2022 – Que urgências trazem Joe Biden à Europa?

O presidente norte-americano está na Europa, a título excecional e urgente, o que mostra bem a gravidade da crise atual, causada pela política retrógrada, criminosa e imperialista de Vladimir Putin. Independentemente dos resultados das reuniões em que Joe Biden participou, na NATO, no G7 e no Conselho Europeu, vejo na sua deslocação três objetivos centrais, que procuram responder ao contínuo agravamento da situação na Europa.

Trata-se, primeiro, de enviar uma mensagem cristalina sobre o empenho dos EUA na defesa dos seus aliados europeus. Este aviso é particularmente relevante no momento em que se começa a ouvir em Moscovo uma retórica hostil contra a Polónia. Dmitry Medvedev publicou esta semana um ataque frontal contra a liderança política desse país – e estas coisas não acontecem por acaso. Fazem geralmente parte de um plano de confrontação, que, numa fase inicial, procura criar desassossego no seio da população visada, minar a autoridade da sua classe política e, simultaneamente, formatar a própria opinião pública russa. Assim, a deslocação de Biden a Varsóvia, após Bruxelas, faz parte da mensagem americana. Pensar que Putin exclui a hipótese de entrar num conflito armado contra um país da UE, ou mesmo da NATO, seria um misto de ingenuidade e imprevidência. Estamos, infelizmente, numa espiral em que tudo pode acontecer. O guarda-chuva americano precisa de ser recordado de modo evidente. A visita de Biden serve, antes do mais, esse propósito.

Um segundo objetivo está seguramente relacionado com o aprofundamento das sanções contra a Rússia, procurando, ao mesmo tempo, olhos nos olhos, evitar dissensões entre os líderes europeus. O tema, nomeadamente no que respeita ao gás e petróleo, é muito sensível. Vários países europeus têm expressado fortes reservas, para não dizer oposição, a uma possível suspensão das importações energéticas. Há dias, o chanceler alemão voltou a afirmar que uma medida dessas provocaria uma recessão profunda em toda a Europa. Mas agora, com Putin a decidir que essas importações terão de ser pagas em rublos, ao câmbio que ele quiser fixar, o embargo passa a ser uma questão premente. Só pode haver um aceleramento nesse sentido.
Trinta dias depois do início da agressão militar e de escalada crescente dos atos de guerra, a aprovação de um novo pacote de sanções de grande alcance não pode ser escamoteada. Os europeus têm de aceitar que o risco vindo do Kremlin é muito elevado e não diz apenas respeito à Ucrânia. É fundamental enfraquecer ao máximo a economia que alimenta a máquina de guerra russa. Isso acarretará naturalmente custos para nós. Mas o custo maior, crescente e permanente, é a manutenção de Putin no poder. Ao ponto a que as coisas chegaram, torna-se cada vez mais difícil imaginar um futuro de paz na Europa, paredes meias com o regime russo atual. A nossa convivência pacífica passa pela democratização da Rússia, algo que cabe aos seus cidadãos resolver.

Um terceiro objetivo relaciona-se com a necessidade de acelerar a ajuda material ao esforço de defesa ucraniano. Os EUA acabam de aprovar um montante de mil milhões de dólares em equipamento e armamento defensivo. Essa assistência precisa da facilitação dos europeus para poder chegar tão rapidamente quanto possível ao seu destino. Além disso, deve ser acompanhada de meios adicionais, provenientes dos países europeus. Na véspera dos encontros de Bruxelas, a UE anunciou uma contribuição militar adicional de 500 mil milhões de euros. A disponibilização de tudo isto é extremamente urgente. A resistência aos invasores, que é um ato de legítima defesa, faz-se com coragem e com meios sofisticados.

Custa-me ter de escrever um texto assim. Mas há que ser claro: existe, repito, um risco de confrontação armada na nossa parte da Europa. Para o evitar, é preciso prestar um apoio sem reservas à Ucrânia, sermos estratégicos, e firmes, nas nossas respostas económicas, financeiras e políticas contra Putin e estar prontos para aceitar sacrifícios. Em resumo, o momento exige visão, realismo, determinação, subtileza, verdade e disponibilidade de meios.

18 MAR 2022 – Cinco teses à volta da crise com a Rússia

1. Não é aceitável obter ganhos políticos com base na violação da lei internacional. Vladimir Putin e o regime russo atacaram a soberania e a integridade territorial da Ucrânia, iniciando uma guerra, em flagrante violação da Carta das Nações Unidas. Por isso, não têm autoridade para impor condições ao país vítima dessa violência. No mundo de hoje, a força não pode ser fonte de direitos. Assim, no seguimento da condenação pela Assembleia Geral das Nações Unidas, a 2 de março, deve exigir-se a retirada imediata das tropas invasoras de todo o território ucraniano. E insistir nisso, mesmo quando se reconhece a realidade existente no terreno e a necessidade de negociar com os invasores. Devo acrescentar, perante a gravidade da agressão e a possibilidade de ameaças futuras, que a melhor solução para garantir a paz, agora e no futuro, passa pela derrota política de Putin. Aqui, as sanções contam imenso. Devem ser tão focadas no impacto político quanto possível. A UE não pode continuar a transferir diariamente perto de 700 milhões de euros para a Rússia, em pagamento das importações de gás e petróleo. Os líderes europeus têm de conseguir explicar aos seus concidadãos que a paz e a tranquilidade de amanhã exigem sacrifícios no presente.

2. A proteção das populações civis, numa situação de conflito armado, é uma prioridade absoluta. As regras internacionais em matéria humanitária e no domínio dos direitos humanos, geralmente designadas como as Convenções de Genebra e os seus Protocolos Adicionais, são claras: todas as partes têm o dever incondicional de salvaguardar a integridade das populações e dos bens civis. Isto inclui hospitais, caravanas humanitárias, bens culturais e as áreas residenciais. O primeiro garante desse dever é o Conselho de Segurança da ONU. No caso concreto da Ucrânia, deveria ser apresentada à votação do Conselho um projeto de resolução sobre esta matéria, proposto por um membro que não a Rússia. É evidente que a Rússia faria uso do seu veto. Mas o projeto teria ainda o mérito de fazer pressão sobre a China.

3. No-fly zone: a imposição de uma zona de exclusão aérea contribui eficazmente para a proteção dos civis. Em condições normais, uma decisão deste tipo deveria ser tomada pelo Conselho de Segurança, como parte integrante da moção sobre a segurança das populações. Se for decidida apenas por uma coligação de Estados, será sempre vista como uma declaração de guerra pelo país alvo da interdição. Assim, se a decisão viesse da NATO entraríamos de imediato num conflito direto entre a nossa parte e a russa. Por isso, a NATO resolveu responder com um não categórico a esse pedido, feito insistentemente pelo presidente Zelensky e repetido diariamente por algumas personalidades políticas europeias, que parecem ignorar as consequências da questão. É verdade que um pequeno grupo de países poderia declarar, sem passar pela NATO, a exclusão aérea do espaço ucraniano. Porém, essa opção não é viável.

4. A China deve sair da sua ambiguidade e falsa neutralidade, e traduzir em atos as suas grandes declarações de princípios. É preciso manter a comunicação com os dirigentes chineses. O conselheiro de Segurança Nacional norte-americano, Jake Sullivan, teve um longo encontro, em Roma, com o responsável máximo chinês para os Negócios Estrangeiros, Yang Jiechi, que está acima do ministro dessa pasta. Houve muito desacordo, mas ambas as partes reconheceram a importância de manter as linhas de contacto abertas. Os líderes da Europa devem proceder de igual modo e estar em ligação contínua com o presidente Xi Jinping. A aliança entre Xi e Putin tem de ser fragilizada. Tal é possível. É essencial bater na tecla que é muito sensível na China, a da integridade territorial e do respeito pela soberania de cada Estado. E insistir na defesa das instituições multilaterais, uma área onde a China quer ser campeã, numa altura em que o Kremlin está a minar a credibilidade da ONU. Mas, acima de tudo, tratar-se-ia de combater a ideia que hoje prevalece em Beijing e que acredita que a derrota de Putin iria enfraquecer o poder de Xi, no ano em que se prepara o 20.º Congresso do Partido Comunista Chinês. Deve-se, isso sim, demonstrar que a continuação de Putin prejudica a imagem internacional do seu principal aliado e afeta negativamente a prosperidade económica de todos. A China tem uma das chaves que permite resolver a crise russa.

5. O paradigma geoestratégico mudou. Deixou de ser pertinente olhar para as relações internacionais com base no quadro de análise construído nos últimos 30 anos, no período que se seguiu à Guerra Fria. A geoestratégia tem agora uma forte dimensão humana. Já não se trata apenas de defender o Estado, o regime e assegurar zonas de influência. As pessoas, a sua segurança individual e coletiva, a sua integridade física e espiritual, passaram a fazer parte da equação. As alianças entre Estados têm de assentar em princípios e valores éticos, que respeitem os cidadãos e lhes permitam ser livres e ter uma vivência tranquila, sem medos nem chantagens de guerra, e sem hipocrisias.

11 MAR 2022 – Por onde anda a pretensa liderança chinesa?

oi preciso deixar correr 12 dias de agressão contra a Ucrânia para Xi Jinping descer à terra e discutir a sua leitura da crise com Emmanuel Macron e Olaf Scholz. Na véspera, o seu ministro dos Negócios Estrangeiros, Wang Yi, havia organizado uma longa conferência de imprensa, focada no mesmo assunto.

Ao analisar estas duas intervenções, fica-me a impressão de que Beijing pretende, em simultâneo, agradar a gregos e a troianos, ou seja, aos europeus da UE e ao regime de Vladimir Putin, e, por outro lado, agravar a retórica contra os EUA. Xi procurou encorajar o diálogo entre os europeus e o Kremlin, bem como criar uma linha de fratura entre a posição europeia e a americana. Assim se pode resumir a iniciativa chinesa.

Acima de tudo, o objetivo de Xi é o de projetar uma imagem de compostura e serenidade, na defesa do sistema multilateral e da paz. Quer aparecer como o grande apologista dos princípios internacionais, enquanto os americanos deveriam ser vistos como os instigadores de conflitos, incluindo o que agora se sofre na Ucrânia. A China estaria sobretudo preocupada com a promoção da cooperação internacional – a palavra cooperação foi mencionada no discurso de Wang mais de 80 vezes -, o desenvolvimento e a prevenção de crises humanitárias em larga escala.

Tudo isto é um exercício de estilo nos domínios da propaganda e da ambiguidade. A China precisa manter uma relação muito estreita com a Rússia. São dois grandes vizinhos, com várias complementaridades, para além da imensa continuidade geográfica. Beijing importa matérias-primas extraídas na Rússia – sobretudo petróleo, cerca de 60% do total das importações vindas da Rússia – e oferece uma válvula de escape à economia do vizinho. Mais importante de tudo, vê nos EUA um inimigo comum. A geografia aproxima os dois países e a geopolítica une-os. Trata-se, porém, de uma união frágil: baseia-se fundamentalmente nas vontades de Xi e Putin. Não tem expressão popular sólida, pois cada povo possui um quadro cultural muito próprio, sem raízes nem referências partilhadas.

E a China também sabe fazer contas: num ano, as trocas comerciais com a UE ultrapassam os 800 mil milhões de dólares, enquanto com a Rússia andam bem mais abaixo, na casa dos 105 mil milhões. Este valor é mais ou menos igual ao do comércio anual entre a China e os Países Baixos. Política e economicamente, Xi Jinping depende de um mercado europeu aberto e amistoso. Para o dirigente chinês, o comércio internacional é essencial para manter o ritmo de crescimento do nível de vida dos seus cidadãos. Isso tem que ver com a sua continuidade no poder. É o argumento fundamental para justificar a sua legitimidade e autoridade absoluta.

O facto é que a liderança chinesa não apoia o assalto militar que Putin ordenou contra a Ucrânia. Pelo que acima escrevo, e por três outras razões. Primeiro, porque desrespeita dois dos princípios fundamentais da política externa chinesa, o da inviolabilidade das fronteiras nacionais e o da não ingerência nos assuntos internos de outros Estados. Segundo, porque desestabiliza e põe em risco de crise profunda as economias europeias. Terceiro, porque reforça o papel dos EUA na NATO e a sua influência na Europa.

Contudo, Xi Jinping não acha prudente criticar nem mesmo falar agora com Putin. Prefere passar por Macron e Scholz e aconselhá-los a um diálogo com o Kremlin, fingindo que não vê que essa via está, neste momento, bloqueada. Putin não ouve os europeus.

Perante a resistência ucraniana contra os invasores, Putin está decidido a repetir o que outros ditadores fizeram ao longo da história: expandir o uso da força armada, incluindo o bombardeamento de civis – um crime de guerra -, e o cerco das cidades, ao velho estilo medieval. Xi Jinping sabe quais são os custos desse tipo de loucura criminosa. Foi o que o levou a contactar os líderes europeus. Deveria, isso sim, mostrar que as suas palavras sobre o valor do multilateralismo e das negociações diplomáticas fazem sentido e mexer-se com clareza no Conselho de Segurança das Nações Unidas e junto do seu parceiro Putin. Só assim poderá ser levado a sério.

05 MAR 2022 – A caixa de Pandora de Vladimir Putin

Os últimos dois anos têm sido tempos excecionais, de grandes preocupações a nível mundial. A verdade é que não estávamos preparados para enfrentar reptos desta dimensão e que vieram juntar-se ao problema muito complexo – e vital – das alterações climáticas.

Primeiro, foi a pandemia, que continua a ser um desafio enorme, sobretudo para os países com menos recursos e sistemas de saúde pública extremamente frágeis.

Com este pano de fundo ainda a fazer parte do nosso horizonte, surgiu agora um segundo fator de enorme instabilidade e que, tal como a covid-19, deverá contribuir para a reconfiguração do futuro das nossas sociedades e das relações internacionais. Este fator tem como ponto de origem a decisão inexplicável, anacrónica e ilegal de Vladimir Putin de declarar guerra ao povo da Ucrânia.

O ditador russo abriu uma caixa de Pandora. É preciso ter consciência disso. E, neste momento, até a esperança parece ter saído da caixa e andar à deriva. O próprio ministro dos Negócios Estrangeiros da Rússia, Sergei Lavrov, que agora se comporta de modo visível como um lacaio do seu mestre, veio alimentar o sentimento coletivo de ansiedade. Na quarta-feira, ao falar das sanções que foram impostas ao seu país, o ministro afirmou que a resposta poderá ser uma terceira guerra mundial. E sublinhou que seria “uma guerra nuclear devastadora”.

Muitos pensarão que isto é só conversa, para fazer subir a parada, ou seja, para conseguirem destruir a Ucrânia e guardar os escombros, pressionar o Ocidente, ganhar peso estratégico e evitar uma nova vaga de sanções.

Por mim, sou dos que levam estas bravatas muito a sério. As medidas tomadas contra Putin e os círculos que sustentam o seu poder são extraordinariamente abrangentes, próximas de uma declaração de hostilidades. O impacto nas áreas da economia, da finança e da política interna será enorme. Perante isso, a resposta do Kremlin pode ser económica, para além das proibições de uso do espaço aéreo, do trânsito de mercadorias vindas da China, de vistos, etc. Mas receio que Putin não considere essas retaliações suficientes. Poderá querer mostrar que a Rússia não joga baixinho, que não é nem o Irão nem a Venezuela.

Como já aqui o escrevi, chegámos a um ponto de viragem muito perigoso.
A única solução razoável passaria por um esforço diplomático de bons ofícios – no entendimento que seria necessário encontrar uma solução que garantisse a independência da Ucrânia, mas aceitando igualmente que está em jogo algo muito maior do que essa questão. A ONU e o seu secretário-geral deveriam ser os agentes principais dessa iniciativa. Faz parte das suas atribuições e devem ousar. Mas, não vejo hipótese, Putin não aceitaria uma mediação desse tipo. Para ele, a ONU é apenas um secretariado, uma estrutura ao serviço dos Estados, mas sem equiparação e abaixo deles. E Guterres é agora apresentado em Moscovo como um agente dos americanos.

A mediação teria de caber a um Estado aceite por todas as partes. Se a questão fosse apenas entre a Rússia e a Ucrânia, penso que a possibilidade de a China poder desempenhar esse papel não deveria ser descartada. Mesmo tendo em conta que a retórica chinesa antiamericana se tem agravado nos últimos dois ou três dias. Hoje, perante a complexidade da crise, seria preferível que a mediação fosse feita por um tandem, ou mesmo um triunvirato, de países. Por exemplo, a China, a França e um outro país, que reunisse a confiança dos europeus e dos americanos, mas independente da NATO e exterior à cena europeia. Qual poderia ser?

Dito isto, queria que ficasse claro que não tenho muita fé na possibilidade de uma mediação. Preferiria que se apostasse num golpe palaciano. Aí, sim, poderá estar a solução. Mas, oficialmente, há que insistir na via diplomática. A encruzilhada em que estamos é bem clara: ou há diplomacia ou haverá uma forte possibilidade de confrontação em larga escala, sofrimento e caos. Cabe a cada um responsabilizar-se pela sua escolha e, no fim, pagar a conta, a começar por Vladimir Putin.

04 MAR 2022 – Entrevista ao DN e à TSF

Quem é que deveria ser o mediador das negociações entre a Rússia e a Ucrânia?

Gostava imenso de poder responder a essa pergunta porque, na realidade, a situação em que nos encontramos – que é uma situação extremamente grave e que se tem agravado de dia para dia -, precisa de uma mediação. Normalmente, o mediador deveria ser alguém nomeado pelo secretário-geral das Nações Unidas e que fosse aceite por ambas as partes. Mas, neste momento, não vejo essa possibilidade poder materializar-se. Não penso que seja possível por várias razões. Uma delas porque o secretário-geral das Nações Unidas, António Guterres, é visto pela parte russa como estando muito próximo das posições ocidentais, nomeadamente das posições americanas, e, por outro lado, o próprio presidente da República da Rússia, Vladimir Putin, considera que o secretário-geral e o Secretariado das Nações Unidas são estruturas ao serviço dos Estados membros e não capazes de estar ao mesmo nível, em termos de facilitar uma mediação. Por isso, a hipótese mais recomendável seria encontrar um Estado membro das Nações Unidas que pudesse fazer essa mediação.

A China, por exemplo?

Falou-se da China, é verdade. Se me tivesse feito essa pergunta há dois ou três dias, diria que a China era, de facto, uma possibilidade. Simplesmente, nas últimas 24 horas, a posição chinesa tem-se radicalizado bastante no que diz respeito a ataques sucessivos aos interesses americanos na Europa e a aproveitar a crise que existe neste momento na Ucrânia para atacar os Estados Unidos. E, nesse caso, será muito difícil que os Estados Unidos aceitem a China como mediador. A China poderia ser um mediador possível se fosse aceite por ambas as partes, mas vejo muitas dificuldades nisso. A minha sugestão era que houvesse não só um país a fazer a mediação, mas que fosse um tandem de países, ou seja, a China e um outro país que não fosse nem europeu nem membro da NATO, mas que fosse aceite quer pelos russos quer pelos americanos e europeus. É nesta situação que nos encontramos, sobretudo tendo em conta que as negociações diretas entre a delegação russa e a delegação vinda de Kiev muito provavelmente não irão chegar a nenhuma conclusão. Por isso será, muito provavelmente, necessário preparar o terreno para que haja um acordo entre ambas as partes e esse preparar o terreno quer dizer trabalho de mediação.

Já afirmou que António Guterres é visto, neste momento, como alguém que quebrou a neutralidade. Num artigo do Diário de Notícias, logo muito em cima do início da guerra na Ucrânia, afirmou que Guterres teve uma frontalidade histórica como secretário-geral, erguendo a voz e criticando um dos países com direito de veto, algo praticamente inédito na história das Nações Unidas. Duas perguntas numa: por um lado, isso mostra a personalidade de António Guterres, que podemos aplaudir, por outro, dificulta esse tal papel mediador que poderia ter?

Exato. Sublinharia, primeiro, a coragem que António Guterres teve ao dizer claramente que o que os russos tinham feito era uma violação da lei internacional, atacava diretamente a soberania de um Estado membro das Nações Unidas e, por isso, era inaceitável. Penso que isso é, sobretudo, muito corajoso, até porque António Guterres estava a referir-se diretamente a um país que é membro permanente do Conselho de Segurança das Nações Unidas. Como disse, e como escrevi nessa altura, de facto é inédito um secretário-geral ter a ousadia de dizer que um dos cinco membros permanentes do Conselho de Segurança está a violar a lei internacional. É algo nunca visto na história das Nações Unidas. Por outro lado, é evidente que uma tomada de posição desse género incompatibiliza, imediatamente, o Estado membro referido por António Guterres e torna mais difícil o seu papel de mediador. Apesar de tudo, penso que António Guterres deveria nomear um representante especial para acompanhar o processo da Ucrânia e tentar também uma função de bons ofícios, de modo a facilitar a comunicação entre a Ucrânia e a Rússia, por um lado, e também a comunicação entre a Rússia e os restantes membros permanentes do Conselho de Segurança, por outro, porque é fundamental que o diálogo volte a ser restabelecido. Neste momento, um grande problema que temos é que não há diálogo ao nível dos membros permanentes do Conselho de Segurança, e não havendo diálogo – mesmo que seja um diálogo de surdos -, é importante que haja diálogo, é importante que as pessoas se encontrem. E não havendo diálogo, é muito mais fácil chegar a uma situação de escalada permanente da crise.

Isso vem levantar a questão da eficácia do atual modelo e do próprio funcionamento do Conselho de Segurança, e a regra dos vetos e dos membros permanentes. Tivemos o tal tom de voz do secretário-geral das Nações Unidas, vimos a votação, os 11 votos em 15 do Conselho de Segurança, a condenar a invasão russa. Vimos a Assembleia Geral das Nações Unidas com uma maioria muito expressiva também na condenação. Nada acontece. Há forma de manter este modelo ou, de facto, é tempo de mudar? E o que é que mudaria primeiro?

Todos sabemos que o modelo está ultrapassado e que é um modelo que corresponde ao mundo em 1945. Não corresponde ao mundo em 2022, certamente. Já não correspondia ao mundo há 30 anos quando caiu o Muro de Berlim. Depois da queda do muro, houve alguma expectativa e otimismo de que seria, talvez, possível reformar o Conselho de Segurança e isto queria dizer, fundamentalmente, duas coisas: por um lado, rever a composição do Conselho de Segurança de modo que outros países pudessem também ter assento permanente no Conselho de Segurança e fazer que, por exemplo, o continente africano tivesse um representante permanente; que a Ásia tivesse – além da China – um outro representante permanente; a América Latina a mesma coisa. Portanto, uma das preocupações nessa altura e uma das razões para haver otimismo é que talvez fosse possível alterar a composição do Conselho de Segurança, o que não foi possível. Estive em várias reuniões e processos em que se tentou fazer isso e fui destacado para conversar com vários Estados membros que poderiam, eventualmente, vir a fazer parte do Conselho de Segurança de modo permanente, mas isso não deu qualquer resultado. E a segunda grande questão era a questão do veto, em que se procurou reduzir o número de situações em que veto podia ser utilizado e, sobretudo, fazer que o veto não fosse utilizado por um Estado membro permanente do Conselho de Segurança quando fossem as suas ações que estivessem em jogo. Quando fosse uma resolução, por exemplo, que dissesse respeito aos Estados Unidos ou à Rússia ou à China, que esse país não votasse na altura do voto da resolução. Tudo isto foi tentado. Houve uma certa esperança de que pudesse resultar, mas a verdade é que não se conseguiu e aquilo a que assistimos foi à continuação de um Conselho de Segurança que não corresponde de modo algum à relação de forças atual no mundo de hoje e, por outro lado, um Conselho de Segurança que está cada vez mais dividido. O Conselho de Segurança começou a dividir-se quando foi a primeira resolução sobre o Iraque, em 2003. Continuou a dividir-se quando foi a questão da Líbia e, depois, dividiu-se imenso com as discussões e a tentativa de fazer adotar resoluções sobre a Síria e, hoje, o Conselho de Segurança é um conselho partido ao meio. E um Conselho de Segurança dividido e que não consegue adotar resoluções em relação a conflitos que são de importância extraordinária para a paz internacional é um Conselho de Segurança que não funciona e isso tem, evidente e imediatamente, um grande impacto sobre o funcionamento do Secretariado das Nações Unidas.

Há alguma circunstância em que a Assembleia Geral das Nações Unidas possa puxar a si o poder e rever essas regras?

Não. O que a Assembleia Geral das Nações Unidas pode fazer foi o que fez nestes últimos dias e na votação de ontem, que é votar uma resolução que não tenha sido aprovada no Conselho de Segurança por causa de um veto de um dos membros do Conselho. Assim, esse projeto de resolução vai à Assembleia Geral que precisa de aprovar essa resolução com uma maioria de dois terços – que foi o que aconteceu também desta vez -, e essa resolução é aprovada, mas não tem força vinculativa, não tem aplicação como lei internacional. Tem apenas, e considero que isso é muito importante, uma autoridade moral muito grande, o que significa que a grande maioria dos países membros da Assembleia Geral das Nações Unidas não estão de acordo com aquilo que o Estado membro em causa fez ou está a fazer.

Muitas vezes falamos sobre esta incapacidade da ONU de resolver problemas, no sentido em que o Conselho de Segurança e o sistema de vetos paralisam tudo. Mas, ao mesmo tempo, temos a OMS, temos o Alto-Comissariado para os Refugiados, temos o Programa Alimentar Mundial, ou seja, mesmo neste momento na Ucrânia, várias dessas agências da ONU estarão já a trabalhar no terreno e no futuro ainda mais para minorar o sofrimento da população. Portanto, não está em causa que a ONU é uma organização extremamente útil?

Não, a ONU tem dimensões que funcionam perfeitamente e que são de grande utilidade. Aliás, a ONU é um sistema multidimensional. Quando estamos a falar do Conselho de Segurança e do facto de este ter imensas dificuldades em resolver conflitos, estamos a falar da área da paz e da segurança internacional. Nas áreas, por exemplo, da saúde, do apoio aos refugiados, do desenvolvimento, da alimentação, ou mesmo nas áreas mais técnicas como, por exemplo, da aviação civil, da meteorologia ou das telecomunicações, as Nações Unidas desempenham um papel fundamental e indispensável. Por isso, quando criticamos as Nações Unidas é preciso ter muito cuidado porque, em muitas áreas, as Nações Unidas não só desempenham um papel fundamental, como o desempenham de uma forma muito eficiente. E, por isso, as Nações Unidas como sistema são muito importantes e é através desse sistema que se faz a cooperação e que se estabelecem normas mundiais. Mas na área da manutenção da paz e da segurança internacional, quando os interesses de um dos membros permanentes estão em causa, aí é que encontramos imensas dificuldades em fazer avançar o trabalho das Nações Unidas. Na realidade, estamos a falar de um pilar importante que é o pilar da paz e da segurança. Foi o pilar inicial das Nações Unidas e foi para isso que foram criadas, mas fora esse pilar há todos os outros, desde os direitos humanos ao desenvolvimento, à ajuda humanitária e à questão das normas internacionais. Todos esses pilares funcionam bastante bem.

Na sua experiência ao serviço da ONU, África esteve muito presente. Viveu e trabalhou em muitos desses países africanos, tanto lusófonos como francófonos ou anglófonos, portanto, com uma diversidade enorme. Viu também muito o resultado de guerras e destruição, viu muita necessidade de refazer países. Quando imagina a Ucrânia depois desta guerra – dure ela muito ou pouco tempo -, quando imagina a necessidade de reconstruir um país e de sarar as feridas entre dois beligerantes, a sua experiência em África diz que isto é muito difícil?

É sempre muito difícil reconstruir. É mais fácil e rápido destruir do que reconstruir. Simplesmente, no caso da Ucrânia é um país que tem, à partida, duas grandes vantagens: a primeira é que tem uma população muito bem formada, com um nível educacional muito elevado e, por isso, o capital humano da Ucrânia é uma vantagem importantíssima na reconstrução do país. E a segunda grande vantagem – penso que não devemos ter ilusões em relação a isso – é que no dia em que a paz voltar à Ucrânia, a ajuda internacional e, nomeadamente, a ajuda vinda da União Europeia, será de tal maneira importante que isso permitirá uma recuperação relativamente rápida da situação na Ucrânia. Infelizmente, nos países africanos esses dois fatores não estão totalmente presentes. Temos na maior parte dos países africanos uma população que tem um nível educacional muito baixo, tem qualificações profissionais muito fracas e, por outro lado, a ajuda ao desenvolvimento a esses países – embora seja uma ajuda relativamente importante – não está, de maneira nenhuma, à altura das necessidades que esses países têm. Ou seja, vou continuar a ver, em relação aos países africanos, uma situação de diferença e de disparidade em relação àquilo que se passa nos países do norte. Continuamos a ter um mundo dividido entre aqueles que estão em situação de grande subdesenvolvimento e de grandes dificuldades e aqueles que, por várias razões, são hoje países desenvolvidos.

Antes de rumarmos para outros temas, deixe-me perguntar-lhe outra coisa: conseguimos imaginar nesta altura que essa reconstrução seja feita num país com a integridade territorial que tem agora ou está mais tentado a antever alterações até ao nível das fronteiras?

Penso que um dos objetivos de Vladimir Putin é alterar as fronteiras da Ucrânia e penso que um dos objetivos claros é conquistar todo o Donbass. Portanto, não se limitar apenas ao território que, neste momento, é controlado pelos separatistas que são apoiados pelos russos.

Quando diz conquistar é integrar na Rússia ou manter as tais repúblicas populares?

Ter uma situação de aparência, digamos assim, em que se criam duas repúblicas aparentemente independentes, mas que na verdade são totalmente subordinadas ao poder do Kremlin e que, para sobreviver, precisarão da ajuda maciça do Kremlin e da Rússia. Mas esse é um dos objetivos, fazer que o Donbass do futuro coincida com aquilo que são as fronteiras constitucionais definidas pela Ucrânia, ou seja, passar de uma situação em que os separatistas controlam apenas um terço do território para uma situação em que passarão a controlar todo o território. Um outro objetivo que parece ser cada vez mais claro é transformar a Ucrânia num país sem acesso ao mar. Aparentemente, os russos querem conquistar toda a parte da Ucrânia que liga o Donbass à Crimeia, ao longo da costa, e da Crimeia até Odessa, também ao longo da costa. Isso significaria que a Ucrânia deixaria de ter acesso ao mar de Azov e deixaria de ter acesso ao mar Negro.

Voltando um pouco à sua experiência em África em que lidou com líderes fortes como o zimbabweano Robert Mugabe, por exemplo, a personalidade de um líder consegue definir o rumo que esse país segue? Ou seja, esta Rússia é muito a Rússia de Putin?

Sempre considerei a liderança uma questão fundamental. O líder marca o país, sobretudo se se trata de uma situação de alguma autocracia, ou seja, se estamos numa situação em que o poder absoluto é possível. E é o caso da Rússia neste momento. Aliás, as fotografias que vemos em relação à Rússia, em que o presidente se encontra, por exemplo, com o seu ministro da Defesa e com o seu chefe do Estado-Maior-General das Forças Armadas, são fotografias que mostram claramente quem é que manda e quem é que obedece. E mostram, claramente, que o presidente da República está num patamar muito acima dos outros. Temos aqui uma situação em que Vladimir Putin é o líder incontestável da Rússia e a personalidade de Putin é determinante na tomada de decisões e na orientação que é dada à política interna e externa do país. Por isso, a questão da liderança é muito importante. Muitas vezes não temos isso em linha de conta e pensamos que nestes países são as instituições do Estado que tomam as decisões e que asseguram o funcionamento da democracia e do Estado, mas na realidade tudo é definido ao nível central e tudo é definido, sobretudo, pela pessoa que detém o poder. Ou, quando não é decidido pela pessoa que detém o poder, é decidido por pessoas que procuram tomar decisões pondo-se na situação do líder, ou seja, acabam por ser mais radicais e mais excessivos do que o próprio líder.

E viu esse traço em alguns dos líderes com que teve de lidar?

Vi esse traço em vários líderes. O primeiro líder com que tive de lidar e de quem, provavelmente, muita gente já não se lembrará, foi Jean-Bédel Bokassa, o imperador da que é hoje a República Centro-Africana. E Bokassa era um líder extremamente original, por um lado, mas por outro extremamente vivo na maneira como se exprimia e na maneira como conseguia fazer passar as mensagens. E a verdade é que dominava completamente o círculo à volta dele e através desse círculo dominava completamente o país. Era uma pessoa que tinha qualidades pessoais excecionais no sentido de liderança. Tinha carisma e conseguia através desse carisma e dessa maneira de se relacionar com os outros impor tudo aquilo que queria e que lhe passava pela cabeça, incluindo o facto de querer ser coroado imperador.

E neste caso como compara Vladimir Putin com Volodymyr Zelensky? Estamos aqui a falar de ex-espião e de um ex-ator cómico.

Estamos a falar, sobretudo, de dois líderes de países. Estamos a falar de Putin como líder de um país que não é democrático e estamos a falar de Zelensky como líder de um país em que foi eleito com mais de 70% dos votos.

Portanto, o passado dele já está apagado?

Penso que a partir do momento em que alguém é eleito com mais de 70% dos votos, e temos de acreditar na democracia e no voto popular, essa pessoa tem toda a legitimidade para ser presidente. Parece um erro insistir em dizer que essa pessoa era comediante ou coisa assim. Ele era aquilo que era na altura, mas a verdade é que conseguiu ser eleito e conheço muitos políticos muito sérios que nunca conseguem ser eleitos para nada e, sobretudo, nunca conseguem ser eleitos presidentes da república. Ele conseguiu e com uma margem que não deixa qualquer tipo de dúvida. Por isso, estamos a falar de dois presidentes, um que não é democrático e outro que foi eleito democraticamente.

E já que estamos a falar de personalidades e de lideranças, Joe Biden tem sido aquilo que se esperava dele nos Estados Unidos e no mundo?

Pessoalmente, tenho uma opinião positiva sobre Joe Biden e espero que muitos dos meus amigos e das pessoas com quem falo também tenham essa opinião. Mas a verdade é que os Estados Unidos estão muito divididos e há muita gente nos Estados Unidos que crítica Joe Biden e que transforma essa crítica numa campanha de desilusão, digamos assim, sobre a sua presidência. Mas penso que tem estado à altura do desafio e é preciso ver que Joe Biden vem para a presidência depois de uma situação de quatro anos absolutamente irrealista e absurda. Vem para a presidência da república de um país extraordinariamente dividido, até no sentido em que não se compreende como é que determinados líderes do Partido Republicano aceitam a liderança de Donald Trump sendo ele o que é. Por isso, Joe Biden tomou conta de uma situação num país extremamente dividido, um país muito radicalizado. Devo dizer-lhe que é um país que me preocupa bastante, na medida em que não sabemos o que vai acontecer dentro de três anos quando tiverem lugar as novas eleições presidenciais.

E não sabemos o que vai acontecer daqui a sete ou oito meses quando houver uma espécie de teste do algodão.

Exato. Quando houver as eleições de meio termo, em novembro deste ano, ficaremos certamente com algumas preocupações. Mas a maior preocupação vai ser, de facto, o que vai acontecer quando for a próxima eleição presidencial. Imaginemos, por exemplo, que Donald Trump ou alguém como ele é eleito. Isso significará novamente uma rutura entre os Estados Unidos e a Europa, o que significa, nomeadamente, que a Europa tem três anos para tentar reforçar a sua autonomia face aos Estados Unidos e, nomeadamente, autonomia em matéria de segurança e defesa.

Para terminar esta ronda pelos líderes com mais protagonismo nesta altura, Emmanuel Macron tem também um teste nos próximos tempos que são as eleições presidenciais francesas e há um novo protagonista que é o chanceler alemão, Olaf Scholz. Acha que são personagens que têm carisma e as tais características de liderança?

Em relação a Olaf Scholz, teria muitas dificuldades em falar em carisma. Penso que a sua comunicação ao parlamento alemão, no último domingo, foi bastante positiva e que alterou a política interna e externa da Alemanha. Foi bastante corajoso ao tomar determinadas decisões, nomeadamente o reforço do setor da defesa na Alemanha, e penso que isso é muito importante. No entanto, é evidente que Scholz está na chancelaria apenas desde o início de dezembro e ainda é muito cedo para se fazer um julgamento sobre ele. Mas, à partida, e sobretudo tendo em conta o que aconteceu nos últimos dias, diria que o balanço neste momento será positivo. No que diz respeito a Macron, possivelmente será reeleito. Não vejo que haja outro candidato que possa ser eleito neste momento. Falava-se, a determinada altura, que Valérie Pécresse teria muitas possibilidades, mas a verdade é que a sua campanha eleitoral não tem corrido muito bem. Na extrema-direita, Marine Le Pen e Éric Zemmour vão roubar eleitores um ao outro e isso significará que, provavelmente, um deles terá muitas dificuldades em passar à segunda volta e, provavelmente, os dois terão muitas dificuldades em passar à segunda volta. Tradicionalmente, os franceses em situações destas votam moderadamente e votam pelo presidente que está no poder e não por uma pessoa de extrema-direita. Portanto, penso que vamos continuar a contar com Macron na presidência da república francesa e, pessoalmente, considero que é uma presidência positiva.

Desta crise do Ocidente com a Rússia, sai reforçada a União Europeia ou sai, sobretudo, reforçada a NATO?

Penso que sai reforçada a União Europeia, fundamentalmente. Não só por ter tomado medidas concretas de sanções contra a Rússia e de as ter tomado rapidamente e sem divergências entre os líderes europeus, mas também pela maneira como tem narrado, digamos assim, a sua maneira de apoiar a Ucrânia e pelas posições que tem tomado em relação à violação da soberania da Ucrânia pela Rússia. Penso que a União Europeia sai certamente reforçada desta crise e a NATO sai, sobretudo, novamente focalizada na questão russa. A NATO durante vários anos estava com outro tipo de focos e a Rússia era apenas um deles, mas neste momento praticamente todas as atenções no interior da NATO estão viradas para a ameaça que é a Rússia de Vladimir Putin – e é sempre bom dizer que é a Rússia de Vladimir Putin, porque não é a Rússia do povo russo, que é um grande povo e que tem demonstrado grande coragem -, porque a liderança de Putin e a sua maneira de fazer política tem levado a NATO a considerar, novamente, a Rússia uma grande ameaça para a paz e segurança no espaço europeu.

Putin está no poder, mais ou menos, desde 2000. A Guerra Fria acaba, vamos dizer, em 1991 com o fim da União Soviética. Não acha que o alargamento da NATO a leste, logo a seguir ao fim da Guerra Fria, condicionou o relacionamento entre o ocidente e a Rússia, propiciou o surgimento de Putin e propiciou este conflito atual?

Penso que não. Primeiro, não houve alargamento da NATO a leste. Houve vários países de leste que decidiram aderir à NATO, o que é diferente de um alargamento. Foram decisões soberanas de Estados soberanos que decidiram que, para sua segurança, era importante fazer parte da Aliança Atlântica. E foi isso que aconteceu, por exemplo, em relação aos bálticos, em relação à Polónia e assim sucessivamente. Por outro lado, penso que convém sempre frisar que essa adesão à NATO era uma adesão com uma preocupação de defesa e não de ataque a qualquer outro país, incluindo à Rússia. Isto eram países que tinham conhecido profundamente a mentalidade soviética, a política soviética e que tinham receios históricos que os levaram certamente a tomar a decisão de aderir à Aliança Atlântica. É evidente que do lado russo isto foi visto e aproveitado como uma oportunidade para criar um nacionalismo russo e, nomeadamente, para permitir à classe dirigente russa dizer que havia aqui uma ameaça crescente à Rússia vinda da NATO quando, na realidade, essa ameaça não existe.

Este choque Ocidente-Rússia é quase como uma pausa naquilo que será um grande choque previsível entre Estados Unidos e China pela supremacia mundial? Ou podemos considerar, para já, que esse cenário ainda está demasiado distante no tempo?

É difícil de dizer porque na Europa sempre houve um problema de rivalidade entre nações. A Europa sempre foi um grande teatro de guerras como se sabe. É verdade que a última grande guerra terminou há mais de 75 anos, mas o certo é que toda a história da Europa foi de conquistas e de guerras. Quando se criou a União Europeia e quando se criou também a NATO, em certa medida a ideia era fazer que a paz voltasse à Europa de maneira permanente. Não está a acontecer neste momento. A Europa continua relativamente dividida. Falamos muito da Ucrânia, mas nunca falamos do que se passa, por exemplo, nos Balcãs e a situação aí também é relativamente problemática. Ou seja, a Europa ainda tem problemas internos e históricos de rivalidades e de tensões entre os seus povos. Até mesmo dentro da NATO notei várias vezes que havia rivalidades entre países membros que tinham a ver com a história. Por exemplo, rivalidades entre as forças armadas da Alemanha e as forças armadas da Polónia porque, tradicionalmente, estes países tinham tido vários confrontos ao longo da história. Comparar isto com o que se poderá passar em relação à China é relativamente difícil, porque o que se irá passar em relação à China, provavelmente, será um grande confronto na Ásia e, sobretudo, na zona marítima, à volta de Taiwan, mas também da ocupação do mar do Sul da China pela China. E isso é um outro tipo de conflito que implicará diretamente os Estados Unidos. Espero que não aconteça, mas se houver uma confrontação direta entre os Estados Unidos e a China penso que é melhor que nos abriguemos imediatamente.

Para terminar e pegando precisamente nesse cenário, Portugal alinhou agora com sanções à Rússia mas, durante muitos anos, tentou mesmo ter laços estreitos com a Rússia. Nesse cenário futuro, como é que fica a relação de Portugal, mesmo a nível do entendimento diplomático e das relações comerciais, com a China? Antevê aí um problema?

Portugal tem uma relação relativamente próxima com a China, mais próxima do que a maioria dos países europeus, o que será, certamente, uma vantagem. Mas também é muito criticado em certas reuniões e em certos fóruns da Aliança Atlântica ou na Europa, porque há quem pense que Portugal está demasiado próximo da China. Tudo isso depende um pouco da perspetiva. A verdade é que Portugal tem procurado seguir as diretrizes que vêm das reuniões em que participa em Bruxelas e Portugal tem sido um país cumpridor das decisões coletivas que são tomadas nessas assembleias. Por isso, em certa medida e apesar de uma relação relativamente próxima com a China, Portugal tem sido um país que colabora e que está dentro do quadro que é definido coletivamente, quer pela União Europeia quer pela NATO. Por isso, aí não vejo qualquer tipo de problema.

Não acha que vá chegar o momento em que tem de escolher o lado?

Penso que não, porque aí não há escolha possível. Estamos na Europa, a nossa geografia é esta, a nossa geopolítica também tem de ser esta e seria um erro ignorarmos a nossa situação geopolítica e a nossa geografia, por isso penso que não. Quem em Portugal pensa que não deveríamos fazer parte da NATO ou da União Europeia está completamente fora do quadro de pensamento que seria lógico.

leonidio.ferreira@dn.pt

02 MAR 2022 – Putin e nós: de mal a pior, perigo!

Estamos agora num novo patamar, bem mais perigoso, da crise iniciada por Vladimir Putin há cerca de uma semana. As sanções adotadas pelos países da UE e pelos seus aliados, a colocação no estado de alerta das forças russas de dissuasão nuclear, a entrada da Bielorrússia no confronto, ao abolir a sua neutralidade nuclear, e sobretudo a expansão em larga escala da agressão militar contra a Ucrânia, incluindo o ataque a alvos civis, tudo isto conduz ao agravamento da tensão entre Putin e a nossa parte do mundo.

O momento exige prudência máxima. O apoio em meios militares à Ucrânia, por exemplo, deve ser feito sem declarações grandiloquentes. Ajudar, sim, mas sem alimentar o fogo da retórica, sem dar a oportunidade ao adversário de utilizar as nossas palavras para se justificar perante a sua opinião pública e proceder a uma nova escalada. Esta é uma mensagem que aqui deixo para Ursula von der Leyen e os outros dirigentes europeus.

O momento também exige firmeza absoluta na aplicação das sanções económicas e financeiras que foram decididas este fim de semana.

A questão do SWIFT é particularmente importante. Mesmo sem incluir o gás e o petróleo russos. As lições que retiro de casos passados recentes – Coreia do Norte, Venezuela e Irão – revela que uma grande parte do comércio externo do país sancionado fica suspensa. O impacto sobre o PIB e o dia-a-dia da economia é enorme. O sistema de pagamentos internacionais deixa de funcionar e as alternativas são escassas e complexas. As trocas comerciais, que nos dias de hoje sustentam o nível de vida dos cidadãos, diminuem drasticamente.

Assim irá acontecer agora. A Rússia criou no passado recente um sistema independente do SWIFT, mas o número de bancos aderentes não ultrapassa as duas dezenas. E esses bancos, ao terem em conta as medidas de exclusão agora decididas, irão certamente hesitar no que respeita a transações com a Rússia, com receio das penalidades e restrições conexas. O mais seguro, em termos de negócios, é deixar de ter relações bancárias com o sistema russo.

Mais importante ainda é a decisão de bloquear muitas das operações do Banco Central da Rússia. Putin contava com os 630 mil milhões de dólares que esse banco tem como reservas em divisas e em barras de ouro. O problema é que uma boa parte dessas reservas – pelo menos 50% do total – se encontra depositada noutros bancos centrais, em países que agora adotaram o regime de sanções. No Japão, na Alemanha, em França, nos EUA, no Reino Unido, na Áustria. O acesso a esses depósitos fica congelado.

Para além destas reservas, o Banco Central da Rússia detém nos seus cofres barras de ouro na ordem das 3300 toneladas. Poderá tentar vender uma boa parte. Mas com as sanções em vigor, os compradores, mesmo sendo chineses, enfrentarão um grande risco, quando mais tarde tentarem comercializar esse ouro. Por isso, só comprarão as barras se a Rússia oferecer um desconto em relação ao valor atual do mercado, desconto esse que poderá ser da ordem dos 30% ou mais. Assim, o que valeria nas condições presentes cerca de 190 mil milhões de dólares americanos poderá, no máximo, permitir arrecadar 130 mil milhões.

Estas sanções provocarão uma desvalorização contínua da moeda nacional, o rublo, que aliás já perdeu cerca de 30% em relação ao dólar. Levarão, também, à desestabilização do funcionamento dos bancos comerciais do país. Estamos a entrar naquilo a que chamaria a “venezuelização” do sistema financeiro russo. Ora, isso tem enormes custos políticos. A narrativa europeia tem de conseguir explicar à população russa o que está por detrás de tudo isto: a política irresponsável e criminosa de Vladimir Putin.

As sanções já estão a contribuir para o isolamento internacional do país. Ora, os ditadores não gostam de ser empurrados contra a parede nem de becos sem saída. Isso explica o novo grau de brutalidade da ofensiva contra a Ucrânia. Putin precisa de uma vitória militar sem mais demoras, mesmo à custa de crimes de guerra. Pensa que, a partir daí, poderá negociar com mais força com os europeus e os americanos. Devemos dizer-lhe que está redondamente enganado.

25 FEV 2022 – Quando o fascismo nos entra em casa

o essencial, o fascismo de agora coincide com o do século passado: na existência de um autocrata, no poder ditatorial, no ultranacionalismo, na exaltação contínua da pátria e dos valores tradicionais, da religião à família, e numa visão desumana do uso da força, quer para manter a ordem interna e esmagar a oposição quer para criar problemas além-fronteiras. O ditador manipula a narrativa do passado do seu povo com palavras gloriosas, de modo idealizado, como se a nação tivesse uma missão histórica e civilizacional, quiçá divina. Vê-se como a personificação do nobre destino nacional. Coloca-se num pedestal acima de todos. Trata os membros do seu círculo mais imediato de modo teatral, com arrogância, cinismo e mão de ferro, para obter subserviência e bajulação. Na cena internacional só respeita as regras que lhe convêm. Procura impor o medo, mas acaba por ser tratado com desconfiança e aversão. Os seus únicos aliados estrangeiros encontram-se nas elites marionetas dos países vassalos, nos movimentos de extrema-direita, noutros que defendem modos de governação totalitária, ou, ainda, nos tolos.

Os ditadores fascistas são um perigo para as democracias bem como para a paz internacional. Na verdade, como Vladimir Putin nos lembra hoje, o fascismo leva à guerra.

Putin está à frente de uma grande nação, que ao longo da história contribuiu de maneira marcante para a civilização e a cultura europeias. Um povo heroico, que foi determinante na derrota do nazismo. Um povo que pertence, de pleno direito, à “casa europeia”, a grande parceria estratégica entre a UE e a Rússia, sonhada em 2003, e que tinha como ambição construir um espaço de liberdade e de cooperação de Lisboa a Vladivostok.

Estamos agora muito longe desse sonho. O pesadelo tornado realidade da violação da soberania da Ucrânia, a sua invasão, a linguagem utilizada por Putin, as ameaças verbais contra a nossa parte da Europa e as exigências impossíveis de aceitar, colocam-nos a todos nós, europeus, perante uma confrontação muito séria. Os conflitos, uma vez iniciados, ficam geralmente fora de controlo. Sabe-se quando começam, mas não se sabe quando terminam, nem quais serão os estragos, o nível de sofrimento e as consequências. Já sem falar da política interna que Putin conduz, tem de ficar claro que a externa, em relação à Ucrânia e à vizinhança europeia do seu país, é inaceitável e criminosa. Está completamente fora das normas estabelecidas.

É altura de voltar ao quadro legal internacional, que foi sendo construído desde 1945. Nesse sentido, a declaração feita por António Guterres, sobre os acontecimentos desta semana, é altamente significativa e corajosa. Ficará, no registo do seu mandato, como um momento memorável. Guterres disse: “A decisão da Federação Russa de reconhecer a pretensa “independência” de certas áreas do Donetsk e de Lugansk é uma violação da integridade territorial e da soberania da Ucrânia.” Acrescentou que a decisão contradiz os princípios da Carta das Nações Unidas, bem como a Declaração da Assembleia Geral sobre as Relações de Amizade e Cooperação entre os Estados e a jurisprudência do Tribunal Internacional de Justiça. Voltou a repetir as mesmas palavras, de modo profundamente preocupado, uma vez consumada a invasão.

Nunca, na história da ONU, um secretário-geral havia ousado ser tão claro na condenação de uma ilegalidade em larga escala praticada por um dos membros permanentes do Conselho de Segurança. U Thant, que esteve à frente da organização entre 1961 e 1971, referiu-se várias vezes aos Estados Unidos e à sua guerra injusta no Vietname, mas não foi tão longe.

Entretanto, a UE deve responder a esta imensa crise com todo o arsenal diplomático, financeiro e económico à sua disposição. E com um reforço da sua arquitetura de defesa. O objetivo é isolar, enfraquecer, punir a ditadura no poder em Moscovo e forçar o regresso à paz. À hora a que escrevo ainda não são conhecidas as medidas que serão adotadas. Devem, no entanto, deixar claro que um regime fascista e bélico na Europa é moral e politicamente inadmissível. Não passará, nem agora nem nunca mais.

18 FEV 2022 – Europa e África: uma relação muito complexa

Começou ontem e continua hoje em Bruxelas a sexta cimeira entre a União Europeia e a União Africana. Aproveito a ocasião para partilhar algumas reflexões pessoais sobre o relacionamento entre a Europa e um continente que absorveu mais de três décadas da minha vida profissional, incluindo como diretor para África das operações do Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD).

Um xadrez que abrange 82 países e à volta de 1,7 mil milhões de pessoas só pode ser bastante complexo. Essa complexidade é agravada pelos desequilíbrios que a história provocou e pelas disparidades de desenvolvimento que existem entre os dois continentes. Por isso, o estabelecimento de parcerias de igual para igual deve ser a prioridade absoluta para ambas as partes. Esta é uma questão extremamente sensível. Nem sempre os dirigentes europeus têm mostrado suficiente tato político. Ainda existe uma lógica que vê doadores, de um lado, e necessitados, do outro. Ou, pior ainda, que olha para África como uma zona de instabilidade, que, conjugada com uma pressão demográfica ímpar, acabará por provocar migrações em massa com destino à UE. Para quem reflete assim, África aparece como um sorvedouro de dinheiro e uma ameaça.

A cimeira, prevista para 2020, foi sucessivamente adiada por causa da pandemia. Acontece agora, copresidida pela França e pelo Senegal, por estarem, neste momento, à frente das respetivas regiões. Não é a melhor coincidência. Existe, hoje, um sentimento antifrancês na África Ocidental e Central. E o presidente senegalês, Macky Sall, e mesmo Dakar e a sua elite, são vistos como os parisienses da África subsariana. Isto tem dado azo a que se diga que se trata de mais uma cimeira inspirada pelo Eliseu. Além disso, ficou a impressão de que, durante os trabalhos preparatórios, não se prestou atenção suficiente às preocupações dos países anglófonos e lusófonos.

A verdade é que o continente africano é muito diverso. Cada sub-região tem características específicas e até preconceitos profundos em relação às outras. Basta ouvir, como muitas vezes ouvi, o que diz um político da África Austral sobre a situação em certos Estados da África Central ou Ocidental para se perceber que a fachada esconde muitas brechas.

Estabilidade e prosperidade resumem as aspirações dos participantes.

A estabilidade pede que haja uma governação competente, em sintonia com os anseios das populações e capaz de proteger a sua segurança e os seus direitos. Esta é uma área que exige um diálogo franco entre os parceiros, para definir as responsabilidades de cada um. Desenhar planos em Bruxelas e depois desembarcar para os aplicar no Sahel, ou noutro sítio, acaba por levar à rejeição dessas iniciativas e dar espaço a derrapagens, como está a acontecer no Mali e na República Centro-Africana. Também não se pode aceitar uma junta militar no Chade e dizer que não a outra, no Burkina Faso, por exemplo. Ambiguidades assim só servem para desacreditar a cooperação vinda da Europa. Mais ainda, em matéria de luta contra o terrorismo é imperativo obter resultados visíveis sem demoras. A contínua deterioração da situação de segurança, no Sahel e mais além, pede que se equacione as razões do fracasso e que, com base nas lições apreendidas, se opere de maneira diferente.

A prosperidade deve assentar em cinco pilares. Primeiro, na luta contra a corrupção. Segundo, na eletrificação do continente. Bruxelas diz-nos que 50% da população africana não tem acesso à energia elétrica. Esse número está obviamente subestimado. Todos sabemos que as redes elétricas funcionam apenas quando funcionam, ou seja, são mais longos os cortes do que o abastecimento. Terceiro, numa revolução verde, que modernize a agricultura e a pecuária. Quarto, na industrialização, no processamento local das matérias-primas e dos produtos agropecuários. Quinto, na abolição efetiva das barreiras alfandegárias entre os países africanos. As trocas entre esses países não representam mais de 15% do comércio externo do continente. É muito pouco.

Vamos, assim, esperar pelos resultados da cimeira. E batalhar com otimismo.

11 FEV 2022 – A China, a Rússia, a paz na Europa e mais além

Estive ontem em contacto com uma fonte chinesa bem informada, residente em Beijing. O tema central da discussão foi a crise à volta da Ucrânia, um assunto sem relevo na imprensa do país. A comunicação social está focada nos Jogos Olímpicos de Inverno, a decorrer de modo exemplar, e no sucesso dos atletas chineses que nasceram nos EUA, mas optaram por competir sob a bandeira da China. O espaço que resta é dedicado a Taiwan e à reunião dos ministros dos Negócios Estrangeiros do Quad (Estados Unidos, Austrália, Índia e Japão), hoje a decorrer em Melbourne, e que é vista como sendo mais uma tentativa dos dois países anglo-saxónicos para criar uma aliança hostil à China. Quanto à Europa, o único assunto que parece preocupar Beijing continua a ser a Lituânia, por causa da abertura nesse país de uma representação comercial com o nome de Taiwan inscrito na fachada.

Durante a minha videoconferência, ficou claro que a China não vê qualquer tipo de vantagem num eventual conflito armado na Europa. Por várias razões.

Primeiro, porque uma confrontação desse tipo entraria rapidamente numa espiral incontrolável. Acabaria por ganhar uma dimensão extraordinária, muito para além das fronteiras ucranianas. Segundo, porque os mercados europeus contribuem de modo significativo para a prosperidade da economia chinesa. É fundamental que continuem a funcionar sem perturbações. A legitimidade de Xi Jinping assenta, em boa parte, num crescimento económico acelerado e constante. Terceiro, porque o conflito perturbaria fortemente a circulação de mercadorias por via-férrea, tendo em conta que os comboios vindos da China atravessam uma parte significativa do território russo, antes de chegarem aos destinos europeus. Quarto, porque a Polónia estaria certamente na linha da frente e seria, por isso, profundamente desestabilizada, numa altura em que os decisores chineses resolveram considerar esse país como uma das placas logísticas mais importantes, a partir da qual as encomendas vindas por via terrestre serão encaminhadas para o resto da Europa. Quinto, porque a Ucrânia é um importante parceiro comercial e agrícola da China – 80% do milho importado pela China provém dos campos ucranianos. Sexto, porque a narrativa oficial de Beijing assenta na promoção da paz internacional, com a China no centro dos esforços para a resolução pacífica dos conflitos e como um dos novos pilares do sistema multilateral.

Também entre nós ficou mais clara a razão que explica a ausência de qualquer referência à Ucrânia no comunicado conjunto que saiu da recente cimeira entre Xi e Putin. O comunicado fala explicitamente da NATO, que é ao fim e ao cabo o álibi estratégico das manobras de Putin, mas ignora a crise ucraniana. Uma crise que contraria, aliás, um dos princípios básicos da política externa chinesa que é o da inviolabilidade das fronteiras nacionais. Os chineses não veem com bons olhos a anexação da Crimeia nem a presença de tropas especiais russas na região ucraniana de Donbass, aí presentes para apoiar os grupos rebeldes. E não querem que se compare essa anexação ao problema de Taiwan, que é apresentado como uma questão interna da China.

A aliança entre Xi Jinping e Vladimir Putin assenta numa visão pragmática, não ideológica, por parte dos chineses. A China importa petróleo, gás e outras matérias-primas russas como também necessita de manter relações de boa vizinhança. A título de exemplo, note-se que a Rússia é o segundo maior fornecedor de petróleo e de carvão da China, e o primeiro, em termos de energia elétrica. Uma parte significativa da Nova Rota da Seda passa por território russo. Por outro lado, Beijing tem plena consciência de que Moscovo nunca voltará a ser a capital de uma superpotência, mas apenas de uma potência de segunda grandeza. A competição a sério é com os Estados Unidos da América. E para ganhar essa competição a China precisa, entre outras coisas, de uma expansão económica contínua, que depende, em larga medida, da prevalência de um clima de paz na Rússia, no resto da Europa e mais além.

04 FEV 2022 – Europa: desdramatizar e combater os amigos da onça

A diplomacia tem andado num frenesim nas últimas duas semanas. As ameaças russas foram levadas a sério e de repente todos na Europa e nos Estados Unidos acharam que seria indispensável falar com Vladimir Putin e também com Volodymyr Zelensky. E estes têm-se prestado ao jogo. Ainda há dias, Viktor Orbán esteve em Moscovo, e Boris Johnson em Kiev. À primeira vista, uma resposta enérgica às ameaças desencadeou uma série de iniciativas diplomáticas. As partes continuam a percorrer a via negocial, mesmo reconhecendo a ausência de progresso. Isso, só por si, e apesar do reforço das posições militares, que não tem conhecido tréguas, é positivo. A probabilidade de uma confrontação militar não deixou de existir, permanece aliás muito alta, mas já não é a única alternativa.

Ninguém tentou facilitar um contacto direto entre os principais interessados. Ora, seria importante que Putin e Zelensky se falassem diretamente. Mesmo tendo presente que a questão de fundo é muito maior do que a disputa entre a Rússia e a Ucrânia. A resolução pacífica de conflitos é sempre feita por partes, passo a passo, como quem resolve um puzzle. Começar pela aplicação do acordo de Normandia – que tem como objetivo o restabelecimento da paz nas zonas rebeldes do leste ucraniano – seria um grande passo no sentido certo.

Falta alguém que consiga fazer a ponte e a mediação entre os presidentes vizinhos. Infelizmente não vejo, na Europa ou numa organização internacional, muitos que o possam fazer. Mediação e prevenção de conflitos são duas áreas das relações internacionais particularmente difíceis. Assim o apreendi ao longo de décadas de prática. Exigem intermediários com grande autoridade moral, coragem pessoal, influência política e uma estrutura credível que os apoie. Neste momento, personalidades assim são aves raras, pois as organizações e os sistemas políticos foram ocupados por nacionalistas ou, então, por distintos moços de recados e outros oportunistas. Neste momento, com a exceção que Emmanuel Macron possa ser, a Europa está sem protagonistas capazes de se projetar para além das suas fronteiras nacionais.

Viktor Orbán também anda muito mexido na cena europeia, mas por razões meramente domésticas. A Hungria tem eleições legislativas marcadas para 3 de abril. Se não houver fraude – e aqui há um grande “se” -, Orbán poderá perder a batalha do voto popular. Por isso, garantir a seriedade desse ato eleitoral é especialmente importante para os que acreditam numa Europa democrática. O atual primeiro-ministro húngaro é de facto uma força negativa no panorama europeu. Entretanto, e antes da visita a Moscovo, Orbán esteve em Madrid, no fim de semana passado, para participar num novo encontro dos partidos ultraconservadores, neofascistas e ultranacionalistas da UE.

Foi uma reunião organizada pelo partido espanhol da extrema-direita Vox. O tema era “defender a Europa”. Curiosamente, só depois de muita insistência por parte do primeiro-ministro polaco é que os participantes incluíram no comunicado final uma referência à atual postura agressiva do Kremlin e ao perigo que isso representa para a paz na Europa. Mesmo assim, Marine Le Pen, quando publicou o comunicado no seu site de propaganda pessoal, suprimiu gentilmente essa referência às movimentações russas. Provou assim, mais uma vez, que Putin pode contar com a benevolência de certos grupos neofascistas e xenófobos europeus. E com Viktor Orbán, no seio da UE. E todos estes, reciprocamente, com o seu apoio, pilim e mais gás a preço de correligionário.

Putin também pode contar com um ou outro comentador que acha ser de bom-tom e progressista servir de câmara de eco à propaganda e às falsidades que o Kremlin põe a circular. Trata-se, nalguns casos, de intelectuais que fizeram a sua formação ideológica no quadro da Guerra Fria. Para outros, é apenas uma maneira de tentar mostrar que são mais espertos e que compreendem como ninguém a estratégia em jogo. Em ambos os casos, embora não sejam parentes políticos de Le Pen ou de Orbán, na prática acabam por fazer um serviço idêntico.

28 JAN 2022 – Uma diplomacia com força

Ao criar as Nações Unidas, em 1945, os fundadores tinham em mente estabelecer uma organização supranacional capaz de resolver de modo pacífico os futuros conflitos, em particular os que pudessem ocorrer entre as grandes potências. Estávamos no fim da Segunda Grande Guerra, que trouxera níveis incríveis de sofrimento e de destruição. A preocupação maior era a de evitar novas confrontações militares. Assim estabeleceram uma estrutura que dava a primazia às negociações diplomáticas e que deveria evitar que situações como a que agora existe à volta da Ucrânia resvalassem para uma nova guerra. Passadas mais de sete décadas, os fundadores, se ainda estivessem entre nós, ficariam profundamente abalados ao ver que a ONU está completamente marginalizada, aqui, nesta parte da Europa, no que respeita à crise entre a Rússia e o Ocidente. Como também o está noutras geografias, onde as superpotências intervêm diretamente na luta pelo que consideram ser os seus interesses vitais.

A aposta na diplomacia, no que diz respeito à Ucrânia e à questão mais ampla que é a da segurança europeia, faz-se agora noutros fóruns – na UE, na NATO, na OSCE em Viena. E, sobretudo, nas discussões bilaterais entre americanos e russos, deixando os europeus numa posição secundária, embora sejam eles quem terá de pagar a parte mais importante da fatura, o custo das decisões que vierem a ser tomadas. Uma fatura cuja dimensão ainda permanece por definir, nos seus contornos económicos, financeiros ou mesmo militares.

Assim, não é apenas a ONU que fica de fora, são igualmente os próprios europeus, por muito que se negue essa evidência. Basta ver que não existe qualquer tipo de entusiasmo no Kremlin em discutir uma nova arquitetura de defesa na Europa com os dirigentes alemães, franceses ou outros. Quer se queira ver quer não, a verdade é que os russos só acreditam em possíveis entendimentos com os americanos. No que respeita à UE, a Rússia está apenas interessada nos Estados membros tecnológica e economicamente mais avançados, um a um, e apenas por razões de negócios. Ainda nesta quarta-feira, Putin manteve uma videoconferência com os dirigentes de grandes multinacionais italianas (Enel, Banco UniCredit e a companhia de seguros Generali, entre outras), enquanto, ao mesmo tempo, ignorava as propostas de desanuviamento que Macron lhe fizera chegar e reforçava a presença das suas forças armadas na Bielorrússia, a dois passos de Kiev.

Tornou-se evidente, de novo, que continuamos inseridos num quadro internacional em que a força armada, ou pelo menos quem a tem, faz a lei. Daí resulta um impacto muito negativo sobre o papel político da ONU. Também representa um desafio fundamental para a UE, que não tem as capacidades militares e de política estrangeira que seriam necessárias para fazer valer os seus pontos de vista e interesses estratégicos. A crise atual tem de ser transformada numa oportunidade para reforçar essas capacidades. É preciso diminuir a dupla dependência da Europa – militar e política – em relação aos EUA como também é fundamental reduzir a dependência energética de certos Estados membros da UE face à Rússia.

Voltando à diplomacia, recordo que Luís XIV fazia gravar nos seus canhões a locução latina ultima ratio regum, para lembrar que no armamento pesado estava “o último argumento dos reis”. Ou seja, para que a diplomacia possa ser eficaz quando se quer a paz, não se pode descurar a preparação bélica. Só que as guerras de hoje já não se fazem apenas com canhões: as medidas económicas e financeiras, as restrições políticas, a cibernética, a informação e a contrainformação fazem agora igualmente parte do arsenal. É aquilo que se designa por uma resposta integrada perante uma agressão exterior. Essa resposta é particularmente necessária quando do outro lado temos um regime autocrático, liderado por um indivíduo que se apresenta como o protetor ultranacionalista do seu povo e da cultura nacional, que designa os oponentes como traidores e que não hesita em utilizar a violência armada, interna e externamente, para conseguir os seus objetivos de poder pessoal.

21 JAN 2022 – De Davos a Genebra: do futuro à premência do presente

Davos 2022 termina hoje. A reunião ocorreu de modo virtual, por causa da pandemia. Não assistimos, como já se tornara habitual, ao vaivém de um grande número de aviões particulares, com os poderosos deste mundo a convergir para a famosa estação alpina suíça. E a emitir vastas quantidades de dióxido de carbono.

Até 2020, ser visto em Davos confirmava que se fazia parte da elite global, fosse ela política, económica, académica ou jornalística. No ano passado, a covid-19 impediu a realização dessa grande manifestação de poder. Agora, tivemos uma reunião que passou praticamente despercebida. Mas não foi apenas a pandemia que lhe retirou a ribalta. A situação geopolítica na Europa concentrou as maiores preocupações durante a semana. Os temas em discussão em Davos – a pandemia e as desigualdades no acesso às vacinas; a transição energética; a revolução tecnológica e numérica, para citar apenas os mais importantes – foram totalmente ofuscados pelas jogadas de Vladimir Putin em matéria de segurança europeia.

Mas falemos um pouco de Davos 2022. A velha raposa que é o fundador e o patrão do Fórum Económico de Davos, Klaus Schwab, convidou Xi Jinping para pronunciar o discurso de abertura. Esse gesto foi devidamente apreciado pelo poder chinês. Schwab, que não dá ponto sem nó, reforçou assim as relações entre a sua organização e Beijing. E enviou, ao mesmo tempo, uma mensagem forte de reconhecimento da China como ator primordial na cena global.

Para não pôr todos os ovos no mesmo cesto, também pediu ao primeiro-ministro indiano que interviesse no primeiro dia do fórum. O contraste entre Xi Jinping e Narendra Modi foi flagrante.

O dirigente chinês procurou acima de tudo sublinhar o empenho do seu país como um contribuinte maior para a estabilidade internacional, contra o uso da força e pelo reforço do multilateralismo, da cooperação e da paz mundiais. Defendeu a globalização. Disse mesmo que a China é um porto seguro para o capitalismo internacional. Aproveitou ainda para atacar os Estados Unidos, que acusou de serem uma fonte de tensões, um país que se fecha sobre si próprio e cria obstáculos à recuperação económica dos países mais pobres.

Modi, ao invés, falou sobretudo para os seus concidadãos. Enalteceu os êxitos que a Índia tem conhecido nos últimos tempos, incluindo na luta contra a pandemia, na produção de vacinas e nas áreas tecnológicas e digitais.

A ambição da China é a de desempenhar um papel proeminente na cena Internacional. A Índia continua muito virada para os seus problemas internos. Modi quer, acima de tudo, transformar o país numa economia moderna e tecnologicamente avançada.

António Guterres fechou a lista dos primeiros oradores. Foi uma espécie de porta-voz dos países menos desenvolvidos. Esse é o único terreno que lhe resta para poder jogar com alguma segurança. Na sua intervenção, sublinhou as dificuldades que esses países têm encontrado para combater a pandemia. Defendeu a urgência de uma reforma do sistema financeiro global, para o tornar mais acessível aos países com poucos recursos, e insistiu nas questões do clima.

Enquanto tudo isto acontecia, a Europa e os Estados Unidos interrogavam-se sobre as intenções de Vladimir Putin no respeitante à Ucrânia e à NATO. Estas são questões particularmente urgentes, e de alto risco. Davos tem, quer se queira quer não, o mérito de levantar a frio grandes interrogações sobre o futuro. Mas, neste momento, a realidade na nossa parte do globo é bem mais quente e imediata. Putin continua a movimentar tropas para zonas próximas da Ucrânia e a ameaçar a estabilidade europeia. São incertos os resultados da reunião de hoje, em Genebra, entre Antony Blinken e Sergey Lavrov. Não creio que possam abrir um processo de diálogo. A parte russa parece querer mostrar que não fecha a porta diplomática, quando na verdade aposta na intimidação e na duplicidade. Aqui, é fundamental ter presente a lição aprendida em 1938, na conferência de Munique: apaziguamento sem concessões mútuas serve apenas para aguçar o apetite dos agressores de toda a espécie.

14 JAN 2022 – Grandes problemas pedem grandes soluções

Angela Merkel chegou ao poder, em 2005, porque o Partido Social-Democrata (SPD) recusou fazer uma aliança com a extrema-esquerda, que tinha as suas raízes ideológicas na extinta República Democrática Alemã. Se a tivesse feito, o SPD ficaria com a liderança do novo governo e o destino de Merkel entraria numa via secundária. O SPD, que pertence à mesma família política do partido de António Costa, havia obtido 34% dos votos nas legislativas de setembro desse ano, um ponto percentual menos do que o agrupamento CDU/CSU, que tinha Merkel por candidata. Após três semanas de negociações, o centro-direita e os socialistas chegaram a um acordo de governação. O parlamento alemão aprovou então a coligação de ambos. Representavam cerca de 70% do eleitorado.

Merkel, à cabeça dos mais votados, assumiu a chefia do governo. Acabou por liderar a Alemanha durante 16 anos, sempre em coligação. Durante o seu último mandato, teve o dirigente dos socialistas, Olaf Scholz, como vice-chanceler. A 8 de dezembro, Scholz passou a ser o novo chanceler, no seguimento das eleições de setembro passado. Também ele governa à frente de uma coligação, que reúne os Verdes, que se situam à esquerda do espectro político, e os liberais (FDP), à direita. O programa comum foi negociado ao longo de dois meses, medida por medida, sempre com a preocupação de se chegar a um compromisso. Durante o processo ficou claro que se pode negociar com todos, exceto com os extremistas, os xenófobos e os liberticidas.

A cultura política alemã é baseada na procura de plataformas de entendimento e na estabilidade do sistema. Tem sido assim desde 1949, quando Konrad Adenauer chefiou o primeiro governo democrático do pós-guerra, baseado num acordo entre três partidos, no que era então a parte ocidental da Alemanha. Trata-se, em resumo, de manter uma linha de rumo previsível, equilibrada e representativa do maior número possível de eleitores. Uma grande parte do crescimento económico, da modernização e do bem-estar social que definem a Alemanha de hoje assenta na estabilidade e na moderação de quem está no poder.

Annalena Baerbock, dirigente dos Verdes e agora ministra dos Negócios Estrangeiros, disse que o novo governo “reflete a diversidade” que existe no país. Esta afirmação poderá parecer exagerada. Mas a verdade é que existe ao nível das lideranças uma vontade de incluir e de procurar um equilíbrio entre os interesses dos diferentes segmentos da sociedade. Ali não existe, como acontece noutros horizontes políticos, a noção de “inimigo principal”, o que não impede de excluir das conversações os extremistas de todo o tipo. Quem pensa a ação partidária em termos de “inimigo” vive, talvez sem se aperceber, num quadro ideológico totalitário, em que a luta política é vista como uma antecâmara do esmagamento dos adversários ou como uma espécie de guerra civil sem tiros. Não há inimigos, numa democracia, entre todos os que respeitam a Constituição e compreendem que a prosperidade de cada cidadão é fundamental para o progresso e a segurança de todos.

O exemplo alemão não é único na UE. Na porta ao lado, nos Países Baixos, as coligações governamentais multifacetadas têm igualmente sido a norma. Como na Bélgica, Itália, Irlanda, Finlândia, Luxemburgo e assim sucessivamente. Sem deixar de mencionar o caso curioso que é a Dinamarca, que tem um governo composto exclusivamente de sociais-democratas (socialistas), mas que beneficia do apoio parlamentar estável de três partidos de esquerda.

As democracias avançadas baseiam-se na procura de grandes consensos. Metade mais um pode ser suficiente para ter a maioria no parlamento e pôr a máquina governativa em marcha. É, no entanto, uma conceção minimalista e apenas formal da democracia. A revolução digital, a competição global, os enormes desafios energéticos, securitários e sociais, tudo isso e muito mais só poderá ser tratado com a profundidade necessária se houver uma ampla vontade comum de reformar, modernizar, simplificar e proteger. Temos pela frente questões muito complexas.

07 JAN 2022 – Do nuclear à afirmação e à credibilidade da Europa

Adeclaração conjunta sobre a prevenção de guerras nucleares, emitida nesta semana pelos cinco membros permanentes do Conselho de Segurança da ONU, é um bom começo do novo ano. É a primeira vez que a China, os Estados Unidos, a França, o Reino Unido e a Rússia se comprometem a evitar um conflito nuclear entre eles, reconhecendo sem ambiguidades que uma confrontação desse tipo não tem vencedores e, por isso, não deve ocorrer. Afirmam, igualmente, que o seu armamento nuclear tem apenas fins dissuasivos e que continuarão a negociar para pôr fim à competição entre eles, no que respeita a esse tipo de armas. E fixam, como objetivo a prazo, conseguir o desarmamento nuclear.

Numa altura em que existem rivalidades muito sérias entre alguns desses países, que valor se pode dar a uma declaração assim? É fácil responder com ceticismo, face à presente conjuntura internacional, que inclui tensões muito graves à volta, entre outros casos, da Ucrânia e de Taiwan. E que regista um acréscimo enorme dos gastos e da inovação militares, por parte dos três grandes: China, Estados Unidos e Rússia. Mais ainda, que conhece, ao nível global, um período de incertezas sem precedentes para as gerações atuais, com riscos e perigos que podem desestruturar profundamente o frágil ordenamento político e económico mundial.

É melhor, no entanto, neste início de ano, assumir uma visão otimista e sublinhar o lado positivo da declaração. O acordo sobre o perigo nuclear poderá querer dizer que existe a compreensão, o realismo, ao nível dos líderes das grandes potências, que prosseguir na via do confronto acarretará custos enormes para todos. Na realidade, um conflito armado entre alguns desses países seria uma catástrofe de proporções inimagináveis, tendo em conta a capacidade de destruição existente. Entre colossos não existem pequenas guerras controladas. Se soasse um primeiro tiro, seria sempre uma grande guerra.

Num cenário de crises complexas como o presente, 2022 tem de ser um ano de diálogo e de reforço da cooperação internacional, nas áreas mais promissoras. É isso que se exige a quem mais manda neste mundo.

As negociações que começarão na próxima semana, em Genebra e em Bruxelas, entre a Rússia, os EUA e a NATO não oferecem, à partida, grandes esperanças. Mesmo assim são importantes. Várias décadas de trabalho na cena internacional ensinaram-me que a maioria das negociações começa com expectativas muito baixas. Com o tempo, podem transformar-se em exercícios positivos. Para obter resultados, é preciso ser-se paciente e perseverante. E manter o contacto ao mais alto nível e o foco no que é essencial.

As instituições europeias queixam-se por não estarem incluídas nas conversações com a Rússia. Sobretudo porque a discussão será sobre a segurança e a estabilidade na Europa. Também porque muitos na UE consideram a normalização do relacionamento com a Rússia como uma prioridade mutuamente vantajosa.

Acho um erro que o presidente Biden não tenha insistido na participação europeia. Ele sabe que o enfraquecimento da União Europeia é uma das maquinações estratégicas do líder russo. Putin quer uma Europa tão fragmentada quanto possível. Marcou agora um ponto importante.

Não chega dizer-se que 21 dos 27 membros da UE são igualmente membros da NATO e que por isso a Europa está bem representada. Aqui não pode haver ilusões: quem define a política russa da NATO são os EUA e alguns estados do Leste Europeu. Também não é argumento que pese referir que a UE não tem uma posição comum em relação à Rússia. A preparação de negociações deste tipo seria um momento catalisador para fazer avançar a definição do posicionamento europeu.

Ainda é possível emendar o erro. Os ministros dos Negócios Estrangeiros da NATO estão hoje reunidos por videoconferência para discutir o dossiê. Seria oportuno que vários de entre eles levantassem a questão do envolvimento da UE. E que continuassem a fazê-lo nos próximos dias. A afirmação e a credibilidade do projeto europeu sairiam assim reforçadas.

02 JAN 2022 Uma presença muito visível da NATO perto das fronteiras russas permite consolidar o poder autocrático de Putin (Entrevista ao DN)

Surpreendeu-o o primeiro ano de Joe Biden como presidente? Nota francas diferenças na política externa americana em relação a Donald Trump?

No geral, este primeiro ano da presidência Biden foi positivo, também na área da política externa. Sobretudo para quem olha para Washington a partir da União Europeia. A frequência dos encontros entre responsáveis americanos e europeus aumentou significativamente. E de modo construtivo. Mas também houve alguns erros, que deixaram marcas profundas. O mais grave: a maneira da retirada do Afeganistão, decidida e executada unilateralmente pela administração Biden, sem consultas políticas nem coordenação operacional com os dirigentes europeus. A afronta à França pelo arranjo trilateral entre os EUA, a Austrália e o Reino Unido, foi outro mau exemplo. Levou à anulação de um contrato de cerca de 55 mil milhões de euros em submarinos que os franceses deveriam ter construído e à subalternização da França na cena do Indo-Pacífico. Esse tipo de erros não se esquecem facilmente. Joe Biden não esteve atento e foi ligeiro, apesar da sua experiência política. Comparando com Donald Trump, é evidente que a política externa americana aparece agora mais coerente e previsível. Mas, na realidade, pouco mudou. Por exemplo, Joe Biden deveria prestar mais atenção à América Central. Na minha ótica, as maiores ameaças externas à estabilidade dos EUA provêm dessa região: migrações em massa, desespero humano, drogas, insegurança, violência, corrupção política, tudo isso tem um potencial explosivo às portas dos Estados Unidos. Ainda, Biden deveria enviar a Vice-presidente Kamala Harris mais frequentemente ao estrangeiro, para reforçar os contactos de alto nível e mostrar a presença e a solidariedade americanas. Isso serviria, igualmente, para consolidar a imagem da VP e permitir-lhe o impulso necessário para que no futuro possa ser a primeira mulher eleita presidente dos EUA.

A ascensão mas últimas décadas da China, sobretudo do ponto de vista económico mas também militar, permite-lhe ambicionar a liderança mundial ou há limites quando se é uma superpotência em vias de desenvolvimento?

A China tem ambições globais. Não apenas na área militar – a sua frota naval já é a maior do mundo, com 355 navios de todo o tipo à sua disposição, e isso só contando os de primeira grandeza – mas nos mais diversos domínios. A Nova Rota da Seda, lançada pelo Presidente Xi Jinping em 2013, não é apenas um programa gigantesco de investimentos em infraestruturas através do globo. É uma visão da China que se inspira na sua história milenar e que a quer colocar, de novo, no centro das relações internacionais. E o país joga com vários trunfos: a dimensão demográfica; o nacionalismo enraizado numa civilização antiga e distinta; e uma classe política que se pode dar ao luxo de pensar a longo prazo, sem receio das surpresas que as eleições sempre acarretam nos regimes democráticos. Mas as vantagens também se podem transformar em problemas e prejudicar a imagem internacional. A dimensão atemoriza, a sua força económica cria arrogância e dependências difíceis de aceitar por outros povos, as diferenças culturais geram, tantas vezes, reações xenófobas. Podemos estar perante um gigante que gostaria de ser querido, mas que na realidade mete medo. É nessa fase que agora estamos, quando na realidade todos ganharíamos se se construíssem mais pontes entre as grandes potências.

Assinalaram-se há dias os 30 anos do fim da União Soviética, mas atual tensão entre o Kremlin e o Ocidente parece do tempo da Guerra Fria. Os alargamentos da NATO a Leste são a justificação para a agressividade da Rússia?

A Rússia e a NATO estão emaranhadas num impasse de desconfiança: nenhuma parte acredita na outra. Daqui nasce uma espiral de agressividade, que na realidade é favorável ao reforço do poder interno do Presidente Vladimir Putin. Permite-lhe vender aos seus concidadãos uma imagem de homem forte, de defensor da pátria e da cultura russa, de uma Rússia imperial, determinante na arena internacional. Uma presença muito visível da NATO perto das fronteiras russas permite, ao fim e ao cabo, consolidar o poder autocrático de Putin. Serve os seus interesses e as suas ambições de presidente para a eternidade. A NATO cresceu para Leste porque os Estados da região assim o quiseram, de modo soberano e democrático. E porque conseguiram atingir os critérios exigidos pela Organização: um sistema político democrático, uma economia de mercado, subordinação das estruturas militares à ordem constitucional e ao poder civil, e o compromisso de resolver os conflitos de modo pacífico. O desafio é agora, para a NATO, de encontrar um equilíbrio entre a defesa de cada estado-membro e a contenção operacional a Leste. Ou seja, é preciso evitar destacamentos excessivos de meios para zonas que possam provocar uma escalada militar do outro lado da fronteira. Para isso, há que negociar concessões e criar comissões mistas que permitam desfazer, pouco a pouco, o impasse da desconfiança. Convém lembrar que a Rússia é parte integrante da cultura europeia. O papel dos líderes é o de transformar essa realidade histórica num processo de desanuviamento e num futuro partilhado, de paz.

Com o Brexit, confirmou-se que a União Europeia nunca será uma verdadeira potência, pois é muito menos do que a soma das partes e até perde algumas delas?

A noção de potência evoluiu neste século. E ainda bem. Já não é simplesmente o resultado de uma projeção de força armada. A velha noção de poder militar perdeu muitas penas no Vietname e mais recentemente no Iraque e no Afeganistão e já não voa muito alto. Quem fala numa Europa da defesa deveria ter presente esses exemplos. Isso não quer dizer que as forças armadas não sejam importantes. Mas, nas relações internacionais, o que conta e é duradouro é o poder de influência. A capacidade e a habilidade de levar outros estados a adotar certas medidas, seguir determinados valores, olhar para nós como uma fonte de mediação de conflitos e de estabilidade, como um modelo de democracia. É nisso que a UE deverá apostar. No poder do convencimento, com base nos princípios da liberdade e dos direitos das pessoas. Penso também que com o tempo o Brexit pode ser entendido como uma vantagem. A saída de um país que na realidade nunca quis fazer parte do conjunto deve permitir o reforço da unidade e aguçar a identidade europeia. A identidade histórico-cultural é uma alavanca de poder. A Europa precisa de investir nessa via.

A crise demográfica a Norte e a pobreza a Sul fazem das migrações uma realidade explosiva ou é possível conciliar a necessidade de gente que, por exemplo, a Europa tem com as aspirações ter um projeto de vida de milhões de africanos?

As migrações fazem parte da história: no nosso caso, fomos para o Brasil, para a América, para várias partes do mundo. E continuarão a fazer parte do futuro. Os fluxos serão diferentes dos que aconteceram no passado – agora do Sul para o Norte e do Leste para o Ocidente – mas as pessoas terão ambições semelhantes às das gerações de sempre. Partirão para fugir à fome e ao medo, como nós fizemos nos últimos séculos. A instabilidade e a insegurança, a pobreza e o crescimento demográfico acelerado vão empurrar muitos milhões de africanos para a emigração. A maioria dirigir-se-á para outros países do continente, nomeadamente para os estados litorais, onde sempre aparecem algumas oportunidades de vida. Muitos outros procurarão seguir as passadas dos que agora se arriscam a atravessar o Mar Mediterrâneo. A Europa continuará a ser o grande íman. Mas a chegada em massa de pessoas de aparência física e culturalmente diferente é um tema politicamente delicado. A partir de uma certa proporção pode ser aproveitado como um cavalo de batalha pelos extremistas de direita e os ultranacionalistas europeus. Ou seja, dá-lhes uma bandeira política e um pretexto para ganhar espaço de influência. Tudo isso deve ser bem pesado e entrar na agenda política. Com também será necessário ter em conta a escassez de mão- -obra em certos sectores das economias europeias, incluindo no respeitante à prestação de serviços às pessoas de idade avançada. Aí, como na agricultura, veremos muitas caras novas, vindas de longe. Noutras áreas, a automatização e a digitalização contribuirão para que não se note o decréscimo da população europeia em idade ativa. Mesmo com semanas laborais mais curtas – semanas de quatro dias, 28 horas de trabalho por semana, esse é o sentido em que vamos – mas vivendo na era digital e do 5 ou 6G, a carência de mão-de-obra não será tão evidente. E será nesses sectores que os movimentos nacionalistas irão recrutar os seus militantes anti-imigração.

De Joe Biden a Xi Jinping, de Jair Bolsonaro a Narenda Modi, passando por Vladimir Putin, Boris Johnson, Emmanuel Macron, Ali Khamenei, Cyril Ramaposa ou Fumio Kishida, concorda com quem diz que geral os líderes de hoje são uma sombra das grandes figuras do passado, mesmo recente?

Os tempos são outros, é muito difícil fazer comparações. No passado, o poder e as relações sociais tinham a forma de pirâmides. Aceitava-se mais facilmente a hierarquia e o comando vindo do topo. Hoje, vivemos em sociedades tendencialmente horizontais, cada um vê-se como igual ao seu vizinho. A autoridade, para ser aceite, precisa de outros atributos, muito para além do formalismo das funções. Para mais, existe uma abundância de informação largamente acessível, mas geradora de confusões, de fragmentação das opiniões e de espaço oportunístico para os mais diversos manipuladores da opinião pública. Num mundo horizontal, confuso e fragmentado, só pode ser um líder aceite e positivo quem conseguir dar um sentido otimista e mobilizador ao contexto em que vivemos. O líder tem de saber explicar o que se passa, propor um rumo e dar esperança ao futuro.Quando digo liderança positiva, refiro-me a quem tenha uma agenda progressista e transformadora da sociedade, ao contrário de um Donald Trump, que também considero um líder, mas negativo. Também não estou a falar de líderes neutros, populares certamente, mas que não aproveitam essa popularidade para fazer avançar os seus países.

A pandemia está a mostrar qualidades de dirigentes e de sociedades ou, pelo contrário, revelou inesperadas fragilidades dos países?

Nunca se está verdadeiramente preparado para uma crise pandémica. Sobretudo para uma como a presente, que tem uma natureza global, um impacto profundo e que persiste ao longo de já mais de dois anos, e surge com novas mutações. Apesar de tudo, conseguiram-se progressos muito rápidos na descoberta de várias vacinas eficazes e desde então foi possível produzir doses em quantidades astronómicas. Nos países mais avançados, as campanhas de vacinação desenrolaram-se bem, embora seja surpreendente ver a percentagem relativamente elevada de pessoas que ainda não se vacinaram, podendo fazê-lo, em países como os EUA ou alguns Estados europeus. Noutros países, as de cisões de confinamento e os fechos de fronteira foram tomadas ao sabor da política de curto prazo e sem atender às recomendações da OMS. O grande problema, no que respeita ao combate à pandemia, vive-se nos países mais pobres. A cooperação internacional é fundamental.

A cooperação internacional tem funcionado no combate à covid- -19, mostrando a importância de agências como a OMS?

A resposta à Covid-19 só será eficaz se houver um esforço global. A cooperação internacional tem de ser intensificada, porque muitos dos países das regiões menos desenvolvidas não têm nem os recursos nem a logística necessária para organizar eficazmente campanhas nacionais de vacinação. Intensificar a ajuda a esses estados é uma prioridade absoluta para obviar o aparecimento de mais variantes e pôr um termo à pandemia. Existe um mecanismo de cooperação vacinal estabelecido pela OMS desde abril de 2020 chamado COVAX. Esse mecanismo é a melhor maneira de chegar aos mais pobres do mundo. Deve ser apoiado sem reservas e com os meios adequados.

Considera que uma reforma do sistema das Nações Unidas é essencial para a tornar mais eficaz perante as grandes crises do planeta?

As Nações Unidas integram várias agências, programas e fundos. A esse nível, tem havido reformas, reorganizações e adaptação aos novos desafios. Essas componentes do sistema, que incluem siglas conhecidas como o ACNUR, o PAM, a UNICEF, o PNUD, a OIM, os Capacetes Azuis e assim sucessivamente, funcionam bem e são altamente apreciadas por todo o mundo. A grande questão está ao nível do Conselho de Segurança. Por duas razões: o Conselho não reflete a relação de forças que atualmente existe no mundo; o direito de veto deveria ser limitado – partindo do princípio que é impossível proceder à sua abolição – a situações que pudessem na verdade pôr em causa a paz e a segurança internacionais. Neste momento, há um abuso do direito de veto por parte de certos membros permanentes do Conselho. Procuram assim proteger estados-clientes, ou seja, regimes que violam abertamente as normas internacionais e os direitos humanos. A reforma do Conselho de Segurança é um tema que daria, só por si, para uma longa entrevista. A realidade é que essa reforma, que está a ser tentada há mais de 30 anos, não irá acontecer tão breve. Por isso, é fundamental que as outras componentes do sistema, que não dependem diretamente do funcionamento do Conselho, continuem a dispor dos recursos necessários para cumprir os seus mandatos. E que o Secretário-Geral tome as iniciativas políticas que a Carta da ONU lhe permite e manda tomar.

O combate às alterações climáticas está a ser feito de forma sincera pelos diferentes países, ou os interesses nacionais sobrepõem-se mesmo quando a ameaça é global?

Não podemos ter ilusões. As grandes questões internacionais, mesmo as mais prementes como é o caso do combate às alterações climáticas, são sempre vistas pelos políticos a partir do prisma nacional. Os políticos nunca se esquecem que são eleitos pelos seus concidadãos e não pelas grandes assembleias globais que se reúnem aqui e acolá para discutir temas de impacto mundial. Apesar disso, penso que existe uma crescente pressão nacional, em muitos países, e na arena internacional também, para que as questões do ambiente e do clima façam parte das agendas nacionais e globais. Os movimentos de cidadania, com um notável papel desempenhado pelos jovens, os poderes ao nível municipal e local, as grandes empresas e certos partidos políticos têm feito avançar a ação climática. A COP26 correu melhor do que era esperado. Mas há sobretudo que acelerar o passo e continuar, quotidianamente, a insistir na urgência de um novo tipo de energias e de uma relação mais equilibrada entre a economia e a natureza.

leonidio.ferreira@dn.pt

24 DEZ 2021 – Paz. Dignidade. Igualdade. Planeta

Nesta véspera de Natal, parece-me apropriado lembrar o lema atual das Nações Unidas: “Paz, dignidade e igualdade num planeta saudável”. É um apelo à implementação de políticas que coloquem as pessoas e a natureza no centro das intervenções públicas. Exprime bem os votos que eu próprio aqui gostaria de deixar.

Vivemos uma realidade complexa, cheia de inquietações e perigos reais. A própria ONU surge aos olhos de muitos como enfraquecida e marginalizada. Neste contexto, é fácil perder a esperança, confundir realismo com pessimismo e cair-se na atitude do salve-se quem puder, cada um por detrás dos seus muros. Também se nota a tentação de recuperar o crescimento que a pandemia fez perder com programas económicos baseados em receitas insustentáveis. Ou seja, sem atender às consequências a prazo, ao endividamento excessivo que pesará sobre as gerações futuras, aos compromissos ambientais e à necessidade de transformar a maneira como vivemos e como nos relacionamos com outras sociedades, sobretudo com as menos desenvolvidas. O eleitoralismo faz da democracia um exercício de oportunismo político.

As exigências e as manobras militares russas são a ameaça mais imediata à paz. Escrevi sobre isso na última semana. Desde então, as condições expressas por Putin – e a linguagem utilizada – tornaram-se ainda mais categóricas e inaceitáveis. E a preparação militar intensificou-se. Estamos a dois dias – 26 de dezembro – do trigésimo aniversário da extinção da União Soviética. Um momento histórico, visto por Putin como a grande tragédia da Rússia milenar.

Que razões estarão por detrás da presente escalada russa?

Essa é a grande questão, muito para além da velha cassete da narrativa sobre a expansão da NATO para leste. A resposta mais plausível será a de pedir o céu e a terra, para obter um não, e criar assim um pretexto para anexar uma parte da Ucrânia. E, ao mesmo tempo, reafirmar a determinação e a força do Kremlin.

Mas qual é o objetivo estratégico de Putin?

Reforçar o seu controlo da política interna não será uma explicação suficiente, mesmo reconhecendo que há uma erosão acentuada da sua popularidade. Viu-se: as legislativas de setembro passado foram um exercício maciço de fraude e de coação, para esconder a amplitude do descontentamento popular.

Poderá então ser uma tentativa de paralisar a NATO, dividindo-a, mostrando as suas fragilidades. Simultaneamente, permitirá enviar um sinal aos países bálticos. E que não se faz política nas imediações da Rússia sem a luz verde do Kremlin.

Seja a intenção que for, é preciso insistir na coexistência pacífica na Europa. Em concessões mútuas. Como, aliás, noutras partes do mundo. Na Síria, em guerra há mais de dez anos. Na Palestina, no Sahel, na África Central, na Etiópia, em Myanmar, no Iémen. Hoje, é dia de voltar a mencionar esses e outros locais tão martirizados.

Dignidade e igualdade significam respeitar os direitos básicos de cada pessoa, como definidos na Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1949 e nas convenções e protocolos adicionais. A proclamação que “todos os seres humanos nascem livres e iguais em dignidade e direitos” e têm “direito à vida, à liberdade e à segurança pessoal” aplica-se à humanidade, independentemente dos contextos específicos de cada nação.

Reconheço que a visão que inspirou a Declaração Universal coloca o indivíduo no centro dos direitos, enquanto em certas culturas o bem-estar da comunidade é apresentado como tendo a primazia. Num caso e no outro, trata-se de pessoas, da proteção das suas vidas e da sua criatividade. Aí, não há diferenças culturais.

Sobre o planeta, passado pouco mais de um mês da COP26, apenas umas palavras, para partilhar um pensamento de solidariedade com os milhares de vítimas das recentes catástrofes naturais. As cheias no Sudão do Sul, com regiões inteiras submersas e a miséria transformada em desespero. Os tufões nas Filipinas. Os tornados nos EUA. Os fenómenos climáticos extremos são cada vez mais avassaladores. Fique-nos a lembrança, em relação a este grande desafio e aos outros, que esta deve ser a época do renascimento.

17 DEZ 2021Uma época de festas sem tréguas

Este pode ser um fim de ano atribulado, na cena internacional. Há três grandes crises à porta – o Irão, a Rússia e a nova variante da pandemia. Estas coisas tendem a rebentar na pior altura, quando os políticos andam a celebrar as festas, a esquiar na neve ou a apanhar sol longe dos gabinetes. Dizer que se vai entrar num período em que muito pode acontecer não é pessimismo. É apenas sinal de que se está atento a uma realidade particularmente complexa.

Comecemos pelo Irão. O debate desta semana no Conselho de Segurança da ONU, sobre o programa nuclear iraniano, mostrou que não existem condições para fazer renascer o acordo assinado em 2015 entre Teerão e os cinco membros permanentes do Conselho de Segurança, mais a Alemanha e a União Europeia. Os EUA continuam a impor um regime extremamente apertado de sanções económicas. E apesar do Irão se ter voltado para a China, a verdade é que as sanções americanas têm um impacto enorme. 

Por outro lado, o novo governo iraniano tem estado a acelerar o seu programa de enriquecimento de urânio, em clara violação do Plano de Ação de 2015. Neste momento, já acumulou suficiente material físsil para poder produzir várias armas nucleares. Em simultâneo, acelerou a produção de mísseis balísticos e de meios aéreos capazes de transportar uma carga nuclear. Tudo isto é muito grave e levanta muitas bandeiras vermelhas nos sítios do costume. 

Na altura da reunião do Conselho, os representantes permanentes da Alemanha, França e Reino Unido junto da ONU publicaram uma declaração conjunta para exprimir a profunda preocupação dos seus governos. A frase final dessa declaração diz tudo: “A contínua escalada nuclear do Irão significa que estamos a chegar rapidamente ao fim da estrada”. Uma afirmação destas envia o sinal de que em breve será altura de optar por outras soluções, para além da diplomacia. A probabilidade é agora mais forte. 

No que respeita à Rússia, o Presidente Putin reuniu-se na quarta-feira com o seu homólogo chinês, Xi Jinping, por videoconferência. O principal objetivo parece ter sido mostrar uma frente unida contra os ocidentais. Seria ir longe demais, se se visse nesta cimeira um esforço de coordenação para ligar a tensão à volta de Taiwan com uma possível ofensiva dos russos contra a Ucrânia. Os calendários não são coincidentes, não é credível pensar em operações simultâneas. Até porque a resposta americana seria diferente, num caso fundamentalmente económica e financeira – contra a Rússia – e no outro, com meios militares. 

De qualquer modo, a ameaça mais imediata continua a ser a russa. Vladimir Putin tornou o prenúncio ainda mais real, ao falar de “genocídio”, que estaria em preparação contra a população etnicamente russa do leste da Ucrânia. Essa seria a justificação para uma intrusão militar, uma invenção fácil de propagandear internamente e nalguns círculos internacionais. 

Entretanto, Putin voltou a insistir esta semana na urgência de conversações com os americanos e a NATO. Para quê? No essencial, para que o ocidente aprove as exigências de Moscovo e a sua visão das relações geopolíticas com a Ucrânia, a Geórgia e a Moldávia, entre outros. Washington e Bruxelas não parecem dispostas a aceitar essas imposições. O que significa que a tensão irá continuar e a possibilidade de uma ação de desestabilização na Ucrânia é bastante elevada. 

O Ómicron está igualmente a complicar o final do ano. Para além das dimensões sanitárias, tem sérios custos económicos, numa altura em que os Estados mais desenvolvidos conhecem níveis excecionais de dívida pública e de défice orçamental. Tem, igualmente, em vários países europeus, um impacto político que não pode ser ignorado. As restrições a que obriga têm dado a oportunidade a segmentos da direita radical europeia de se mobilizar. São grupos minoritários. Mesmo assim, preocupam as lideranças democráticas dos países onde isso acontece. A pandemia e os negacionistas lembram-nos que o combate contra os radicalismos não pode ter tréguas. Nem mesmo durante a época das Boas Festas.  

10 DEZ 2021Biden e Putin: um diálogo indispensável

Quando líderes como Joe Biden e Vladimir Putin passam duas horas numa discussão frontal, nós, simples cidadãos, podemos olhar para isso de modo positivo, mesmo quando os resultados se afigurem incertos. Sempre defendi que as grandes crises devem ser diretamente discutidas entre quem de facto detém o poder. Deixar essas crises serem tratadas ao nível dos ministros dos Negócios Estrangeiros, por muito experientes que sejam, não chega. Tantas vezes, serve apenas para agravar os mal-entendidos e fazer finca-pé nas posições extremas. É frequente ver ministros mais papistas do que o papa. Mesmo quando anteveem soluções, não ousam mencioná-las, com medo da reação do chefe. Cabe ao líder enviar sinais de apaziguamento, indicar o caminho e marcar as balizas, as agora chamadas “linhas vermelhas”. 

Foi isso que Biden e Putin procuraram fazer. E é nesse registo que devem continuar, de preferência em encontros pessoais. A diplomacia faz-se com apertos de mão. Mesmo em alturas de pandemia. Os líderes sabem que assim é. Por isso, Emmanuel Macron esteve há dias nos Emirados e na Arábia Saudita, com muito êxito, no que respeita às indústrias de guerra francesas – e muitas críticas dos ativistas dos direitos humanos. E o Papa Francisco, que não para apesar da fragilidade física aparente, foi a Chipre e à Grécia. O próprio Vladimir Putin fez, na segunda-feira, uma deslocação relâmpago à Índia, para passar umas horas a reforçar as relações com Narendra Modi, a incentivar o comércio e, sobretudo, a aprofundar a cooperação político-militar. 

Um olhar positivo não nos impede de ver a gravidade da situação atual. O destacamento massivo de tropas e de meios logísticos excecionais para regiões russas próximas da fronteira leste da Ucrânia faz pensar, quer se queira quer não, na preparação de uma ofensiva militar. É essa a interpretação que prevalece nas principais capitais europeias e em Washington. Alguns académicos e outros com janela aberta para a rua da comunicação social dizem que se trata de uma maneira de Moscovo fazer pressão, para obter certas garantias políticas vindas do lado oposto. Poderá ser. Mas a verdade é que essa leitura não é aceite pelos dirigentes ocidentais, que veem nas movimentações militares russas todos os sinais de uma ação bélica a curto prazo contra a Ucrânia. O pretexto para tal ação seria o de fazer frente a uma hipotética campanha de Kiev contra os separatistas pró-russos que controlam as regiões ucranianas de Donetsk e Lugansk. O Kremlin jura não ter a intenção de intervir militarmente, mas essa mensagem não passa, por causa do extraordinário grau de mobilização existente ao nível do terreno. É preciso algo mais, do lado de Putin, do que declarações solenes sobre o direito à defesa, uma nota que não faz sentido pois ninguém tenciona invadir essa ou qualquer outra parte da Federação Russa.  

Na verdade, os russos e os ocidentais precisam de sair da armadilha em que se deixaram cair, sobretudo desde 2013, como se devesse haver uma hostilidade permanente entre ambos. Infelizmente, parece que apenas as demonstrações de força fazem abrir os olhos. Assim, do lado ocidental, existe agora uma ameaça que foi claramente explicada a Putin. Mas não é uma ameaça militar. Seria um pacote de medidas que teriam um impacto enorme sobre a economia russa, que já não anda de boa saúde. A Rússia ficaria desligada de uma boa parte dos sistemas financeiros e de pagamentos internacionais, que são na realidade controlados pelos americanos, teria imensas dificuldades em cambiar os seus rublos em euros e dólares, sem contar com outras restrições em termos de investimentos, de comércio e viagens para o espaço europeu. Neste domínio, Biden foi bastante arguto. Antes e depois da conversa com Putin, envolveu na concertação a Alemanha, a França, a Itália e o Reino Unido. Temos uma coesão a cinco. Por prudência, creio, não inclui a Polónia nem qualquer outro Estado do Leste europeu. É, claramente, um acordo que nos diz que estamos numa encruzilhada perigosa e que a continuação da conversa entre os líderes é a via indispensável.  

03 DEZ 2021Somos todos pela democracia…

O Presidente Biden organiza nos dias 9 e 10 uma cimeira virtual pela democracia. Será a primeira de duas. Nesta, o objetivo é o de levar cada dirigente a anunciar medidas que reforcem a vivência democrática no seu respetivo país. Na segunda, dentro de um ano, proceder-se-á ao balanço das promessas agora feitas. Os EUA também assumirão compromissos. Veremos quais, porque, nos últimos anos, a democracia americana revelou fragilidades preocupantes. Os EUA fazem parte, aliás, do grupo de países em recuo democrático, segundo o relatório deste ano do International Institute for Democracy and Electoral Assistance (IDEA), uma organização idónea baseada em Estocolmo. 

À partida, considerei a iniciativa um erro, uma nova tentativa de criar divisões no seio da comunidade das nações e mais uma facada no sistema multilateral. Porém, tendo em conta que o clima democrático internacional tem conhecido sérios retrocessos nos tempos recentes, acabei por dar o benefício da dúvida a Biden. E fico, como muitos outros, à espera dos resultados. Tudo o que possa contribuir para o reforço dos direitos fundamentais e para uma melhor governação será bem-vindo. Como também será importante que se discuta o impacto da revolução digital nas escolhas políticas e na libertação das vozes dos cidadãos. 

Uma reunião deste género é, no entanto, uma grande encrenca. A lista dos excluídos vai dar tanto que falar como os temas em debate. A ONU tem 193 estados-membros. Biden convidou cerca de 110. Na UE, Viktor Orbán ficou de fora, dando assim um argumento de peso a quem vê no líder húngaro o que ele de facto é: um autocrata. Mas a Polónia, que não é certamente um melhor exemplo de um estado de direito, consta da lista. A razão parece clara: Varsóvia é um aliado militar fiel, e cada vez mais forte, da política americana no Leste da Europa. Ainda no que respeita à NATO, Recep Tayyib Erdogan também não aparece na lista. Muito provavelmente porque os americanos não apreciam a sua proximidade político-militar com Vladimir Putin. Erdogan tornou-se uma pedra na bota da NATO e isso deixa muita gente desconfortável. E no caso da CPLP, compreende-se a exclusão das duas Guinés – Bissau e Equatorial. Mas fica a interrogação sobre as razões que levaram a Casa Branca a não convidar Moçambique. 

Nem a China nem a Rússia farão parte do encontro. Os respetivos embaixadores em Washington co-assinaram um artigo em que condenam a cimeira. Depois, surgiram outras críticas, em Beijing e Moscovo. A China, que está furiosa por Taiwan ter sido convidada, garante que é uma democracia socialista, amplamente apoiada pela população – hoje já ninguém fala em ditadura do proletariado. A Rússia vai mais longe e reivindica a existência de um sistema parlamentar com mais de 100 anos, o que inclui toda a época de Estaline e companhia. No essencial, ambos os regimes juram a pés juntos que são democráticos, cada um à sua maneira. E que, por isso, a cimeira é arrogante, divisiva e, na sua essência, uma provocação contra a China e a Rússia. 

A democracia é um conceito muito elástico. Nenhum ditador jamais reconhecerá que o seu regime é antidemocrático. Antes pelo contrário, todos defendem que foram democraticamente eleitos. Assim o proclamam Vladimir Putin, Alexander Lukashenko, Nicolás Maduro, Bashar al-Assad e muitos outros. Também Robert Mugabe, no seu tempo, dizia que as eleições, que roubava à tripa-forra, eram perfeitamente legítimas e livres. Assim como outros, que fui conhecendo ao longo da vida profissional e depois de ter assistido a várias trapalhadas eleitorais. O único que não terá preocupações desse tipo será Kim Jong-un, o déspota cómico-trágico da Coreia do Norte. 

Os temas em discussão – como travar o autoritarismo; o combate à corrupção; e a defesa dos direitos humanos – são pilares fundamentais da democracia, não haja dúvidas. Onde haverá certamente espaço para dúvidas será quando se conhecerem os compromissos que certos países irão proclamar, a pensar que tudo isto é só conversa. Mesmo assim poderá valer a pena ir avante com a cimeira, que o progresso também se faz com iniciativas idealistas. 

26 NOV 2021A Itália, a França, os vizinhos e todos nós

Mario Draghi e Emmanuel Macron representam duas gerações distintas de europeus. O primeiro pertence à que se tornou adulta e livre por alturas de maio 68 e cujos pais haviam sofrido os horrores da Segunda Grande Guerra. Para um italiano desse tempo, os valores da paz, da liberdade, da prosperidade e da cooperação entre as nações constituem as fundações da Europa comum. Macron faz parte dos dirigentes mais jovens, dos que viveram os seus anos formativos já depois da queda do Muro de Berlim e numa época em que a globalização estava em pleno arranque. A sua geração considera o aprofundamento da União indispensável para fazer frente à competição entre as grandes potências e manter um grau relativo de independência estratégica. 

Assinam hoje um novo tratado de amizade entre os seus países – de cooperação reforçada, como lhe chamam. Trata-se, dizem-nos, de promover uma melhor coordenação em matéria de política, de segurança e defesa, de migrações e noutras áreas. Para além da dimensão bilateral, a intenção é a de se apoiarem mutuamente na arena europeia. Provêm de gerações diferentes, mas acreditam ambos no futuro do projeto europeu. A pátria e a Europa unem-se numa ambição partilhada.  

Considero imprescindível que ambos os países desempenhem um papel central no reforço da unidade europeia. E que a eles se junte a Alemanha, agora sob a liderança do novo chanceler, Olaf Sholz. Teremos assim um núcleo equilibrado, apoiado por forças realistas e sociais-democratas, ao qual se poderão acrescentar outros líderes. O futuro da política europeia deve assentar numa visão que combine a transformação económica que o clima e a era digital exigem com o humanismo e o respeito pelos valores consignados no Tratado de Lisboa. 

E a defesa, perguntará Josep Borrell, o alto representante que recentemente apresentou a primeira versão de um plano europeu de defesa e segurança? Batizado como Bússola Estratégica, e agora em análise nas capitais europeias, poderá esse plano beneficiar do entendimento hoje assinado em Roma? 

Em princípio, sim. Mas estas coisas da defesa comum são complicadas. Vejamos um exemplo atual. No mesmo dia em que Draghi e Macron se abraçam, ministros do governo italiano continuam a opor-se à venda a um consórcio franco-alemão de uma empresa italiana que produz canhões para navios, peças para tanques e torpedos. O montante que o consórcio está disposto a pagar é elevado. Mas o nacionalismo italiano em matéria de indústrias de defesa e de empregos fala com voz grossa. E o negócio fica à espera. 

Este é apenas um exemplo das dificuldades que a Bússola Estratégica irá encontrar. E que precisa de ter em conta, de modo explícito. 

Nacionalismos à parte, a verdade é que os povos europeus não têm uma visão integrada das ameaças externas que podem pôr em causa a paz, o bem-estar e a unidade da Europa. E o plano de Borrell não ajuda. Primeiro, porque parte do princípio de que o perigo vem apenas do exterior, quando na realidade algumas das grandes ameaças à estabilidade e à segurança da UE são de ordem interna. Derivam das fraturas sociais existentes nalguns dos países da União e do seu agravamento acelerado.  Resultam, igualmente, das tendências autocráticas que se verificam em certos Estados-membros, dos populismos ultranacionalistas e do mau funcionamento das instituições que devem sustentar a democracia ao nível nacional. Segundo, porque Borrell parte do conceito ambíguo de que a Europa está em “contração estratégica”, algo que resultaria da progressiva diminuição do nosso peso económico e demográfico em comparação com o resto do mundo. Se esse argumento fosse válido, a Rússia, que tem um terço da população e um décimo do PIB europeu, não teria qualquer influência estratégica. A projeção internacional não assenta necessariamente no gigantismo económico ou demográfico. Veja-se o exemplo da Noruega.   

Voltaremos à Bússola Estratégica numa outra ocasião. Para já e por causa do que hoje se passa em Roma, o importante é frisar também entre nós que a cooperação reforçada entre vizinhos é uma das vias mais diretas para a consolidação da UE. 

19 NOV 2021Uma Europa para além do arame farpado

A confrontação que está a ocorrer na fronteira entre a Bielorrússia e a Polónia é preocupante, mas não pode ser analisada a preto e branco. É uma crise complexa, que levanta toda uma série de questões. Estamos perante problemas humanitários, migratórios, securitários, geopolíticos, éticos, ou seja, face a uma constelação de desafios que precisam de ser debatidos de modo sereno, frontal e completo. 

Como pano de fundo, temos duas grandes problemáticas. A primeira é sobre a democracia. A segunda centra-se na pobreza extrema, num mundo profundamente desigual e que os conflitos, a pandemia e as mudanças climáticas tornam ainda mais dissemelhante e fraturado. 

Mas antes de tudo, é preciso pensar nas pessoas que estão agora encurraladas na terra-de-ninguém, entre o arame farpado polaco e as matracas das unidades especiais bielorrussas. Não se sabe quantos milhares são – as estimativas não são fiáveis. Sabe-se, porém, que incluem gente frágil, muitas crianças, e que passam fome e frio, e sofrem humilhações e violências constantes. São, além disso, alvos permanentes de notícias falsas que os agentes bielorrussos fazem constantemente circular, de modo a manter vivas as ilusões dos migrantes. 

Alexander Lukashenko, o senhor da Bielorrússia, está claramente a aproveitar-se da miséria de certos povos. Mas o nosso lado não pode ficar indiferente perante o sofrimento de quem se deixou manipular, gente que vive em contextos tão complicados que qualquer promessa, por mais irrealista que possa ser, traz sempre um fio de esperança. E que lança massas de pessoas nos caminhos minados das migrações ilegais.  

A fronteira com a Bielorrússia separa o espaço europeu de um regime autocrático, em que vale tudo o que possa manter o ditador no poder. Lukashenko é hoje a nossa preocupação mais imediata, mas não é caso único na vizinhança. Se olharmos à nossa volta, e nos fixarmos em quem representa uma ameaça potencial ou real mais próxima, temos um ramalhete que inclui igualmente os líderes da Rússia e da Turquia. Não quero acrescentar a esta lista alguns políticos marroquinos, mas recomendaria que se não perdesse de vista esse nosso vizinho do Norte de África, que já mostrou que sabe utilizar as migrações massivas como arma de arremesso político. 

É verdade que também temos, no interior da UE, quem desestabilize a construção europeia. Mas isso é matéria para uma outra reflexão. 

Falemos agora de democracia. A UE precisa de formular uma doutrina que defina como se deve relacionar com vizinhos não-democráticos, sobretudo quando surgem situações de hostilidade aberta, como agora acontece. No quadro atual, fica-se com o sentimento que as democracias tendem a perder perante os Estados fora-da-lei. É, por isso, necessário fixar com clareza qual deve ser a resposta adequada às agressões de natureza híbrida, levadas a cabo à tangente da linha vermelha dos conflitos armados entre Estados, sem, todavia, a ultrapassar. Um primeiro passo deverá consistir numa resposta firme e inequívoca. Inclui a adoção de sanções de modo mais célere, multifacetado e mais centrado nas personagens que contam. Um outro meio será o de fazer um maior uso do sistema multilateral. Isso permitirá levar para a agenda internacional ações como a que Lukashenko mandou executar, à custa do desespero dos curdos do Iraque, dos sírios e de outros povos do Médio Oriente. 

Quanto às disparidades que existem entre uma Europa rica e toda uma série de países pobres, o efeito de atração é inevitável. As migrações em massa do Sul para o Norte serão um dos fenómenos mais marcantes desta e das décadas seguintes. A UE não pode fingir que não vê a tendência. É inaceitável deixar uma matéria dessa importância ao critério de cada Estado-membro. A questão deve ser tratada em comum. E o assunto tem de se tornar numa das principais linhas de debate da Conferência sobre o Futuro da Europa. É aliás tempo de dizer aos cidadãos que essa conferência está a decorrer e fazer com que estes nela participem. 

12 NOV 2021As missões de paz e os diamantes

Esta semana, por motivos pouco nobres, as operações de paz das Nações Unidas estiveram em evidência na nossa comunicação social.  

Uma missão de paz, aprovada pelo Conselho de Segurança e aceite pelo país de acolhimento, tem uma configuração complexa. Cada missão – existem atualmente 12 – inclui várias componentes, embora a mais conhecida seja a militar. As outras dimensões abrangem as áreas de polícia, do processo político e da reconciliação nacional, dos direitos humanos, do apoio à administração local, às eleições e à justiça. São, em geral, operações gigantescas, chefiadas por um Representante Especial do Secretário-geral da ONU (SRSG é a sigla em inglês), nomeado com a aprovação do Conselho de Segurança e ao nível hierárquico equivalente a Secretário-geral Adjunto.  Hoje, a maior encontra-se na República Democrática do Congo, com mais de 17 mil elementos e um orçamento anual superior a 1,1 mil milhões dólares. 

A parte militar é das mais sensíveis, quer pelo elevado número de tropas destacadas no terreno quer pelo facto da proteção das populações civis ser uma das prioridades. Sempre defendi que o reforço da segurança interna deve ser um dos primeiros objetivos a atingir, de modo a mostrar, sem demoras, resultados tangíveis e facilitar a aceitação da presença externa. 

Os capacetes azuis provêm das mais diversas culturas. Ao contrário dos quadros civis, os militares permanecem no terreno por períodos curtos – em regra, são rotações de seis meses. Essa circunstância e o tipo de funções que exercem não lhes permitem ganhar uma perceção suficiente das condições sociais e culturais das gentes que os recebem. Por isso, sempre determinei que o contacto entre os militares e as populações fosse feito apenas por elementos expressamente designados e preparados para fazer a ligação com as comunidades locais. O resto do contingente não estava autorizado a estabelecer qualquer tipo de contacto individual com a população. Assim se procurava evitar situações de incompreensão, de abuso e de exploração das situações de pobreza. Por outro lado, elementos civis da missão, que trabalhassem ao nível local, tinham também como responsabilidade observar de modo permanente a nossa interação com os residentes em cada canto do país. A boa imagem da missão era um bem precioso, que devia ser protegido a cada momento. 

Enquanto SRSG, tive o comando de duas missões de manutenção da paz em países ricos em diamantes, misérias e violência.

Uma dessas missões foi na Serra Leoa. Em certos distritos, a principal atividade consistia na prospeção artesanal de diamantes. Era uma economia de subsistência, com milhares de jovens a escavar buracos no mato ou a peneirar as areias dos rios, a maior parte do tempo sem resultado. À volta deles circulavam enxames de intermediários, que procediam à compra das pedras, quando as havia. Tratavam, então, do seu encaminhamento para Freetown, onde comerciantes especializados, libaneses na sua maioria, obtinham a documentação oficial que permitisse a sua exportação, dentro da legalidade estabelecida pelo processo de Kimberley.

Este processo, que foi lançado pelas Nações Unidas em 2003, precisamente por causa dos diamantes de sangue da Serra Leoa, certifica a origem e o percurso de cada pedra. Trava as origens duvidosas, muitas delas ligadas à violência dos grupos armados. A quase totalidade dos diamantes que aparecem hoje no mercado tem uma certificação Kimberley. Na União Europeia, por exemplo, é praticamente impossível introduzir um diamante que não tenha esse tipo de aval. O mesmo acontece nas principais praças mundiais. 

Mais tarde dirigi uma missão na República Centro-Africana, que incluía o patrulhamento da fronteira com o Sudão. Nessa região, as lojas de compras de pedras preciosas e de ouro eram tão numerosas quanto as mercearias. Destaquei para região forças especiais vindas do Togo. Tiveram um comportamento exemplar. Na preparação para o destacamento fora-lhes explicado que a imagem do seu país estava em jogo. Assim o entenderam. Uma pedrinha pode ter um impacto político enorme. 

05 NOV 2021Mais painéis solares e menos ogivas nucleares

É verdade que o presidente chinês não veio à cimeira da COP26. Mas também é um facto que Xi Jinping não viaja para fora do país desde janeiro de 2020, por causa de uma interpretação oficial extraordinariamente apertada do que deve ser o combate à pandemia do coronavírus.

O presidente americano aproveitou a ausência do seu homólogo para o criticar abertamente. Penso que foi um erro. Joe Biden deve procurar construir pontes com a China em vez de novas frentes de conflito. Já existem pontos de fricção suficientes entre os dois países. Não é prudente acrescentar mais este. 

O combate global contra as alterações climáticas precisa da cooperação de todos. Incluindo da China, que emite cerca de um quarto do total mundial de dióxido de carbono, embora em termos per capita o impacto de cada chinês seja metade do valor médio de cada americano. Esta constatação lembra-nos, aliás, que são os mais ricos quem mais contribui para o aquecimento global e que uma boa parte da resposta tem de assentar nessa constatação.

Também é preciso acrescentar que o Presidente Xi não ignorou a cimeira. Enviou uma comunicação escrita, que me pareceu relevante a vários títulos. 

Primeiro, porque frisou ser necessário respeitar os compromissos já assumidos, quer na Convenção da ONU sobre as Mudanças Climáticas, quer no Acordo de Paris de 2015. Essa afirmação constituiu um apelo claro ao reforço das respostas multilaterais, através do sistema das Nações Unidas. Foi, igualmente, uma chamada ao aprofundamento da confiança mútua entre os Estados, que tanta falta faz. Esta é uma questão fundamental, que o Secretário-Geral da ONU poderá explorar, de modo a tornar o seu papel mais central e mais orientado para a ação.  

Segundo, porque mencionou a necessidade de um esforço suplementar de todos, em particular dos países mais desenvolvidos. Aqui, referiu-se à ajuda que foi prometida e que deveria ser dada aos países mais pobres, para atenuar os efeitos catastróficos das alterações climáticas e aumentar de maneira significativa o acesso dos seus povos a fontes renováveis de energia. 

Terceiro, porque disse claramente que a comunidade das nações tem de acelerar a transição verde. Trata-se, no seu entender, de aumentar os investimentos na ciência e na tecnologia, com vista a conseguir as transformações industriais, bem como os tipos de energia e de consumo que sejam mais adequados à salvaguarda do ambiente, sem pôr em causa o desenvolvimento económico. Há aqui uma meia-verdade, baseada na teoria que defende que os progressos científicos são a melhor resposta aos desafios ambientais. Esta posição não tem em conta que as políticas de crescimento económico devem mudar e que os comportamentos das pessoas nos países mais ricos, incluindo na China, não podem ter como bitola apenas o aumento contínuo do consumo e do bem-estar material. 

Na parte final da sua comunicação, Xi Jinping referiu um certo número de medidas que o seu governo já está a levar a cabo ou irá adotar para reduzir a pegada carbónica. Não o diz agora, mas já havia informado a Assembleia Geral da ONU que a ambição oficial chinesa é a de chegar à neutralidade carbónica em 2060. A isso, poder-se-ia responder que a China tem meios para conseguir essa neutralidade bem mais cedo. E deveria fazê-lo, aproveitando o momento para mostrar que também a China pode desempenhar um papel de liderança nesta área. O país dispõe dos conhecimentos e dos meios necessários. Tratar-se-ia de investir menos nas indústrias bélicas e mais na transformação energética. Uma nação que planeia ter um arsenal nuclear, em 2030, de pelo menos mil ogivas nucleares – cinco vezes mais do que em 2020 – e todo um arsenal de armas hipersónicas, de bombardeiros, porta-aviões e submarinos com capacidade nuclear, tem todas as condições para ser também um exemplo em matéria de gestão das emissões de carbono. É tempo de mostrar que a defesa do planeta e a paz são duas questões interligadas. Liderança global deveria manifestar-se assim. 

29 OUT 2021A juventude deverá abanar a COP26

Admiro a determinação de Greta Thunberg. Já fez mais pelo combate às alterações climáticas do que muitos líderes políticos. E tem sobretudo mobilizado os jovens, abrindo assim uma janela de esperança para o futuro. No essencial, o ativismo cívico de Greta reclama que se passe das palavras aos atos e que o acordado na conferência de Paris sobre o clima, em 2015, seja efetivamente implementado. 

Na próxima semana, estará em Glasgow, no quadro da COP26. Irá lembrar às delegações oficiais os pactos assinados e sublinhar que é agora ainda mais premente reduzir as emissões de carbono, proteger os ecossistemas, financiar a transição energética nos países mais pobres e mitigar os efeitos preocupantes do aquecimento global. Os sinais são claros: a década passada ficou registada como a mais quente de sempre.  

Não há muito otimismo quanto aos possíveis resultados desta cimeira. O Secretário-Geral da ONU, António Guterres, disse-nos há dias que os compromissos nacionais já conhecidos, vindos de cerca de 120 países e que serão discutidos durante a COP26, ficam muito aquém do necessário para inverter a tendência atual, que vai no sentido de um aquecimento global da ordem dos 2,7 graus Celsius no final do século. Um aumento assim teria consequências catastróficas. Alguns desses efeitos já se fazem sentir, de modos diferentes segundo as regiões do globo: secas prolongadas ou tempestades avassaladoras, seguidas de inundações que arrasam tudo à sua passagem; incêndios gigantescos, incluindo nas áreas de tundra; destruição de uma boa parte da calota polar, dos glaciares e aumento do nível dos mares e da salinidade dos rios e das lagoas costeiras; perda da biodiversidade; e empobrecimento em larga escala das populações mais frágeis. Só em África, por exemplo, até 2030, as mudanças climáticas arrastarão para a pobreza uma nova vaga de mais de 100 milhões de pessoas. 

Mais ainda, África é um continente que continua às escuras. A capacidade instalada para produzir eletricidade é inferior à que existe em Espanha, quando de um lado temos 1,4 mil milhões de pessoas e do outro 47 milhões. O caso africano põe em evidência duas outras verdades. Primeiro, que os países ricos haviam prometido aos mais pobres, a partir de 2020, cerca de 100 mil milhões de dólares por ano, para os ajudar na sua transição energética. Está-se muito longe desses valores. Segundo, que sem um esforço extraordinário de eletrificação de África não haverá maneira de desenvolver o continente. O potencial em matéria de energias renováveis é enorme. Faltam, porém, os recursos financeiros, os conhecimentos e as transferências tecnológicas, a vontade política sobretudo. Esta semana, por exemplo, os ministros europeus dos Negócios Estrangeiros reuniram-se com os seus homólogos africanos em Kigali, no Ruanda, para preparar a próxima cimeira Europa-África. Falou-se da luta contra a COVID-19, dos laços históricos e de parcerias políticas, do comércio, das migrações, da igualdade do género, enfim, a caldeirada habitual, preparada para agradar a todos. No texto floreado que os ministros francês, alemão, português e esloveno publicaram sobre o assunto não se vê menção à COP26 nem uma só referência à mobilização de investimentos no domínio da energia. Ora, sem eletricidade acessível e abundante não haverá crescimento económico nem desenvolvimento.

Um outro fantasma que irá vaguear pelos corredores da COP26 chama-se egoísmo nacional. No pico da pandemia, os grandes líderes e os pensadores de renome diziam-nos que passada a crise iríamos construir um mundo melhor, mais equilibrado, ecológico e solidário. O que estamos a ver é exatamente o oposto: mais nacionalismo económico, maior procura das energias fósseis e um regresso aos velhos hábitos de consumo. O homem novo que nos anunciaram é afinal o mesmo que existia antes, todavia mais egocêntrico e com uma fúria consumista renovada. É aí que Greta e os jovens como ela podem abanar a COP26 e mostrar que uma visão alternativa é possível.  

22 OUT 2021Um perigo disfarçado de Lei e Justiça

Conheço a Marzena há mais de 15 anos. Foi pouco depois da sua chegada a Bruxelas e de começar uma nova vida, a servir a dias nas casas da média burguesia belga. Viera da Polónia profunda, a dois passos da Bielorrússia – tem, aliás, familiares que vivem num par de aldeias do outro lado do arame farpado, polacos como ela, mas apanhados pelas mexidas feitas às linhas de fronteira no pós-guerra, pelas gentes de Estaline. Com o tempo, viu chegar à Bélgica muitos milhares de outros compatriotas, que hoje trabalham na construção civil, nos serviços domésticos, nas fábricas ou nas múltiplas lojas que, entretanto, foram abrindo um pouco por toda a parte. O dinheiro que estes imigrantes transferem regularmente para a terra natal tem sido um dos fatores da modernização económica da Polónia. O outro está ligado às diferentes vantagens decorrentes da entrada do país na União Europeia em 2004. 

Marzena é uma pessoa modesta, mas atenta. Aprendeu muito ao longo dos anos. Sabe ver o progresso económico, como o seu país mudou desde a adesão. Mas também reconhece que a Polónia de hoje anda com o passo trocado em matéria de abertura das mentalidades e de cultura política. Uma parte da classe dirigente explora o nacionalismo que ao longo da história manteve o país vivo, entre as pressões germânicas, russas e escandinavas, e aprofunda-o com a ajuda da igreja católica, que continua a pesar sobremaneira na manutenção de um conservadorismo extremo. Há uma santa aliança, é caso para o dizer, entre o governo liderado pelo partido Lei e Justiça (PiS) e os sectores mais retrógrados da estrutura eclesiástica. 

O governo está em conflito com a União Europeia há vários anos, sobretudo por razões que têm a ver com a independência do sistema de justiça, que foi fortemente limitada pelo poder político. Esse conflito agravou-se recentemente com um acórdão do Tribunal Constitucional, que não reconhece o primado da lei europeia. Esta terça-feira, o Parlamento Europeu (PE) ouviu Ursula von der Leyen e o primeiro-ministro polaco, Mateusz Morawiecki, sobre o diferendo. Foi um choque de posições, sendo claro que o PE apoia a Comissão Europeia (CE) e espera que esta tome medidas que levem Varsóvia a mudar de política. Para já, o Plano de Recuperação e Resiliência (PRR) polaco – cerca de 24 mil milhões de euros a fundo perdido mais 34 mil milhões de empréstimos – fica à espera de melhores dias até ser aceite. Existe ainda a possibilidade de a Comissão ativar o mecanismo que faz depender a aprovação de fundos europeus do respeito pelos valores da UE. Este mecanismo é o mais expedito, pois pode ser aprovado por uma maioria qualificada, sem exigir a unanimidade dos Estados-membros. Ora, a Polónia espera receber à volta de 121 mil milhões de euros de fundos de coesão nos próximos anos, até 2027. Em termos financeiros, o que está em jogo é imenso. Varsóvia continua, no entanto, a apostar numa confrontação com a CE. 

Tudo isto põe em risco o futuro do projeto comum. Os polacos querem continuar na UE – 90% dos cidadãos são a favor, incluindo 87% dos apoiantes do PiS. O próprio governo diz e repete que não se trata de preparar uma saída, um Polexit. Seria, segundo dizem, apenas uma afirmação de que a Europa assenta num conjunto de nações e não numa integração cada vez mais profunda. É um argumento falacioso, pois o que está em causa é o respeito pelos valores básicos que unem os povos europeus e que foram consagrados nos Artigos 2º e 3º do Tratado da UE. Deixar que um Estado-membro viole esses valores e continue na União é oferecer ao adversário a possibilidade de nos destruir continuando sentado à nossa mesa. 

A Comissão tem de ganhar esta batalha. O executivo europeu e as outras instituições não podem sair enfraquecidas de um debate deste tipo. Este é o momento de ouvir as vozes dos líderes a apoiar Ursula von der Leyen, sem ambiguidades nem mais demoras. 

15 OUT 2021Mais e melhor mediação em tempos de conflitos

O filósofo britânico Bertrand Russell (1872-1970) foi um dos pensadores mais brilhantes do século XX. Foi igualmente dos mais progressistas do seu tempo, dos primeiros a bater-se pela instituição de um rendimento mínimo universal ou pela descriminalização das relações homossexuais. Analista político profundo, sublinhou, em 1950, ao receber o Prémio Nobel da Literatura, que “o amor pelo poder é, na verdade, o impulso mais forte nas vidas dos homens importantes”. Acrescentou que muitos líderes não se importam de empobrecer – e de afundar a nação – se com isso conseguirem levar os seus rivais à ruína. Assim acontece ainda em certas partes do globo. 

Foi essa paixão cega pelo poder, um tema central na obra de Russell, que serviu de ponto de partida à minha intervenção de ontem sobre a mediação de conflitos. Tratava-se da participação, por videoconferência, num colóquio do US Institute of Peace, uma organização independente baseada em Washington dedicada à diplomacia paralela e às negociações políticas. O desafio era identificar novas maneiras de abordar a resolução de crises nacionais, para serem partilhadas com as Nações Unidas e outros parceiros ativos nesta área da política internacional. 

A intervenção política, em qualquer sociedade, exige um conhecimento apurado do contexto e das relações de poder. É preciso avaliar a força relativa dos principais líderes, no que assenta o seu poder e quais são as suas vulnerabilidades. 

Nas sociedades democráticas, essa análise é mais fácil de fazer, mesmo tendo em conta a opacidade de certas agremiações secretas, os grupos de pressão e manipulação das redes sociais. Eleições realizam-se regularmente, existem estruturas partidárias visíveis e uma comunicação social ativa. Aí a credibilidade constrói-se com base na legitimidade eleitoral combinada com a projeção de uma imagem pública positiva. 

Nos países onde o abuso da força é a fonte e o instrumento da autoridade, a questão é mais complicada. O sistema aparente, institucional, é muitas vezes enganador. O que conta é a teia informal e as suas hierarquias. O verdadeiro poder está ligado às chefias tradicionais, às pertenças étnicas, a redes religiosas, a superstições, ou ainda a organizações criminosas, no campo da droga ou do comércio ilegal de recursos naturais. 

Assisti, ao longo da vida, a vários exemplos de poder informal. No Zimbabué, era mais fácil chegar à fala com Robert Mugabe através do motorista do representante das Nações Unidas que passando pelo chefe do gabinete presidencial. O motorista era filho primogénito de um chefe tribal da etnia a que pertencia Mugabe. Na Senegâmbia, um pequeno número de marabus tinha mais influência política, a nível regional e nacional, do que a maioria dos ministros dos diferentes governos.

A mediação de conflitos só funciona se se negociar com quem detém o poder. Os outros, ministros e que tais, são muitas vezes uns meros figurinos ou simples paus-mandados do chefe. Para se chegar a quem decide, é preciso sair, muitas vezes, do sistema formal de governação. 

Um outro aspeto crítico diz respeito à autoridade do mediador. A credibilidade em política resulta da combinação de quatro características primordiais: espírito de missão, realismo político, equilíbrio de opiniões e confiança em si próprio. Vários mediadores nomeados nos últimos anos pelas Nações Unidas têm mostrado não possuir esse conjunto de qualidades. Por tendência, Nova Iorque presta mais atenção aos jogos regionais, à obtenção de apoios políticos em certos quadrantes, no Conselho de Segurança ou junto de Chefes de Estado influentes na região em causa, do que à experiência e personalidade dos nomeados. Daqui resulta uma certa marginalização da ONU e um esbater da sua imagem.  Durante o segundo mandato, António Guterres deverá empenhar-se na resolução desta debilidade. O reforço da capacidade de mediação deve ser uma das áreas prioritárias de um tempo que se advinha fértil em conflitos. Assim o clamam, diariamente, muitos milhões de pessoas vítimas de violências políticas ou à beira da ravina. 

08 OUT 2021Não podemos varrer o Afeganistão para debaixo do tapete

Mario Draghi, o primeiro-ministro italiano e atual líder do G20, convocou para 12 de outubro uma cimeira extraordinária do grupo, com um único ponto na agenda: o Afeganistão. Trata-se de uma reunião urgente, que não pode esperar pela cimeira anual, que está marcada para os dois últimos dias deste mês. As preocupações sobre o Afeganistão são essencialmente duas: o drama humanitário, já muito agravado neste momento, mas que se tornará catastrófico com a iminente chegada do inverno; e a definição das condições necessárias para o reconhecimento internacional do regime talibã. 

A União Europeia aprovou, entretanto, uma ajuda humanitária de 200 milhões de euros. Outras ajudas são urgentes, até porque a comunidade dos doadores havia, a 13 de setembro, prometido mais de mil milhões de dólares, em reposta a um apelo lançado por António Guterres. Mas, como sempre, uma coisa são as promessas, outra a sua materialização. Para além das dificuldades logísticas e da insegurança, as agências humanitárias precisam de garantias de neutralidade, por parte dos talibãs. Só assim se poderá assegurar que a ajuda alimentar, a assistência médico-sanitária e o apoio à educação cheguem a quem delas carece, sem qualquer tipo de exclusão por motivos de pertença étnica, de género, religiosos ou de relações de força. 

Ainda na área humanitária, existem três outras grandes questões. 

Uma tem de ver com o pagamento dos salários aos funcionários públicos e às forças de segurança, há meses sem os seus vencimentos. Não creio que haja vontade, ao nível do G20, de financiar essa despesa. Recentemente, o meu antigo colega Jan Egeland, uma voz reconhecida no campo humanitário e que hoje dirige o prestigiado Norwegian Refugee Council, escreveu uma carta aberta sobre o assunto, dirigida ao Secretário-Geral da ONU. Apelava para que fossem criados mecanismos que permitissem encontrar uma solução para pagar os salários à administração pública afegã, como já acontecia, em grande medida, durante a governação precedente. A carta dava seguimento à visita que acabara de fazer ao Afeganistão e ao choque que tivera perante a pobreza que se alastra a olhos vistos.  

Outra questão respeita ao fornecimento de eletricidade. Milhões em Cabul e nas maiores cidades do país estão em risco de ficar às escuras. Com a chegada do inverno, isso poderá ser mais um cataclismo a acrescentar a todos os outros. O Afeganistão importa cerca de 70 por cento da eletricidade que consome. O Uzbequistão, o Turquemenistão, o Tajiquistão e o Irão são os fornecedores. Com a vitória talibã e o caos administrativo que se seguiu, cessaram os pagamentos das importações de eletricidade. Se a situação não mudar em breve, é muito provável que alguns desses países, sobretudo os que faziam parte da antiga União Soviética e que não nutrem qualquer espécie de simpatia pelos extremistas de Cabul, suspendam o fornecimento. Se isso acontecer, a agitação popular ganhará uma nova dimensão.  

Por quanto tempo irá o Afeganistão necessitar de um volume excecional de ajuda humanitária é a terceira grande questão. A assistência deve ter um horizonte temporal. O país precisa de construir uma economia que lhe permita importar a energia e as mercadorias básicas que não consegue produzir, e ter um nível de vida razoável. A economia não deve estar baseada quase em exclusivo na produção de ópio. 

O reconhecimento do novo regime, incluindo a sua representação na ONU, vai depender da posição que cada membro do G20 vier a adoptar. Acontecimentos recentes mostram uma tendência para o estabelecimento de contactos pontuais, enquanto ao nível político se continuará a falar de valores, de direitos humanos, da inclusão nacional ou do combate ao terrorismo. E a mostrar muita desconfiança para com a governação talibã. Com o passar do tempo, se não surgir uma crise migratória extrema ou um atentado terrorista que afete o mundo ocidental, o novo regime afegão, reconhecido ou não, poderá ser apenas mais um a engrossar a lista dos estados repressivos, falhados e esquecidos. 

01 OUT 2021A China, o indo-pacífico e as ilusões europeias

Esta semana, Josep Borrell, que dirige as relações exteriores da Comissão Europeia, e o seu homólogo chinês, o ministro Wang Yi, reuniram-se por videoconferência, no quadro do diálogo estratégico que existe entre ambas as partes. Na véspera, Frans Timmermans, o Vice-Presidente Executivo da Comissão, havia estado em contacto com o Vice-Primeiro Ministro chinês, para discutir a preparação da COP-26, que começará em Glasgow no final deste mês. 

Estas conversações têm o seu mérito. Devem ser frequentes e sem ingenuidades. A UE não pode ter outra postura política em relação à China que não seja o diálogo, a afirmação das suas posições críticas e a procura de interesses comuns. Nesta, como noutras áreas de importância vital para a segurança e a prosperidade da Europa, é fundamental demonstrar que continuamos a acreditar no valor da diplomacia, da clarificação de posições e dos entendimentos. Onde outros apostam na confrontação, os europeus devem ser vistos como os promotores de interdependências estratégicas e de plataformas comuns que contribuam para a segurança internacional e a resolução das grandes questões globais. Se assim se fizer, estaremos a consolidar o papel da UE na cena internacional e a diminuir os riscos de sermos envolvidos em conflitos que não são do nosso interesse. Estaremos igualmente a reduzir a nossa subordinação em relação aos EUA.  

Voltando ao diálogo entre Borrell e Wang, vários foram os temas abordados. A maioria está na agenda há muito: direitos humanos, Hong Kong, Xinjiang, Taiwan, o clima de investimentos mútuos, a cooperação internacional, o apoio ao multilateralismo, etc. Mas entre esta reunião e a precedente, que teve lugar em junho de 2020, passou uma eternidade e ocorreram mudanças dramáticas, nomeadamente em Myanmar e no Afeganistão. A política em relação a esses países tinha de fazer parte das discussões. Como também não podia faltar uma referência à estratégica indo-pacífica, aprovada há um par de semanas em Bruxelas. Borrell bem se terá esforçado a explicar que essa nova intenção política não tem como objetivo antagonizar a China. Não terá convencido o seu interlocutor. 

Sou dos que pensam que a aprovação dessa estratégia foi um erro. O documento até parece bem escrito, a abundância de recursos no Serviço Europeu para a Ação Externa a isso obriga. Mas é vago, demasiado abrangente, do tipo toca em tudo, e indefinido na priorização dos objetivos incluídos em cada uma das áreas de intervenção. Começa por não se entender bem o conteúdo geopolítico do conceito de indo-pacífico. Um estudo recente mostra que diferentes estados-membros veem os contornos da região de um modo distinto. Mais ainda, o conceito está associado à obsessão anti-chinesa iniciada por Donald Trump e que Joe Biden tem estado a materializar. Assim, para Beijing, a UE mais não faz que seguir a política americana, embora de modo mais sofisticado, introduzindo no documento uma série de chavões sobre o desenvolvimento e a cooperação. 

É verdade que essa parte do mundo, mesmo definida de modo impreciso, tem um peso económico crescente. Representa uma fatia muito importante do comércio externo da Europa: Bruxelas diz-nos que a região é o segundo parceiro comercial da UE. Também é um facto que uma percentagem muito alta do transporte marítimo de mercadorias passa pelo Índico. Mas os verdadeiros desafios na zona indo-pacífica são, para além da pirataria, uma área onde a cooperação com a China é possível, as disputas sobre as fronteiras marítimas entre a China e os seus vizinhos, o futuro de Taiwan, ou ainda as tensões identitárias na Índia, a ditadura militar em Myanmar, a luta pela democracia na Tailândia, no Camboja ou no Vietname, a violência institucional nas Filipinas e assim por diante, sem esquecer o extremismo talibã e as ameaças terroristas. Estas são questões concretas, em relação às quais a UE precisa de definir os seus interesses, o papel que poderá desempenhar e as alianças que serão necessárias. 

24 SET 2021Europa fora das olimpíadas do digital

O progresso da era digital, que conheceu uma aceleração ao longo da última década, será ainda mais rápido, profundo e abrangente nos próximos anos. Vêm aí grandes transformações no processamento e utilização da informação, com avanços surpreendentes em matéria de inteligência artificial, redes 5G, novas gerações de microprocessadores, técnicas de impressão 3D e na proteção dos sistemas cibernéticos face aos ataques hostis. Essas transformações terão um enorme impacto no exercício do poder político, na economia e no funcionamento das sociedades, nas atitudes individuais, bem como nas relações internacionais.  

Os mega-investimentos no domínio digital ocorrem hoje nos Estados Unidos, China, Taiwan, Coreia do Sul e Japão. Estes três últimos produzem 60% dos semicondutores e avançam a passos acelerados para processadores mais velozes e eficientes, e muito menos glutões em termos de consumo energético.  

Onde se situará a Europa neste novo quadro tecnológico? Ursula von der Leyen, na semana passada, definiu o domínio digital como uma prioridade. A UE produz atualmente cerca de 10% dos semicondutores fabricados a nível mundial. Perdeu imenso terreno nos últimos 30 anos. Em 1990, representava 44% da produção mundial de transístores.  A ambição definida pela presidente da Comissão Europeia é a de conseguir chegar aos 20% em 2030. Para isso, será necessário mobilizar investimentos públicos e privados na casa dos 160 mil milhões de dólares americanos. Não será fácil. É muito dinheiro, mas insuficiente quando comparado com os planos de outros. A Coreia do Sul, por exemplo, está pronta para investir 450 mil milhões de dólares. A empresa Taiwan Semiconductor Manufacturing Co. (TSMC), número um mundial na produção de chips, irá investir 100 mil milhões de dólares, nos próximos três anos, na expansão da sua capacidade. Curiosamente, uma parte desse investimento terá lugar na China, do outro lado do estreito, e outra, nos Estados Unidos. Assim se criam interdependências estratégicas. 

O atraso europeu não existe apenas no domínio dos processadores. Estamos fora da liga dos campeões, no que respeita às plataformas tecnológicas. Quando se olha para as 10 maiores, nota-se que seis são americanas e quatro chinesas. As plataformas que conhecemos, nesta parte do mundo onde nos inserimos, tais como Facebook, Twitter, Netflix, Google ou ainda a Uber, Airbnb ou Booking, têm todas uma ou várias concorrentes chinesas (Tencent, Weibo, WeChat, Baidu, iQuiyi e mais). 

O nosso quadro também não é dos melhores quando se trata dos chamados unicórnios. Muitas das novas aplicações e tecnologias são desenvolvidas por empresas recentemente estabelecidas, que o mercado de capitais avalia acima dos mil milhões de dólares e designa por unicórnios. Essas empresas são agentes criativos muito importantes nas áreas da inteligência artificial, dos softwares financeiros, do e-comércio e da e-logística. Os gigantes digitais seguem-nas com atenção e acabam por adquirir as mais inovadoras. Hoje, o inventário dos unicórnios soma 827 empresas. Destas, apenas 57 estão sediadas no espaço da UE, com a França e Alemanha em vantagem absoluta na minúscula quota europeia. 

Perante isto, o que significa soberania digital na UE? A pergunta é ainda mais pertinente se se tiver em conta a correlação entre defesa e inteligência artificial (IA). Um relatório recente da Comissão Nacional de Segurança sobre a Inteligência Artificial, uma comissão norte-americana, demonstra que a grande competição com a China, em matéria de defesa, passa prioritariamente pela IA. Quem ganhar essa corrida ficará com uma vantagem crítica sobre o outro lado. A UE está fora desse campeonato. 

Restam muitas outras interrogações, relacionadas com a proteção dos direitos das pessoas, o combate à manipulação da informação, ou ainda o significado da democracia nos tempos robóticos.  Todas elas são importantes. Mas, para nós, europeus, o desafio fundamental é definir com clareza um plano que permita à UE saltar da periferia para o centro da questão digital. 

17 SET 2021A alma de Ursula e os canhões de Vladimir

A semana europeia recebeu duas grandes mensagens. Uma, a partir de Estrasburgo, é um apelo ao reforço da União Europeia. No essencial, é uma visão construtiva, apesar das dificuldades e dos desvios que estão a ocorrer nalguns estados-membros. A outra, proveniente de Moscovo, procura projetar força, na conceção clássica de poder militar. Esta última é uma mensagem perturbadora, de alguém que vê o futuro pelo prisma da confrontação. Não tem em conta as aspirações dos cidadãos, que querem paz e uma maior proximidade com o resto da Europa. E também não compreende que a cooperação e a interdependência entre blocos constituem as bases do progresso económico e social mútuo.     

Ursula von der Leyen fez no Parlamento Europeu o balanço dos últimos 12 meses e propôs um plano de trabalho para o ano que vem. No essencial, o seu discurso sobre o “estado da UE” pode ser visto como uma tentativa de equilíbrio entre sucesso, determinação, incertezas e preocupações. Percorreu os principais pontos da agenda europeia – Covid-19, alterações climáticas, migrações, estado de direito, soberania – bem como o nosso atraso em matéria de semicondutores, algo que será estratégico nesta década. No combate à pandemia, a UE foi muito mais longe que o Reino Unido e os EUA – e também do que a China – em matéria de solidariedade internacional, com a doação de 700 milhões de vacinas a países com menos recursos. A percentagem global de vacinações permanece muito baixa nos países mais pobres, a começar pelo continente africano, a quem devemos, por razões quer históricas quer estratégicas, prestar uma atenção muito especial. 

A presidente da Comissão quis “reforçar a alma da nossa união”. Na realidade, por detrás dessa designação quase poética encontro uma ponta de desilusão quanto ao estado do projeto europeu. Von der Leyen parece querer sublinhar que existe um impasse – ou mesmo, desânimo – na vontade de construir uma Europa unida. O ano e meio de pandemia, a falta de coordenação das respostas, as restrições relativas às viagens e a possibilidade de acesso, sem grande controlo por Bruxelas, a milhares de milhões de euros por cada um dos estados-membros vieram reforçar as tendências nacionalistas. Em vários casos, os detentores do poder têm estado a aproveitar essas circunstâncias para consolidar a apropriação da máquina governativa nos seus respetivos países. Ao falar da “alma da nossa união”, von der Leyen indica claramente que a Europa não se fará apenas com o empenhamento de quem está em Bruxelas. Os líderes nacionais têm de voltar a uma narrativa que mobilize as pessoas para além das fronteiras nacionais.

Em Moscovo, não há tempo para estados de alma. Vladimir Putin seguiu com atenção o exercício militar Zapad 2021. Este exercício, que ontem terminou, teve uma envergadura muito superior ao precedente, realizado em 2017. Segundo dados oficiais, terá mobilizado cerca de 200 mil efetivos, a maioria provinda das forças armadas russas e o resto da Bielorrússia, bem como 80 aeronaves de combate, centenas de tanques e uma quinzena de navios. Estes números não são inteiramente fiáveis, já que Putin gosta de se fazer passar por maior do que efetivamente é. Mas são, de qualquer modo, impressionantes, a uma escala nunca vista desde o fim da Guerra Fria. A área de operações incluiu as regiões próximas da Polónia e dos Países Bálticos, e o Ártico.  Consistiu na simulação de uma invasão dos territórios russos ou bielorrussos por tropas ocidentais para, em seguida, treinar a contraofensiva e expulsar os invasores. 

Tratou-se de um exercício convencional, como se as guerras de amanhã fossem como as de ontem. Os russos sabem que assim não será. Mas a opção por um exercício em moldes clássicos permite mostrar a todos, incluindo à sua população, o poderio militar de que dispõem. É uma maneira de lembrar à UE e à NATO que a paz naquela parte da Europa depende acima de tudo da manutenção do status quo. Ao apelo de Estrasburgo, Vladimir Putin respondeu com o estrondo dos roquetes do Zapad 2021 e com Alexander Lukashenko a sorrir ao seu lado. Temos razões para ficar inquietos. 

10 SET 2021Migrações e temores europeus

A crise afegã veio colocar de novo o problema da imigração no centro das discussões europeias. No essencial, trata-se do receio que cheguem à Europa milhares e milhares de pessoas vindas do Afeganistão, empurradas para a migração por uma combinação de razões: a fuga ao regime talibã, a miséria económica, a ausência de perspetivas futuras e a atração que as sociedades mais ricas exercem sobre quem vive um quotidiano de desespero e de luta constante pela sobrevivência. Perante esse receio, os ministros europeus identificaram, como plano de ação, o menor denominador comum: tentar conter as pessoas no interior das fronteiras do Afeganistão ou nos países limítrofes. Para isso, contam com a colaboração do novo poder afegão, a vontade interesseira dos líderes paquistaneses e iranianos e ainda com a experiência e o bom nome das agências humanitárias das Nações Unidas e do Movimento Internacional da Cruz Vermelha e do Crescente Vermelho. 

O Presidente do Comité Internacional da Cruz Vermelha, o suíço Peter Maurer, esteve esta semana no Afeganistão, durante três dias, para discussões com a liderança talibã e visitas ao terreno. Também o Secretário-geral Adjunto da ONU para as questões humanitárias, o britânico Martin Griffiths, visitou Cabul, para se encontrar com o Mulá Abdul Ghani Baradar, agora vice-primeiro-ministro, e obter um mínimo de garantias necessárias para o desenrolar aceitável da ajuda humanitária. Estas rondas de contactos correram bem e a UE vai provavelmente ser a principal fonte de recursos para que estas organizações possam fazer o que delas se espera. 

No entanto, muitos afegãos acabarão por procurar refúgio fora das fronteiras nacionais, sobretudo no Paquistão. Não se sabe bem quantos refugiados afegãos viviam já no Paquistão. O Alto Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados (ACNUR) regista oficialmente 1,4 milhões de pessoas. Mas existe uma multidão fora dos registos. Estima-se que desde 15 de agosto, dia da queda de Cabul, estejam a atravessar a fronteira em direção ao Paquistão cerca de 10 mil pessoas por dia. Esse fluxo irá possivelmente aumentar, por causa da situação política, económica e social agora existente no Afeganistão. Uma parte significativa destes novos refugiados procurará chegar à Europa. 

O Paquistão não tem as condições económicas e institucionais necessárias para albergar uma nova vaga de refugiados. Precisa de apoio internacional. A classe dirigente paquistanesa sabe muito. Vai pedir auxílio material e favores políticos aos europeus. Não é que precise de muito apoio político, pois já conta com o respaldo total dos chineses. Mesmo assim, fará saber aos europeus que a sua disponibilidade em termos de acolhimento humanitário será mais forte se houver, como contrapartida, um esfriamento – mesmo que discreto – das relações entre a UE e a Índia. Neste jogo geoestratégico, Nova Deli tem muitas hipóteses de ficar a perder. 

No caso do Irão, a estória é outra. As relações entre a Europa e o Irão são afetadas por dois tipos de condicionantes: a falta de acordo sobre os limites do programa nuclear iraniano e as sanções e restrições impostas pelos americanos, que os europeus não são capazes de pôr em causa. Apesar de tudo isto, defendo que a Europa não pode excluir o Irão do processo humanitário. Para mais, se se tiver em conta que a maioria dos itinerários migratórios passam por esse país. Que pedirá o Teerão em troca de uma colaboração que evite o trânsito de massas humanas? Esta questão não pode ser ignorada. 

Os diferentes estados europeus estão dispostos a acolher quem trabalhou diretamente com as suas forças militares. Mas não têm a intenção de ir mais além. Aos habituais Viktor Orbán e companhia, junta-se agora uma nova vedeta, o Chanceler austríaco Sebastian Kurz. E as redes sociais já estão cheias de teorias catastróficas sobre o impacto que adviria de um aumento da proporção de muçulmanos em terras europeias. Sem esquecer, dizem, os possíveis perigos de atentados terroristas. A realidade é que aqui, na UE, como noutras partes do mundo, as questões de identidade cultural estão cada vez mais no centro da agenda política. 

03 SET 2021As Nações Unidas face ao desafio talibã

António Guterres acaba de sublinhar a gravidade da situação humanitária que vive o Afeganistão. Lembra-nos que cerca de metade da população precisa de ajuda alimentar para poder sobreviver e que os apoios sociais de base, nomeadamente na área da saúde, estão fechados ou à beira do colapso. Com a chegada em breve dos rigores do inverno, a crise tornar-se-á ainda mais séria e menor a capacidade de agir. Anuncia, por isso, que, já na próxima semana, o sistema das Nações Unidas irá lançar um apelo humanitário urgente.

Não é possível prever que resposta conseguirá obter. Uma boa parte dependerá do tipo de acesso que os talibãs permitirão, quer aos funcionários da ONU quer às ONGs. Não há ainda nenhuma certeza nessa matéria, incluindo no que respeita à participação de mulheres nas operações humanitárias. A segurança dos agentes encarregados da execução e a possibilidade de atuarem de modo independente são igualmente determinantes. Estas são questões fundamentais, que o Secretário-geral terá de resolver antes de lançar o apelo. Não chega fazer uma declaração genérica sobre esses requisitos. São precisos compromissos concretos por parte de quem tem o poder no Afeganistão. Isto significa que é premente iniciar contactos diretos entre as Nações Unidas, ao mais alto nível, e a direção política dos talibãs. 

A agenda humanitária é uma boa porta de entrada para conversações mais amplas. É verdade que não se deve misturar o campo humanitário, que tem como objetivo único e primordial salvar vidas, com matérias políticas. A ajuda que atenua o sofrimento humano, impede o atrofiamento físico e mental das crianças e mantém vivas as pessoas é um dever da comunidade internacional, independentemente dos sistemas de governação e das escolhas ideológicas. Mas pode possibilitar a abertura de uma via de aproximação e de diálogo político. 

Guterres deverá tomar a iniciativa e procurar encetar uma negociação com o poder talibã, que tenha em conta o que as Nações Unidas esperam, em termos de respeito pelas normas internacionais, os direitos humanos e os compromissos que ligam o Afeganistão à comunidade das nações. Por muito que se fale na soberania nacional e na não-ingerência nos assuntos internos de cada país, e aceitando mesmo que as relações entre os estados assentam sobretudo nesses princípios, os tempos de hoje não permitem que se fique indiferente, quando existem violações dos direitos fundamentais das pessoas e situações que possam representar um perigo para a paz e a segurança da região e de outras partes do globo.  

Existem muitas pontas por onde começar o desfiar da meada. Uma delas é a proteção dos cerca de três mil funcionários nacionais das Nações Unidas, face a possíveis represálias. Outra diz respeito ao futuro da Missão de Assistência que o ONU tem no terreno, a UNAMA. O mandato desta missão expira a 15 de setembro. Que tipo de configuração será possível, depois dessa data? Os talibãs poderão estar prontos para aceitar a presença das agências onusianas mais técnicas ou diretamente ligadas à assistência humanitária. E o resto, as outras agências da ONU? Tem de ser negociado. Uma outra matéria que tem de ser vista é a da representação do país na próxima Assembleia Geral das Nações Unidas, que começa a 14 de setembro. Os talibãs, vista a forma como chegaram ao poder, estarão à partida excluídos de participar, como já aconteceu no passado, no final dos anos 90 e até 2001. Mas essa exclusão pode ser matéria para pôr em cima da mesa, dependendo das contrapartidas políticas que os senhores de Cabul queiram negociar. 

Nestas coisas, o essencial é tomar a iniciativa, recuperar a bola e voltar a pô-la em jogo. A ONU é, acima de tudo, uma organização política. Não pode ser governada apenas com uma agenda humanitária ou de desenvolvimento. É verdade que deve dar uma resposta completa e coerente, que inclua essas dimensões. Mas o motor deve ser político. E o novo desafio talibã oferece à ONU a oportunidade de se reencontrar com a sua história e refazer a sua imagem como protagonista fundamental das relações internacionais.

27 AGO 2021Um novo capítulo nas relações internacionais

Os dias passam e o mundo continua a ver as imagens dramáticas captadas no perímetro exterior ao aeroporto de Cabul, agora agravadas pelo ataque bombista. Essa é a parte mais visível do choque e pavor dos afegãos que não acreditam nas promessas feitas pelos talibãs. Mas há mais Afeganistão para lá de Cabul. No país, sobretudo nas principais cidades, vive-se o mesmo pânico e desespero. Só que aí sofre-se longe dos olhos do mundo. Quem vive nessas regiões e pode, procura refugiar-se no Paquistão ou noutros países vizinhos. 

Há quem pense que estas imagens ficarão na memória da humanidade por muitos anos. E que serão recuperadas cada vez que for conveniente atacar os países ocidentais. Isso vai de facto acontecer. São cenas que deixam uma péssima representação do ocidente, de abandono, incoerência e improvisação. Já a questão da memória é mais improvável. As duas últimas décadas têm sido infelizmente abundantes em tragédias humanas. Mas cada nova desgraça tende a esconder as anteriores. A lembrança do que aconteceu na Síria, ou mais recentemente, das situações dramáticas que as populações do Líbano, de Myanmar e outras vivem quotidianamente, é cada vez mais ténue. De momento, a derrocada afegã ocupa todo o ecrã.  

O que não podemos esquecer é que no olho do furacão dos conflitos estão pessoas. É tempo de pensar em termos de gente de carne e osso, homens, mulheres e crianças, que sofrem todas as violências, humilhações, terrores e misérias que estas crises provocam. A segurança internacional e a diplomacia devem reportar-se, acima de tudo, ao quotidiano de quem é vítima dos extremismos, dos abusos de poder e de todo o tipo de tiranias, sejam elas em nome de um caudilho iluminado, de um partido detentor da verdade absoluta ou de uma bandeira religiosa. 

Há três décadas, o PNUD – Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento – ajudou-nos a descobrir uma evidência que ninguém antes queria ou conseguia ver. Com o lançamento do primeiro relatório sobre o desenvolvimento humano – e dos seguintes, ano a ano – sublinhou que o crescimento económico só faz sentido quando tem como objeto central os indivíduos, de modo a tirar cada um da pobreza, da ignorância e da ignomínia. Não é o PIB que conta, mas sim o progresso que cada pessoa consegue realizar em termos de uma vida com mais dignidade. 

As cenas à volta do aeroporto de Cabul deveriam ter um efeito similar. E do mesmo modo que os relatórios do PNUD serviram para criar novas alianças em matéria de cooperação para o desenvolvimento, a aflição e as incertezas que resultam da cedência do poder aos talibãs devem ser vistas como oportunidades para estabelecer pontes entre as grandes potências, a China e a Rússia incluídas. A reunião do G7 desta semana podia ter sido aproveitada para envolver Beijing e Moscovo no debate sobre as condições do reconhecimento da nova realidade afegã. Infelizmente, tal não aconteceu. A única preocupação foi a vã tentativa de convencer Joe Biden a prolongar a presença militar dos EUA para além de 31 de agosto. A reunião confirmou, uma vez mais, que no ocidente não há outra liderança para além da voz da América.

O G7 deveria mostrar-se especialmente inquieto com o tipo de governação que os talibãs vão impor. A Rússia está consciente dos riscos para a estabilidade dos seus aliados na Ásia Central. A China está preocupada com a defesa dos seus interesses no Paquistão – os chineses não excluem um cenário em que terroristas paquistaneses e outros possam atuar, no futuro, a partir do Afeganistão e ameaçar o corredor económico que une a China ao porto de Gwadar, no Oceano Índico. Quer a China quer a Rússia teriam certamente muito interesse em participar nessa discussão com os países do G7. Assim se transformaria uma crise numa oportunidade de aproximação entre potências rivais. Ganhariam todos com esse tipo de diálogo, a começar pelos cidadãos do Afeganistão. 

Esta proposição pode parecer irrealista. Mas o virar de página que nos é imposto pelos talibãs exige que se olhe para as relações internacionais com uma imaginação nova e de futuro. Quem irá agarrar esse desafio?

20 AGO 2021Cabul: e depois do adeus?

Dois dias após a queda de Cabul, a China levou a cabo um exercício militar de grande envergadura às portas de Taiwan. Tratou-se da simulação de um ataque, usando uma combinação de meios aéreos, navais e de interferência eletrónica. Taipei diz que o seu espaço de defesa foi repetidamente violado pelos caças chineses. E o exercício foi visto como um ensaio geral do que se poderá seguir. 

É evidente que esta operação militar foi planeada há algum tempo, como parte de um crescendo nos últimos meses. Mas a sua intensidade, nível de penetração e de intimidação parecem ter sido aprofundados, no seguimento do que acabara de acontecer no Afeganistão. 

Os líderes chineses sabem que a administração americana está totalmente concentrada no rescaldo do caos de Cabul. O Extremo-Oriente não cabe no radar político do momento em Washington. Mais importante ainda, a nova realidade internacional – a imagem de derrota da grande potência – abria a oportunidade de tornar o exercício mais ofensivo, num novo teste à determinação americana no que respeita à proteção da soberania de Taiwan. 

Vistos de Beijing, os acontecimentos no Afeganistão indicam que a opinião pública americana está menos disposta a comprometer-se em guerras que não são suas, em terras longínquas, difíceis de localizar no mapa e de entender culturalmente. Xi Jinping e os seus ficaram agora mais convencidos de que os americanos vergarão de novo perante factos consumados. Neste caso, perante a realidade que resultaria da ocupação pela força de Taiwan. Nessa visão, Washington reagiria com muito ruído, mas de facto hesitaria até finalmente abandonar a hipótese de uma resposta militar. 

Pode ser um erro de apreciação por parte dos chineses. Mas a verdade é que os americanos acabam de projetar uma imagem que parece confirmar a opção por uma política de primazia absoluta dos interesses nacionais e que as alianças com os outros só duram enquanto durarem. Isto é, enquanto servirem os interesses dos EUA. Essa imagem prejudica, entre outros, a NATO. Para além de dar mais argumentos aos que dizem que a Aliança Atlântica é apenas um trem de países a reboque dos EUA, poderá fazer crer a líderes como Vladimir Putin que não sofrerão consequências de maior se pisarem certas linhas vermelhas e ameaçarem a segurança de países europeus. Prejudica igualmente a luta pelo primado dos direitos e princípios em matéria política. Manter os direitos humanos na lista prioritária da agenda internacional, quando se abandonou a população do Afeganistão ao primitivismo dos Talibãs, é agora mais difícil. 

Embora ainda seja cedo para avaliar todas as consequências do fim trágico de vinte anos de intervenção no Afeganistão, a evidência é que mudou o xadrez geopolítico naquela parte do globo. Temos agora, lado a lado, três Estados fanáticos, cada um à sua maneira. Um, o Paquistão, com capacidade nuclear. Outro, o Irão, com potencial nuclear. E ambos na órbita da China. O terceiro, o Afeganistão, é um barril de pólvora em termos domésticos, uma fonte de instabilidade regional e um possível viveiro de movimentos terroristas internacionais. Para além dos Estados, existem as pessoas, que sofrem os efeitos do fanatismo, das opressões, da corrupção e que vivem um quotidiano de miséria e medo. 

A União Europeia não pode olhar para essas populações apenas pelo prisma das migrações descontroladas. Infelizmente, foi essa a preocupação que orientou as intervenções de Emmanuel Macron e de Josep Borrell, entre outros, quando falaram publicamente sobre o novo Afeganistão. Foi como se só vissem hordas de migrantes afegãos a caminho da Europa. Num momento grave, que exige uma estratégia diplomática inovadora e uma resposta humanitária adequada, é inaceitável que se reduza o problema afegão a uma possível crise migratória. A UE tem de saber retirar as lições que se impõem em matéria de segurança, de participação na resolução de conflitos em países terceiros e de autonomia face às grandes potências. E deve procurar definir um quadro político que guie a sua maneira de lidar com regimes retrógrados, hostis e desumanos. Como, por exemplo, com os barbudos de Cabul. 

30 JUL 2021Clima e pandemia: visões curtas na hora das urgências

O sul de Madagáscar está a sofrer um longo período de seca. Daqui resulta insegurança alimentar para cerca de um milhão e meio de pessoas. Sem meias palavras, subalimentação e fome. Para mais, a pandemia do coronavírus veio agravar a crise humanitária. As escolas fecharam e as crianças deixaram de ter acesso ao almoço diário que estas lhes proporcionavam, graças à intervenção do Programa Mundial de Alimentação da ONU.  

A seca é mais intensa desta vez, em virtude da deterioração acelerada do meio ambiente – nestas terras de gentes pobres, as árvores são abatidas a ritmo acelerado, para servir de lenha e para permitir obter localmente uns tostões no rico mercado mundial das madeiras. Com o corte das árvores, os ventos secos destroem as poucas culturas que sobrevivem à prolongada falta de água. Seca ainda pior devido às alterações climáticas, que acentuam os fenómenos meteorológicos extremos, tornando-os devastadores. 

Os habitantes da região não têm ideia que a temperatura média nessa parte da ilha poderá aumentar de 6,5 graus centígrados até ao final do século. Se isso acontecer, o que agora é um problema humanitário grave, mas ainda em parte gerível, se a ajuda internacional chegar a tempo, deixará de o ser. A população terá então de abandonar as terras ancestrais, cortar as raízes com as suas tradições e migrar, provavelmente para os bairros de barracas, na periferia da capital, Antananarivo, ou de outras cidades. Ao fazê-lo, estarão no mesmo processo de desenraizamento e de aceleração da precariedade que outros povos, noutras partes do mundo, também irão conhecer. À insegurança dos modos de vida juntar-se-á a insegurança nua e crua de quem terá de pisar repetidamente o risco da legalidade para mal poder sobreviver. 

Tampouco sabem que dentro três meses se reunirá, em Glasgow, a 26ª Conferência das Partes – a COP26, que reúne governos, agências da ONU e outras – para fazer o ponto da situação da luta contra o aquecimento global e outras questões ambientais. A COP26 realizar-se-á seis anos após a Conferência de Paris sobre as Alterações Climáticas, uma cimeira que reconheceu a urgência de agir. Foram então identificadas três áreas absolutamente prioritárias: reduzir as emissões de carbono; sair da economia baseada no carvão; e programar o desinvestimento a médio prazo nos combustíveis fósseis. 

Promessas mudam com os ventos, ao sabor dos oportunismos. Os líderes fazem políticas de curto prazo, a pensar no velho conceito de produto interno bruto, definido à antiga, e nas eleições seguintes. Para um político tradicional e sem visão, as questões globais são matérias distantes e abstratas.

Puro engano deles. As ameaças globais fazem cada vez mais parte das nossas realidades. Não apenas no longínquo Madagáscar, ou noutro canto ignorado do planeta, mas aqui e agora, nos nossos países desenvolvidos. O que aconteceu há um par de semanas com as cheias na Alemanha e na Bélgica foi um choque impensável. De repente, essas populações, e todos os que na Europa viram as imagens na televisão, perceberam que as alterações climáticas não são apenas um problema dos países mais frágeis. O mesmo se poderá dizer de quem sofreu com a onda de calor e os subsequentes incêndios que trouxeram dor, desolação e morte às populações costeiras do Pacífico, no Canadá e nos EUA. Ou do que tem acontecido na Sibéria, este ano de novo, em termos de fogos nas florestas que nunca ardiam, ou das recentes inundações em partes da China. 

Apesar de tudo isto, os países membros do G20 não conseguiram ainda chegar a um acordo sobre as medidas que deverão ser adotadas em Glasgow. 

Agosto é má altura para falar destes temas. Mas a rentrée em setembro terá que colocar a preparação da COP26 no topo da agenda, a par da questão gravíssima da desigualdade no acesso às vacinas contra a Covid-19, por parte dos países pobres. O desafio será o de transformar o slogan vazio, embora continuamente repetido, sobre a reconstrução de uma economia mais verde pós-pandemia, numa série de planos concretos. E tornar as vacinas acessíveis a ricos e pobres. Tratar-se-á de lembrar aos grandes e aos pequeninos chefes enleados em hesitações e oportunismos que nestas duas matérias o futuro já começou, e toca a todos. 

23 JUL 2021A União Europeia no caminho do colapso

O húngaro Viktor Orbán, o polaco Jarosław Kaczyński e o turco Recep Erdoğan voltaram a ser lembrados esta semana como três das grandes ameaças à continuidade da UE. O relatório agora publicado pela Comissão Europeia sobre a situação do Estado de Direito nos países membros coloca em evidência os dois primeiros. A crise na Líbia põe de novo em cena o terceiro. Todos eles fazem parte das preocupações quotidianas de quem quer construir uma Europa coesa, baseada nos valores da democracia, da tolerância e da cooperação. 

O relatório confirma o que já se sabia sobre o primeiro-ministro húngaro. Orbán manipula a opinião pública do seu país, abusa do poder para reduzir ao máximo o campo de ação dos seus adversários e ataca a liberdade de imprensa, a atuação da sociedade civil e a autonomia académica. As suspeitas de corrupção na atribuição de contratos públicos a empresas ligadas aos seus e ao partido no poder assentam em indícios muito fortes. Para apimentar ainda mais uma salgalhada pouco democrática e muito opaca, vieram agora a público acusações sobre a utilização pelos serviços secretos da aplicação informática Pegasus, para espiar os jornalistas e outros que se opõem à sua má governação. É tudo isso e não apenas a nova lei sobre homossexualidade. Mas, o homem é astuto. Está a reduzir o conflito com Bruxelas a uma dimensão que nem em jogo está – a proteção das crianças e dos adolescentes. E depois anuncia que haverá um referendo nacional sobre esse tema, certamente enviesado à maneira. 

A luta contra a corrupção e pelo bom funcionamento da justiça, sobretudo a sua independência, são dois aspetos fundamentais do projeto europeu. Foi a questão da justiça que fez aparecer a Polónia em letras gordas no relatório acima referido. O partido ora no governo, impropriamente chamado Direito e Justiça (PiS), liderado pelo ultraconservador Kaczyński, tem feito tudo para subjugar os magistrados ao poder político e para ignorar Bruxelas, sempre que cheira a crítica. Assim, o presidente do Supremo, nomeado pela mão do PiS, não quer reconhecer a primazia e a autoridade do Tribunal de Justiça da União Europeia. A Comissão Europeia deu-lhe um prazo até meados de agosto para aplicar duas decisões do tribunal europeu, o que revela a existência de um conflito aberto entre Bruxelas e Varsóvia.

As políticas seguidas pelos governos destes dois países afetam a integridade da União e abrem a porta para que outros adotem comportamentos semelhantes. O facto de a presidência neste segundo semestre ser assegurada pelo primeiro-ministro esloveno – um político confuso, que por vezes olha para Orbán com alguma admiração – não ajuda nada. 

Fora das fronteiras da UE, Erdoğan continua a ser um pesadelo. Aos conflitos relacionados com a Grécia e Chipre, junta-se a crescente presença turca na Líbia. Este país tem uma importância estratégica enorme, como ponto de partida de imigrantes ilegais rumo à Europa. Erdoğan já manda nos portões de passagem no Mediterrâneo Oriental. A sua influência na Líbia permitir-lhe-á controlar os fluxos na rota central. Como reação, a UE está a preparar o destacamento de uma missão militar para a Líbia. A motivação principal é a de fazer concorrência à Turquia no terreno. É um erro. A Líbia é um xadrez extremamente complicado, onde jogam vários países, incluindo a Rússia. Não há um processo político claro, para além de uma vaga promessa de eleições em finais do ano. Uma missão militar como a que está a ser planeada tem uma alta probabilidade de fracasso e atolamento sem fim nas areias movediças secas de um país fragmentado. A UE não pode aprovar de ânimo leve uma intervenção deste género. Entretanto, os cargueiros turcos continuam a passar nas barbas da operação naval e aérea europeia IRINI, que deveria servir para controlar o embargo de armas aos beligerantes líbios. 

Orbán e os outros são um verdadeiro perigo. Mas, o título desta crónica é obviamente provocatório. O colapso não está no horizonte. Serve, no entanto, para sublinhar que, nestas coisas de valores e de relações externas, a UE tem de tomar posições de princípio inequívocas. É uma questão de se fazer respeitar. O respeito é uma condição essencial para que haja futuro. 

16 JUL 2021A Europa, a China e os Estados Unidos: um triângulo turbulento

A política europeia em relação à China exige um equilíbrio inteligente entre o respeito pelos valores da democracia e os interesses económicos. É uma questão complexa, que toca no quotidiano dos cidadãos europeus. Basta olhar para o mapa das ligações ferroviárias – prevê-se 5 mil viagens de comboios de mercadorias em 2021 – ou para as cartas marítimas que mostram os itinerários dos navios de carga, para entender a interdependência existente entre a Europa e a China. Nós precisamos de importar o que não produzimos – ou deixámos de produzir. Os chineses precisam dos nossos mercados para garantir níveis elevados de crescimento económico, um dos pilares da estabilidade interna e da continuidade do regime. 

Esta interdependência aumentou espetacularmente desde a chegada ao poder de Xi Jinping em 2013. Faz parte da sua estratégia. E a tendência é para que se acentue nos próximos anos. Para além dos investimentos mútuos e da compra crescente pelos ocidentais de ações e obrigações do tesouro chinesas, note-se que o corredor económico é cada vez mais diverso. Umas linhas passam pela Sibéria russa, outras pelo Cazaquistão. Mais tarde, haverá uma ligação terrestre através do Irão e da Turquia, sem esquecer as vias marítimas, que apostam sobretudo nos portos da França, Itália e dos Países Baixos. O bom funcionamento deste vasto espaço de trânsito exige um diálogo político permanente entre os países, que terá de se basear na compreensão dos interesses mútuos e num pragmatismo perspicaz. Para facilitar esse diálogo e abrir uma porta mais ampla, a Europa deveria tomar a iniciativa de propor a criação de uma plataforma consultiva do corredor euroasiático. Qualquer disrupção do tráfego, por razões políticas ou de segurança, teria um impacto dramático na economia e na vida das pessoas, em particular no espaço europeu. Este emaranhado de relações decorre do processo de globalização iniciado há mais de duas décadas. Quem pense que se pode fazer marcha atrás, de modo significativo, na maneira como está agora organizada a economia internacional, anda a sonhar política sem ter os pés assentes na realidade. 

As ruturas que se verificam atualmente, aqui na Europa, nas cadeias de fornecimento de matérias-primas ou de produtos acabados produzidos na China e a escalada dos custos de transporte de um contentor de um porto chinês para um europeu dão-nos já um sabor amargo do que poderia acontecer se houvesse uma disrupção a sério, por motivos de desentendimento entre as partes ou por imposição de sanções mal pensadas. A título de exemplo, antes da pandemia, transportar um contentor de 40 pés por via marítima de Xangai para a Europa custava entre 2 e 4 mil dólares. Agora, atingiu os 17 mil dólares e o tempo de espera pode ir até vários meses. E isto apesar da produção chinesa de contentores representar mais de 85% do total mundial. Estes problemas podem ser temporários, resultado de uma aceleração da recuperação económica nas regiões mais desenvolvidas do mundo e da pressão que exercem sobre o transporte marítimo. Qualquer importador europeu que necessite de bens ou componentes made-in-China para manter as suas atividades produtivas poderá bem explicar a importância de um relacionamento comercial sem entraves desnecessários. Os mais informados sublinharão ainda a necessidade de se evitar um agravamento das tensões em Taiwan e no Mar do Sul da China. Isto também se aplica ao lado chinês, que não deve continuar a apostar numa escalada das ações ofensivas nessas zonas tão sensíveis. 

Num mundo profundamente interconectado, não se pode pensar a geopolítica e tomar decisões estratégicas seguindo modelos do passado nem vendo o mundo como um cenário a preto e branco. Os americanos optaram por uma rota de confronto. Deste lado do Atlântico, essa opção afigura-se como uma escolha perigosa e contrária aos nossos interesses. Razão pela qual a Europa não pode nem deve copiar Washington.

09 JUL 2021Afeganistão: tantos sacrifícios, para quê?

Entrada de leão, saída de sendeiro. Talvez esta expressão popular não se aplique inteiramente à retirada das tropas americanas e dos seus aliados da NATO do Afeganistão. Trata-se, sem dúvida, de uma saída inglória, após quase vinte anos de esforços humanos e financeiros descomunais. O modo como abandonaram a sua principal base militar, em Bagram, a cerca de uma hora a norte de Cabul – pela calada da noite, deixando para trás uma situação indefensável e ingerível, nomeadamente uma prisão com mais de cinco mil prisioneiros ligados ao terrorismo – tem um valor simbólico dramático. Significa impasse, recuo e abandono do governo e do povo afegãos à sua sorte. Numa palavra, derrota. Com os fanáticos talibãs a ganhar terreno um pouco por todo o país, a retirada vai permitir que cheguem a Cabul antes dos rigores do inverno. Estamos na altura do ano ideal para campanhas militares no Afeganistão e a via está aberta para o assalto ao poder. 

São muitas as reflexões possíveis sobre tudo isto. Neste momento, é sobretudo importante compreender as razões do despegar americano. O Afeganistão perdeu o interesse estratégico que havia mantido durante anos, quando o combate ao terrorismo islamista era considerado uma prioridade em Washington. Os Estados Unidos pensam agora que estão suficientemente protegidos contra esse tipo de ameaças. Temos aí uma enorme divergência em relação aos aliados europeus. Estes continuam a ver o terrorismo como um perigo maior e olham para a ofensiva dos talibãs com grande apreensão. Mas manda quem pode e os europeus da NATO não tiveram outra opção para além de um alinhamento acrítico com a posição americana. 

Para Washington, o Afeganistão passou a ser visto como uma guerra sem fim e como uma distração em relação ao novo foco agora bem mais importante: a China. E vê a rivalidade entre as duas superpotências como resolvida na região onde se insere o Afeganistão. Por issso, não quer perder mais tempo e recursos nesse espaço geopolítico onde a China já conta com a subordinação dos dois países que mais importam: o Paquistão e o Irão. O corredor económico China-Paquistão, que termina no porto paquistanês de Gwadar, no Mar da Arábia, é talvez o projeto mais relevante da Nova Rota da Seda. Aos olhos de Beijing, está garantido. Por outro lado, o Irão assinou um acordo económico de longo prazo com a China em março de 2021. Os investimentos chineses deverão atingir os 400 mil milhões de dólares nos próximos anos. É a passagem do Irão para a órbita da China. No meio, restará o Afeganistão do caos e do radicalismo, mas sem capacidade para prejudicar os interesses chineses na região. Os talibãs dependem desses dois vizinhos, sobretudo do Paquistão, e não deverão agir contra os seus interesses.

Contudo, para além dos jogos estratégicos, existem as pessoas, vítimas de um conflito cruel, pobres, mas resilientes e dignas. Estão profundamente preocupadas, como aliás muitos de nós, aqui na Europa. Primeiro, porque um regime baseado numa visão primitiva da vida em sociedade não tem qualquer consideração pelos direitos humanos. Trata todas as pessoas, a começar pelas mulheres e as raparigas, de modo incrivelmente opressivo e desumano. O extremo sofrimento que se anuncia para milhões de cidadãos afegãos não nos pode deixar indiferentes. Segundo, porque os potenciais terroristas na Europa verão no ressurgimento da tirania talibã um novo balão de oxigénio. Terceiro, porque os radicais assassinos que operam no Sahel e noutros pontos de África, em países que fazem parte das nossas alianças históricas, poderão obter novas oportunidades de apoio.

Uma lição que se vai tirar de tudo isto é que não se pode contar com o apoio dos ocidentais. Esse apoio surge e depois desaparece, no escuro da noite, segundo as conveniências, a direção do vento político e as prioridades de quem vive longe dos problemas. 

Pensar que estes são alguns dos resultados da longa e dolorosa intervenção ocidental no Afeganistão só pode deixar-nos desolados. Mais ainda, fica-nos sobretudo um sentimento amargo de fracasso e impotência. De uma Europa submissa em política externa e de segurança, num mundo onde pouco pesa e menos conta.

02 JUL 2021Taiwan aqui tão perto

Taiwan faz parte do nosso quotidiano. Assim acontece porque a empresa que produz a quase totalidade dos chips ao nível mundial, usados em tudo o que é eletrónica, telemóveis, autómatos e veículos automóveis, é a Taiwan Semiconductor Manufacturing Company (TSMC). Um colosso omnipresente, mas discreto, que vale na bolsa duas vezes o PIB de Portugal. E que convém lembrar, nesta semana em que se fala tanto da China. 

Ora, a TSMC, ao produzir acima de 90% dos microprocessadores da última geração e por estar localizada em Taiwan, encontra-se no centro da rivalidade sino-americana. É um ponto nevrálgico da maior importância. Se houvesse amanhã um conflito em torno de Taiwan, a disponibilidade mundial de chips cairia a pique. Isso significaria a paralisação imediata das fábricas de veículos automóveis, de computadores, de telefones portáteis, das operações financeiras altamente sofisticadas e de tudo o que se relaciona com a utilização de micro e nanotransístores. Ou seja, seria o caos económico e social. 

Os analistas que olham para estas coisas dizem que a TSMC é o escudo invisível que protege Taiwan. Pode ser, em certa medida. E a TSMC aposta nisso: prevê investir, nos próximos três anos, 100 mil milhões de dólares na expansão da sua capacidade científica e tecnológica. Mais chips, infinitamente minúsculos e de uma inteligência artificial extraordinariamente mais poderosa. Os números dão uma ideia do que está em jogo. Mostram, igualmente, que a política de defesa nacional passa pelo desenvolvimento de uma economia ultramoderna, que crie dependências estratégicas noutros azimutes.  

Assim, não é nem do interesse de Beijing nem de outros desestabilizar Taiwan. Pelo menos, nos próximos sete a dez anos. Mas esta dependência absoluta em relação a uma só empresa é igualmente o expoente máximo da fragilidade dos grandes equilíbrios mundiais. Resulta de décadas de ultraliberalismo e de deslocalização da produção, tudo desenquadrado do que deveriam ser as preocupações geoestratégicas. A filosofia dominante fez-nos acreditar que a interdependência comercial apagaria as rivalidades entre os grandes blocos de nações. Sabe-se agora que isso é uma ilusão. As maiores guerras dos últimos 100 anos foram iniciadas por loucos egocêntricos, que não tiveram em consideração o impacto económico – nem o humano – das suas decisões. Não creio que Xi Jinping entre nessa categoria, apesar da letra e do tom que ontem usou sobre Taiwan, na celebração do centenário do Partido Comunista Chinês. Mas também é verdade que bastaria um ataque altamente sofisticado de hackers contra uma secção da TSMC para fazer parar milhares de cadeias produtivas que estão dependentes da disponibilidade de chips.

Joe Biden compreende que os Estados Unidos não podem, nesta área tão vital, continuar totalmente dependentes do que se passa em Taiwan e de uma empresa apenas. O plano industrial que acaba de propor prevê um investimento de 50 mil milhões de dólares para estimular a produção doméstica de chips. A esse montante juntar-se-ão muitos milhares de milhões provenientes do sector privado. A verdade é que uma grande parte do trabalho de conceção científica nesta matéria é feito por empresas americanas de renome mundial – por exemplo, a Intel Corp, a Nvidia Corp, a Qualcomm ou ainda a Cisco Systems Inc. Mas separar a conceção da produção levou a uma vulnerabilidade extrema. É um bocado como desenhar armas altamente eficazes e pedir a outros que as fabriquem e depois nos abasteçam. 

A União Europeia tem de seguir um caminho similar. Um dos pontos de partida deverá ser aproveitar o que a ASML Holding NV já representa. Esta empresa neerlandesa é dominante no que respeita à produção da maquinaria necessária para o fabrico de semicondutores. A ambição é a de produzir na Europa, já a partir de 2030, para além das máquinas, pelo menos 20% da nova geração de semicondutores. É uma meta modesta, mas mesmo assim serão necessários investimentos gigantescos nas indústrias digitais europeias. O montante atualmente previsto – à volta de 150 mil milhões de euros – é insuficiente, quando comparado com o que a TSMC e a sul-coreana Samsung – a segunda maior produtora de chips – têm em carteira. Mas, a soberania europeia, incluindo a sua defesa, passa por uma presença determinante nas indústrias ligadas à digitalização.  

25 JUN 2021A democracia não pode ser um faz-de-conta

Nas sociedades mais desenvolvidas, assiste-se a um aceleramento da digitalização de todas as dimensões da vida dos cidadãos. A pandemia contribuiu enormemente para esta revolução digital. Mas vem aí mais.  A capacidade de tratar milhões de informações através dos novos métodos de inteligência artificial e os avanços na área da automatização permitirão o controlo – e, em muitos casos, a manipulação – das pessoas de modo nunca visto.

A nova era digital acarreta inúmeros desafios, e até ameaças, para a democracia. Pense-se, por exemplo, no papel dos robôs na multiplicação da propaganda, das notícias falsas e na criação de câmaras de eco, que dão a impressão de apoios políticos massivos a uns, e constroem à sua volta todo o tipo de ilusões, de par com o assédio dos outros, os oponentes, com milhares de mensagens hostis provenientes de falsos perfis. Mas o aspeto mais imediato diz respeito à participação no ato eleitoral. Se um cidadão pode pagar os seus impostos ou renovar o seu documento de identidade sentado à mesa da cozinha, por que razão não lhe é permitido votar por ligação informática, também a partir de casa? Ir a um local de voto, passar por amontoados de pessoas, fazer fila e perder tempo, parecem ser procedimentos de outros tempos, por muito que gente como Donald Trump tente descredibilizar o voto eletrónico. 

Já esta semana, os franceses lançaram mais uma acha para o debate. A taxa de abstenção nas eleições regionais atingiu um nível recorde. Dois terços não votaram. Pior ainda, cerca de 9 em cada 10 dos jovens dos 18-24 anos não estiveram para a maçada. Os analistas ficaram perplexos. Ao discorrer sobre as razões de tamanha indiferença, caíram no mesmo simplismo que Marine Le Pen, Jean-Luc Mélenchon e outras personalidades políticas já tinham mostrado na noite eleitoral – a culpa seria dos cidadãos, que acharam que o incómodo não valia a pena. E lançaram brados aos céus, para lamentar que uma tendência assim poderia levar à morte da democracia. 

Tudo isso é conversa de televisão. As pessoas – sobretudo, os jovens – não votam porque a maioria da classe política não lhes diz nada, não os inspira, não tem ideias novas, é apenas mais do mesmo, com sobranceria a mais e ética a menos. É isso que se passa em França e noutros países europeus. A principal ameaça contra a democracia não vem da apatia dos cidadãos. Essa é a consequência. A causa está a montante, nos partidos políticos – há sempre exceções – que em geral mais não são que um clube de oportunistas ou de fanáticos, iluminados por visões curtas.

A questão da democracia também faz parte da agenda da reunião do Conselho Europeu, que está a decorrer desde ontem e que marca o termo da presidência portuguesa. A grande interrogação, que já vem de longe e até agora sem resposta, é o que fazer perante a governação autoritária que é atualmente praticada na Hungria e na Polónia. Os dirigentes nestes dois países há muito que violam sistematicamente o Artigo 2º do Tratado da União Europeia, que define os valores fundamentais em que assenta a UE – liberdade, democracia, separação de poderes e direitos humanos. A falta de resposta adequada a estas violações é outra acha para a fogueira que vai consumindo a confiança dos cidadãos na democracia e nos políticos. 

Menos falado, mas igualmente importante para a vitalidade da democracia, é ter-se um sistema de administração de justiça capaz e independente dos políticos. Os cidadãos precisam de ter confiança no funcionamento célere e eficiente dos tribunais, como meios de defesa dos seus direitos e de correção das injustiças. Na era do “totalitarismo digital” isso é ainda mais essencial. Nos Estados-membros onde a justiça é lenta, mal apetrechada e ineficiente, temos um problema quase tão grave como o autoritarismo que existe noutros horizontes. Esses Estados têm uma democracia coxa. Deveriam igualmente ser tema de crítica no Conselho Europeu. Sem justiça eficaz, a democracia é uma ilusão. E os cidadãos, como o mostraram agora os franceses, já não se deixam iludir tão facilmente. 

18 JUN 2021O turbilhão em que nos querem meter 

A Assembleia Geral da ONU deverá hoje reeleger António Guterres para um segundo mandato. O primeiro não foi fácil, por várias razões, incluindo o facto de Donald Trump ter sido presidente dos Estados Unidos quatro dos últimos cinco anos. Trump não tinha o mínimo interesse pelo multilateralismo. Era, para mais, imprevisível e esdrúxulo em matérias de política internacional. Parecer que se estava a contrariar as suas teses, seria uma espécie de suicídio político. Isso contribuiu fortemente para a redução do espaço de manobra do secretário-geral. Guterres concentrou-se então em quatro grandes áreas: na agenda da paridade, particularmente no interior da organização, onde conseguiu com sucesso implementar uma política de promoção de mulheres para postos de topo; nas alterações climáticas; na resposta humanitária; e na procura de soluções para crises em países onde não entrasse em choque com os membros permanentes do Conselho de Segurança. Procedeu, igualmente, a algumas reformas internas, nomeadamente do organigrama e da representação da ONU ao nível dos países.    

O segundo mandato vai ser ainda mais difícil. As cimeiras dos últimos dias – G7, NATO, US-EU e Biden-Putin – mostraram que se entrou numa fase muito complexa dos jogos mundiais de poder. Podem tirar-se várias conclusões do que foi dito. Nenhuma delas coloca as Nações Unidas no lugar onde deveriam estar, como plataforma de convergência entre interesses opostos. Nessas cimeiras, certos intervenientes adotaram uma linha de confrontação, e outros deixaram-se arrastar. Mesmo quando o tom é calmo, como aconteceu no encontro entre Biden e Putin, não podemos cair em ilusões: cada um mantém as suas posições e vê o outro como o lado hostil. É uma nova era de desconfiança e de conflitos diretos entre as superpotências, fora da ordem internacional estabelecida. 

Mais concretamente, trazer a rivalidade com a China para o campo militar e incluí-la abertamente na agenda da NATO é um erro. É verdade que os dois parágrafos dedicados no comunicado final às relações com a China são mais brandos do que as mensagens divulgadas, antes e durante a reunião. Mas, no essencial, estamos a dar motivos a Beijing para que reforce a cooperação de defesa com Moscovo e aumente a sua participação em exercícios militares conjuntos com os russos, incluindo em regiões próximas das fronteiras da União Europeia. Se temos críticas a fazer, nas áreas dos direitos humanos e da liberdade, da competição comercial desleal, ou, ainda, quando a China leva certos países a um endividamento excessivo, com investimentos em infraestruturas que servem, acima de tudo, os seus próprios interesses, façamo-las nos fóruns políticos apropriados.  

Quando se aposta, como foi feito ao longo da semana, na confrontação e na política de blocos, está-se a comprometer de modo quase irremediável o funcionamento do Conselho de Segurança das Nações Unidas. O veto transforma-se então na prática corrente. Daí resulta o enfraquecimento da ONU e a marginalização dos seus dirigentes, a começar pelo secretário-geral. E tudo isto está em contradição com as repetidas promessas de reforço do multilateralismo, que constam dos documentos aprovados nas reuniões do G7 e da NATO. 

Logo após a sua investidura, Biden decidiu fazer o seu país voltar ao Conselho dos Direitos Humanos das Nações Unidas, como observador e para o tornar mais pertinente. Essa é uma decisão mais sábia do que avançar com a intenção de convocar uma conferência das democracias, assunto que esteve de novo em cima da mesa, durante as cimeiras com os aliados. Uma conferência desse tipo, que deveria incluir os bons e excluir os maus, segundo os critérios de Washington, dividiria ainda mais a comunidade internacional e colocaria a ONU numa situação extremamente delicada. Para ajudar o sistema multilateral e contribuir para o desanuviamento do turbilhão que se perfila no horizonte, a União Europeia não deve apoiar uma iniciativa desse género. Como também não pode andar a reboque de nenhuma superpotência. É precisamente para evitar isso que existe um projeto comum e se fala tanto do aprofundamento da soberania europeia.  

11 JUN 2021Um G7 muito especial

A cimeira número 47 do G7 começa hoje no Reino Unido. Embora o primeiro-ministro britânico seja o anfitrião, a estrela maior será Joe Biden, que escolheu a ocasião para efetuar a sua primeira viagem ao estrangeiro. Vai passar uma longa semana na Europa, mostrando assim que o continente europeu continua a ser um palco importante em matéria de diplomacia e reforço das alianças externas norte-americanas. 

Esta tem tudo para ser uma cimeira marcante.  As declarações feitas nos últimos dias confirmam as inquietações que já expressei aqui no DN, há um mês, aquando da reunião preparatória dos ministros dos negócios estrangeiros. A intenção de Biden parece ser a de transformar o G7 naquilo que o Conselho de Segurança da ONU não consegue ser: uma plataforma de entendimento entre grandes democracias liberais, capaz de dar uma resposta coordenada às questões universais e de fazer frente às ambições globais da China e às ameaças que a Rússia possa representar. No fundo, trata-se de procurar salvaguardar a hegemonia americana, não de um modo isolado como Donald Trump preconizava, mas sim com os aliados mais sólidos dos EUA.

Para tornar essa aliança mais eficaz, associam ao grupo a África do Sul, a Austrália, a Coreia do Sul e a Índia. Esta adição é estranha e incompleta. Deixa de fora muitos Estados importantes. É certo que este não é o momento para vastos encontros presenciais.  Também é verdade que a decisão sobre quem vem sentar-se à mesa cabe ao anfitrião. Só que os outros membros teriam igualmente uma palavra a dizer sobre a matéria. Ora, ninguém insistiu para que o México, o Brasil, ou outros, fossem convidados. A leitura que pode ser feita deixa poucas dúvidas: a América Latina está em crise e passou a contar pouco mais que nada no xadrez internacional. Encontra-se, de qualquer modo, na esfera de influência norte-americana. Não precisaria de ser ouvida. 

A África esteve representada em cimeiras anteriores por três ou quatro países. Desta vez, quase ficou de fora. A presença de Cyril Ramaphosa, o presidente sul-africano, pode ser vista como os britânicos a dar uma mão à manutenção da estabilidade na África do Sul, de modo a tranquilizar certos sectores da sua população. O resto do continente é uma preocupação menor. Aliás, o Reino Unido foi o único país do G7 que decidiu reduzir o orçamento da cooperação, a pretexto da pandemia. O corte é de 4 mil milhões de libras. Terá um impacto negativo considerável, numa altura em que os países menos desenvolvidos necessitam de apoios excecionais. 

Do lado do Médio Oriente, ninguém quer ouvir falar de Abdel Fattah el-Sisi, o general que manda no Egito, e ainda menos de Recep Erdoğan ou de Mohammed bin Salman. Na ótica do G7, o Médio Oriente está a perder interesse estratégico. Por outro lado, o Irão passou para a órbita da China – a 27 de março foi assinado um acordo de cooperação mútua para os próximos 25 anos, abrindo assim uma saída aos iranianos, que ficaram mais livres das sanções americanas e ocidentais. 

Na Ásia, a grande aposta centra-se na Índia. É, no entanto, uma cartada complexa e de risco. Narendra Modi é um radical nacionalista hindu, que está a arrastar a maior democracia do mundo para uma crise civil intensa. É igualmente um protecionista, pouco disposto a abrir a economia a estrangeiros. Oferece, no entanto, uma ilusão: a de poder vir a ser um importante contrapeso face à China.  

A China é, aliás, a principal preocupação que Biden traz na bagagem. Quer transformar o G7 num dique contra o expansionismo chinês. Veremos se o consegue, para além da menção no comunicado final. Quanto a Boris Johnson, a bandeira que lhe permitiria apresentar a reunião como um sucesso seria uma declaração sonora de apoio às campanhas de vacinação nos países mais pobres, de modo a conseguir ter 60% dessas populações vacinadas até ao final de 2022. A haver um compromisso nesse sentido, então este G7 terá sido útil. Os líderes poderão cantar vitória, mesmo considerando que dezembro de 2022 significará mais um ano e meio de incertezas e restrições. Nessa perspetiva, ajudar os outros tão depressa quanto possível é do interesse vital de todos nós, a começar pelo G7. 

04 JUN 2021Nós e a Rússia: máxima prudência e muita diplomacia

Andam por aí uns intelectuais com a bússola avariada. Mostraram novamente essa perda dos pontos de referência na maneira como reagiram às críticas feitas a Alexander Lukashenko, a relíquia pós-soviética que controla os destinos da Bielorrússsia desde 1994. Um personagem que preenche todos os requisitos que caracterizam um ditador. Não terá a envergadura de Vladimir Putin ou Xi Jinping, nem a loucura de Kim Jong-un, ou uma visão estratégica que ultrapasse a simples obsessão com a sua perpetuação no poder. É um pequenino tirano que, à sua dimensão, dá cabo das liberdades e estraga a vida dos seus concidadãos. Esta evidência escapa a alguns. Com o olhar fixado no passado, armam-se em progressistas e vêem ali um sobrevivente heroico da era comunista, um pretenso resistente aos desígnios imperialistas do ocidente. E engolem todas as falsidades que essa variante de Salazar, numa versão com bigode e brutamontes, inventa para justificar os seus atos. Em particular, a ação criminosa contra o voo comercial da Ryanair, e as mentiras construídas à volta de Roman Protasevich. Ignoram, ao mesmo tempo, tudo o que os dirigentes europeus têm dito sobre o assunto.  

O mesmo tem acontecido com a propaganda vinda do Kremlin. Para alguns dos nossos desnorteados, Putin tem sempre razão, quando ataca a nossa parte do mundo. A explicação é a mesma, embora em dose reforçada, que o Kremlin tem um sentido mais simbólico e toca mais do que Minsk na alma dos nostálgicos da União Soviética.

A verdade é outra, no entanto. Putin é uma ameaça. Tal como outros déspotas, a sua estratégia de poder é a de criar um inimigo externo, de modo a permitir-lhe aparecer, aos olhos dos seus, como o defensor da pátria, dos seus valores tradicionais e da sua projeção nacionalista enquanto grande potência. Nesse plano, tudo o que desponte como oposição interna, e possa pôr em causa o futuro de Putin, é acusado de estar ao serviço das potências estrangeiras e perseguido com toda a ferocidade. 

O alvo externo por excelência é a NATO. E a retórica de Moscovo, que alguns por aqui fielmente ecoam, atribui à Aliança Atlântica o desígnio de querer acampar ao longo das fronteiras russas. É a alegada expansão para leste da NATO. Há quatro estados-membros que partilham linhas de fronteira com a Rússia: a Polónia e a Lituânia, que são vizinhas de Kaliningrado, um enclave russo altamente militarizado, e ainda a Letónia e a Estónia. Esses países aderiram à NATO por vontade própria e por reunirem as condições exigidas pela organização: um sistema político democrático, baseado numa economia de mercado e no respeito pelos direitos das pessoas; e a existência de uma estrutura de defesa eficaz e devidamente enquadrada por um poder político legítimo. Trata-se, essencialmente, de democracia e de soberania. É essa soberania – a possibilidade de cada país decidir livremente sobre as suas alianças externas – que Putin não quer aceitar que seja praticada pela Geórgia e, sobretudo, pela Ucrânia. Como não tem esse direito, utiliza, em alternativa, a intimidação, a artimanha e, quando necessário, a força.  

Quem vive num labirinto ideológico ultrapassado, não entende essas coisas. Não presta qualquer atenção às vozes que vêm do campo europeu, apesar destas terem a legitimidade democrática que falta aos ditadores. Também não quer saber que o nosso lado tem procurado reavivar sem sucesso o Conselho NATO-Rússia, um órgão consultivo essencial para o desanuviamento. A última reunião desse Conselho aconteceu em julho de 2019. Mais ainda, a Rússia foi convidada a enviar observadores militares ao exercício aliado SteadFast Defender 2021, que está a decorrer através da Europa e com um foco especial no Mar Negro. Não respondeu ao convite. 

A conjuntura atual é preocupante. A tensão entre os dois lados da Europa está como nunca esteve nos últimos 30 anos. Num contexto assim, a cimeira prevista para 16 de junho, em Genebra, entre os presidentes norte-americano e russo, vai ser muito difícil. É urgente desanuviar a perigosa situação existente, pelo que esse encontro exigirá diplomacia e prudência máximas.

28 MAI 2021Lukashenko em voo picado

Para alguns Estados, a repressão dos dissidentes não conhece nem limites nem fronteiras. Vale tudo, quando alguém é considerado inimigo do regime. Mesmo quando vive no estrangeiro, convencido que está mais seguro. Pode, todavia, não estar, se for considerado pelos criminosos que controlam o poder no seu país de origem como um alvo a abater. Certas ditaduras têm um braço repressivo muito longo. Não têm pejo de agir em terra alheia e de praticar assassinatos, raptos, ou proceder a acusações frívolas ou sem fundamento, de modo a forçar a Interpol a emitir avisos internacionais de captura e repatriamento. Noutros casos, intimidam brutalmente os membros da família que ficaram no país, com o objetivo de calar o opositor que se encontra noutras latitudes. 

A execução atroce em Istambul do jornalista saudita Jamal Khashoggi, em 2018, foi o caso mais visível nos últimos tempos. Mas não é apenas a Arábia Saudita que viola desta maneira a lei internacional. Num relatório publicado recentemente, a reputada ONG Freedom House fez um inventário de casos individuais de repressão transnacional e dos regimes que a praticam, com total desrespeito pela soberania de outros Estados e pelas normas de asilo político e de proteção de refugiados. Além dos sauditas, a lista inclui a China, o Irão, o Ruanda, a Rússia e a Turquia. Seria fácil, infelizmente, acrescentar alguns outros. A Coreia do Norte, por exemplo, que organizou o assassinato do meio-irmão de Kim Jong-un no aeroporto de Kuala Lumpur, em 2017. E a partir desta semana, temos de incluir a Bielorrússia de Lukashenko. 

O ditador bielorrusso, que não se livra da suspeita fundada de haver manipulado a seu favor as eleições presidenciais de agosto de 2020, tem medo da sua população e de quem dirige a oposição contra o seu regime. Segue, por isso, os velhos métodos das ditaduras, ou seja, reprime-se a rua com toda a brutalidade, cria-se uma situação generalizada de medo e decapita-se a cúpula organizativa, a liderança que é capaz de fazer mexer as massas populares. Lukashenko, que está no poder desde 1994, não andou na escola do KGB, como o seu protetor Vladimir Putin, mas isso não o impede de agir em modo “operações especiais”.

Foi o que fez, ao desviar pela força e com manha o voo comercial da Ryanair de Atenas com destino à capital da Lituânia. A interceção violou todas as normas internacionais relacionadas com a segurança da aviação civil. Foi também uma afronta grave à União Europeia, por se tratar de uma ligação aérea entre duas capitais do espaço Schengen, e um desprezo total pelas regras de asilo político. Mas permitiu-lhe sequestrar e pôr fora de jogo um ativista importante na luta pela democracia na Bielorrússia, o jovem jornalista Roman Protasevich. 

Os custos políticos deste ato criminoso são elevados. O Conselho Europeu foi expedito e unânime na condenação e na resposta. O espaço aéreo que Lukashenko controla deixou de estar na rota dos voos europeus – e não só, pois várias companhias asiáticas adotaram o mesmo procedimento – e a companhia nacional da Bielorrússia terá que suspender as suas ligações com os destinos no interior da UE. Mais ainda, as sanções económicas serão alargadas. 

Alguns dirão que este tipo de penalidades têm pouco efeito sobre um país que depende essencialmente das suas relações com a Rússia. Acrescentam, ainda, que essas medidas irão aumentar a subordinação política de Lukashenko em relação ao Kremlin. É difícil não reconhecer o mérito dessas observações. A experiência mostra que as sanções contra países terceiros não levam a grandes transformações políticas, a não ser quando atingem diretamente a clique dirigente e os setores vitais para a sobrevivência económica do país. Não se sabe ainda quais serão as novas personalidades e que atividades irão ser acrescentadas ao rol de sanções já existente. Mas, nestas matérias, a dimensão simbólica é igualmente importante. O isolamento político e diplomático de Alexander Lukashenko, e dos seus, deve ficar muito claro. Serve de alavanca. Cabe à oposição democrática bielorrussa fazer o resto.  

21 MAI 2021A autonomia estratégica da Europa

Tianjin é uma cidade portuária, a pouco mais de uma centena de quilómetros a sudeste de Beijing. Quando as potências europeias estabeleceram concessões na China, desde meados do século XIX, esta foi uma das localidades escolhidas como porta de entrada, com a vantagem de estar perto da capital. Hoje, é uma zona metropolitana que abrange uma área maior que a do distrito de Beja – imaginemos todo o Baixo Alentejo urbanizado, uma paisagem de arranha-céus com mais de 15 milhões de habitantes. Em 2025, Tianjin deverá ter uma economia duas vezes e meia maior que a portuguesa. 

O exemplo de Tianjin mostra como é importante ver o mundo com realismo. A China é um gigante imparável. Tem a seu favor a dimensão populacional, o centralismo autoritário do poder, a vontade política e o investimento maciço na ciência, na tecnologia e na aquisição de matérias-primas. Nesse contexto, que futuro pode ter Portugal, ou cada um de entre a maioria dos países europeus, na relação de forças mundial? Felizmente, existe a União Europeia. A integração produtiva e a conjugação de esforços políticos permitem aos Estados-membros ter algum peso nas relações económicas internacionais e no xadrez geopolítico. Se não houvesse mais nenhuma razão para justificar o aprofundamento da UE, esta, por si só, já seria suficiente.

É aqui que surge a questão da autonomia estratégica da Europa. Faz parte do ritual dos discursos agora em voga. Mas precisa de ser aprofundada e transformada num plano de ação. Pelo que abordo hoje três aspetos do tema, deixando para uma outra altura as dimensões da defesa e segurança. 

Na presente década, o primeiro grande passo para a afirmação da Europa passa pelo reforço do euro como meio de pagamento internacional bem como divisa de reserva monetária. A moeda europeia é já a segunda mais utilizada nas transações globais, bem acima do yen japonês e do renminbi chinês, mas continua muito aquém do dólar americano. É essencial, para permitir a autonomia noutras áreas de soberania, que haja a vontade política de acelerar a utilização do euro nas relações económicas e financeiras com as mais diversas regiões do globo. Essa discussão tem de entrar na agenda dos líderes políticos europeus. Não se trata de um mero problema técnico ou de esperar pela dinâmica dos mercados. É uma prioridade estratégica. 

A segunda linha de intervenção diz respeito à política externa. Presentemente, com exceção da problemática do clima, a posição da Europa perante as grandes questões é definida por duas caraterísticas negativas: a subordinação às conveniências dos Estados Unidos e a fragmentação, consequência dos interesses individuais dos Estados-membros da União. O Alto Representante para os Negócios Estrangeiros e a Política de Segurança da UE pouco mais representa do que ele próprio. O atual detentor do cargo, Josep Borrell, embora mais experiente que as duas titulares anteriores, não revela capacidade para fazer valer uma agenda proactiva e coesa. Não será assim que a UE terá uma voz mais interveniente na cena global. Este é outro assunto que clama por um novo tipo de acordo ao nível das lideranças políticas europeias. 

A terceira linha de ação ficou mais evidente quando a pandemia pôs em evidência a importância da autossuficiência na produção de bens e serviços de ponta. As economias europeias têm de investir continuamente na inovação científica, tecnológica e digital, e na formação dos cidadãos. A Cimeira Social que teve lugar no Porto reconheceu a necessidade da aprendizagem ao longo da vida. Essa é a nova maneira de encarar a competitividade das nossas economias. Falta ainda determinar quais são os setores que devem ser considerados fundamentais, para além da saúde, da expansão da inteligência artificial, da segurança cibernética e da energia.  

A autonomia estratégica não exclui a interdependência e a cooperação entre nós e os outros. E não pode ser só conversa. Exige ideias claras e políticas adequadas.  

14 MAI 2021A Europa e a turbulência que aí vem 

O lançamento da Conferência sobre o Futuro da Europa decorreu esta semana em Estrasburgo, na sede oficial do Parlamento Europeu. O simbolismo de Estrasburgo é enorme. Representa a reconciliação, a paz, a democracia e a solidariedade entre os europeus. Esses quatro desideratos continuam a ser tão pertinentes hoje como o têm sido ao longo das sete décadas que já conta a construção do edifício político europeu. É desde logo importante que nos lembremos disso, para reconhecer donde viemos e definir para onde queremos ir no próximo decénio. 

É esse o objetivo desta iniciativa, que deverá ficar concluída em março de 2022. Seria um erro fazer uma apreciação cínica sobre a conferência. Por muito subtil que possa parecer, o cinismo é a faca na liga dos amargurados e dos bota-abaixo. O que se pede é uma reflexão cidadã, que combine realismo com idealismo, ou seja, uma visão crítica, mas construtiva. Trata-se de ir além da retórica ou das elucubrações do costume. A conferência é um repto diferente, que permitirá medir a força dos movimentos de cidadania. Aliás, o maior desafio que a UE enfrenta é exatamente o que decorre do fosso de desconhecimento ou de indiferença entre, de um lado, a política e as instituições europeias, e do outro, a vida quotidiana das pessoas. Mesmo em Bruxelas, quem vive uns quarteirões para lá do distrito europeu parece estar tão desligado da UE como uma qualquer família que viva numa pequena aldeia de Portugal. Ora, um projeto político que não seja entendido pelo comum dos mortais é frágil. Pode ser facilmente posto em causa pelos seus inimigos. 

Os nove eixos de reflexão sobre o futuro ignoram esta desconexão. Os temas são importantes: as alterações climáticas e o ambiente; a saúde; a economia, emprego e justiça social; o papel da UE no mundo; os direitos e a segurança; a transformação digital; a democracia; as migrações; e a área da educação, da cultura, do desporto e da juventude. Mas é um erro dar o apoio dos cidadãos ao projeto europeu como adquirido. Esta é uma questão fundamental. Após um ano absolutamente excecional, encontramos nas sociedades europeias muita frustração, confusão, impaciência e um individualismo mais acentuado. Temos também um conjunto de inimigos internos e externos prontos para explorar as vulnerabilidades e acabar com a UE. Daí a discussão sobre o caminho para 2030 dever começar pela análise das fragilidades e das ameaças. 

Uma avaliação prospetiva dos próximos anos mostra-nos que iremos sofrer o impacto de três grandes ondas de choque. A primeira decorre da aceleração do uso da cibernética, em particular da inteligência artificial, que irá transformar muitos europeus em analfabetos digitais e em mão-de-obra redundante. Se não for tratada devidamente, agravará ainda mais as desigualdades sociais.

A segunda resultará de novas vagas de imigração descontrolada e do aproveitamento que certas forças farão desse fenómeno. Não serão apenas Viktor Orbán ou Jarosław Kaczyński, ou mesmo Sebastian Kurz, a dividir a Europa nessa matéria. As hipóteses de Marine Le Pen conquistar o poder em 2022 ou da Itália ser governada por uma coligação de ultranacionalistas em 2023 – numa aliança de Matteo Salvini com a dirigente neofascista Georgia Meloni, cujo partido Fratelli d’Italia já mobiliza 18% do eleitorado nacional – têm de ser equacionadas. Uma frente que reúna esse tipo de políticos em vários Estados-membros causaria uma fratura potencialmente fatal para a continuação da Europa.

O terceiro choque estratégico – algo a evitar a todo o custo – poderá vir de um possível conflito armado entre os Estados Unidos e a China. Uma confrontação dessas, que não pode de maneira alguma ser excluída dos cenários prospetivos, teria um efeito devastador. A estabilidade e a prosperidade europeias iriam por água abaixo. 

A mensagem, agora que o debate foi aberto, é que não pode haver assuntos tabus nem cenários incompletos, que não tenham em conta a complexidade interna e externa em que nos iremos mover. Desde já, um facto é certo. Vêm aí anos de grandes convulsões. 

07 MAI 2021Inquietações: um G7 muito combativo

O G7 agrupa as maiores economias liberais, ou seja, por ordem decrescente de grandeza, os Estados Unidos, o Japão, a Alemanha, o Reino Unido, a França, a Itália e o Canadá. Representam, no seu conjunto, cerca de 50% da economia mundial. A liderança do G7 em 2021 cabe aos britânicos, que organizaram esta semana uma reunião dos ministros do Negócios Estrangeiros, em preparação da cimeira prevista para junho. 

Passaram dois anos sem se reunir. A pandemia e o mal-estar causado pela presidência de Donald Trump explicam o longo hiato. Agora as realidades são outras. O controlo da pandemia parece possível, graças às campanhas de vacinação. E as políticas seguidas em Washington já não são imprevisíveis. Mesmo assim, foi preciso decidir entre uma reunião presencial ou não. Após um ano de conferências virtuais, concluiu-se que, em matéria de diplomacia, o contacto pessoal é, de longe, o mais produtivo. A maioria das videoconferências realizadas entre políticos ao longo da pandemia acabou por ser um mero exercício formal, em que cada um lia o texto que tinha à sua frente, sem se proceder a uma troca de ideias, a uma análise das opções ou a um comprometimento pessoal. Regressamos agora, a passo seguro, às discussões frente a frente. 

Um outro aspeto diz respeito à lista de países exteriores ao G7 mas convidados para a reunião. Limitou-se à África do Sul, Austrália, Coreia do Sul e Índia, bem como a duas organizações supranacionais, a Associação das Nações do Sudeste Asiático (ASEAN) e a União Europeia. A leitura política desta escolha é fácil de fazer. Há aqui uma clara preferência, e não apenas dos britânicos. A aposta económica e geopolítica é na Ásia, no reforço das relações com os países que possam fazer frente à competição vinda da China.  A América Latina e o Médio Oriente foram simplesmente ignorados. 

A China foi aliás uma preocupação dominante. As consultas entre os ministros começaram por aí. Os EUA estão a seguir uma linha muito complexa em relação à China. Procuram, no essencial, combinar antagonismo com cooperação. Hostilidade, em geral, e acertos no particular, em certas matérias concretas, como por exemplo na área das alterações climáticas ou sobre o Irão. Na minha opinião, esta linha não resultará. A mensagem recebida em Beijing, proveniente de Washington, resume-se numa palavra – confrontação. E os chineses responderão a essa perceção taco a taco, numa moeda equivalente. 

Os próprios europeus – e isso ficou patente nas posições da Alemanha e da França – julgam excessiva a posição americana em relação à China. Estão de acordo com Washington quando se trata dos direitos humanos, Hong Kong ou Xinjiang, ou ainda da proteção da propriedade intelectual. Consideram, porém, que a Europa tem muito a ganhar se a relação com a China assentar no respeito pelas regras estabelecidas e na prossecução de vantagens mútuas. O Japão prefere seguir uma política semelhante à europeia, apesar da pressão exercida pela administração Biden. 

A Rússia também ocupou um lugar proeminente na agenda. O Kremlin é hoje visto como uma ameaça para as democracias europeias e americana. Nesta matéria, a sintonia entre os dois lados do Atlântico é mais clara. A questão da defesa dos regimes democráticos, incluindo a luta contra a propagação de informações falsas ou enviesadas, foi um tema importante. 

O secretário de Estado americano foi a Londres propor um novo prisma de abordagem estratégica. Antony Blinken defende que o grupo não pode ser apenas um mecanismo de coordenação das grandes economias capitalistas. Deve transformar-se numa plataforma de intervenção política das democracias mais influentes. Isto é a expressão de uma crença prevalecente na atual administração americana de que os EUA têm uma missão – a de salvar as democracias. Para alguns de nós, aqui na Europa, uma proposição desse tipo gera três tipos de inquietações. Uma, relacionada com a crescente marginalização do papel político da ONU. A outra, com o agravamento da polarização das relações internacionais. A terceira, com o peso que um fantasma chamado Trump ainda poderá vir a exercer na política americana. 

30 ABR 2021Quando os generais escrevem cartas abertas

Uma sondagem divulgada esta semana pelo IFOP, o prestigiado instituto francês de opinião pública, diz-nos que 86% dos franceses consideram a segurança interna como uma questão central, que influenciará o resultado da eleição presidencial de maio de 2022. Por outro lado, em julho de 2020, 71% da população adulta considerava que a França atravessa um processo de declínio. Declínio é um conceito vago, passível de várias interpretações. Mas revela um sentimento de mal-estar social, que deu origem aos “coletes amarelos” e tem sido manhosamente aproveitado pela extrema-direita, sobretudo por Marine Le Pen. 

Um outro inquérito de opinião, efetuado pela Fundação Jean-Jaurès, uma instituição com ligações ao Partido Socialista, permitiu saber que uma boa parte dos cidadãos franceses estima que há desordem a mais no país. Mais concretamente, 82% pensam que a França precisa de um líder forte, capaz de restabelecer a ordem pública e a autoridade do Estado. O presidente Emmanuel Macron não deve ter encontrado nenhum tipo de conforto nesses estudos de opinião. As imagens que ficam são de uma nação mergulhada na indecisão política e sensível à narrativa da extrema-direita. 

Foi neste contexto que apareceu há dias uma carta aberta, assinada por 24 oficias generais na reserva e por uma centena de oficiais superiores e mais de mil militares de outras patentes, com um ou outro ainda no ativo e o resto, reformado. A carta, publicada na revista ultranacionalista Valeurs Actuelles, parecia querer servir de alavanca para reforçar as posições da direita radical. Foi vista pelo governo e por muitos com estupefação e como um apelo a um hipotético golpe de Estado. 

O texto é um ataque ao que os seus autores designam por falta de coragem da classe política para enfrentar o “caos” existente. Mais afirmam que essa fraqueza pode levar os seus camaradas militares no ativo a uma “intervenção para defender os valores civilizacionais” da França. A palavra intervenção não permite ambiguidades. Essa é a parte mais explosiva da missiva, que deixou a ministra da Defesa e muitos democratas em ebulição. Na Europa, em 2021, uma sugestão assim é inaceitável, para mais vinda de um número tão elevado de oficiais que ainda recentemente serviam nas fileiras. 

“A hora é grave, a França está em perigo, é ameaçada por vários riscos mortais”. Assim abre o documento, no estilo já gasto de quem pinta o caos para depois afirmar que é altura de salvar a pátria. Os autores referem-se ao que chamam a desagregação da sociedade francesa, ao que consideram ser um alastramento do ódio entre várias secções da população e atacam o “islamismo e as hordas dos arrabaldes”, ou seja, os imigrantes de origem não-europeia que vivem sobretudo nos dormitórios pobres que são os arredores das grandes cidades. A imigração é aliás um dos grandes cavalos de batalha dos nacional-extremistas, em França como noutros países europeus. É um tema que preocupa mais as pessoas com menores rendimentos e os reformados com pequenas pensões. As referências à imigração trazem dividendos eleitorais. Marine Le Pen sabe isso. É aliás nessas categorias sociais, que outrora votavam à esquerda ou em movimentos populares, que ela encontra uma boa parte do seu apoio. Os dados do IFOP mostram que 40% dos operários e outros assalariados de condição modesta apoiam Le Pen

O assunto foi pouco falado fora do hexágono francês. É verdade que a pandemia, a Rússia, o escândalo do sofá, o futebol e a preocupação com a descida das audiências da Cristina não deixam espaço para outras notícias. Mas a carta, reveladora da agitação política que se vive em França, tem uma dimensão que ultrapassa as fronteiras nacionais. Se no próximo ano Emmanuel Macron perdesse a eleição presidencial e a extrema-direita tomasse conta do poder em Paris, o impacto desse terramoto político sobre o futuro do projeto europeu seria incalculável. Por isso, enfraquecer Macron, como alguns o fazem aqui e acolá, é um erro muito grave. 

23 ABR 2021Novas incertezas aqui ao lado, no Grande Sahel 

Em 1990, o chefe rebelde chadiano Idriss Déby regressou ao país, vindo do Sudão. Dirigia uma coluna de homens armados, composta sobretudo por combatentes originários da sua região natal.  Dias depois conquistou o poder em Ndjamena, com o beneplácito de François Mitterrand. O presidente francês sabia de geopolítica. Via o Chade como o nó essencial para os interesses, a influência e a segurança da França e dos seus Estados clientes naquela parte de África. Por isso, era fundamental que fosse controlado por um homem forte, consistente e amigo da França. Déby tinha esse perfil. E os sucessivos presidentes franceses habituaram-se a fechar os olhos às violações sistemáticas dos direitos humanos, à corrupção em alta escala e à tribalização do poder, para não enfraquecer o seu aliado em Ndjamena. 

O apoio tornou-se ainda mais sólido quando Déby decidiu que as suas tropas seriam, do lado africano, o braço forte no combate aos diferentes grupos jihadistas que aterrorizam as populações do Sahel. Os seus militares passaram a ser, de longe, os melhor preparados da região. Mesmo contra o Boko Haram, a capacidade do Chade é bem superior à da Nigéria. A missão da ONU no Mali (MINUSMA) tem uma considerável presença chadiana – 1400 militares, com uma postura mais ofensiva que a maioria dos restantes capacetes azuis. Além disso, Déby acabara de enviar uma brigada adicional de 1200 homens, no quadro da cooperação militar regional conhecida como G5 Sahel, para a zona das três fronteiras especialmente visada pelos terroristas – o triângulo onde o Mali, o Níger e o Burkina Faso convergem.

As instituições militares dos países da região são estruturalmente fracas e mantidas assim pelos políticos, que têm mais medo de possíveis golpes de Estado que dos terroristas. De todos os vizinhos, só Déby, formado como oficial em França e endurecido nas campanhas do deserto, era um verdadeiro chefe de guerra. A sua combatividade era lendária. Em 2008, uma fação rebelde chegou às portas do seu palácio. Nicolas Sarkozy propôs-lhe a exfiltração para um exílio dourado. Déby e outros fiéis, alguns deles hoje membros do Conselho Militar de Transição, recusaram, preferiram bater-se até ao fim. E acabaram por derrotar os assaltantes. Pouco depois, enquanto representante especial da ONU, discuti essa crise com Déby. Recordo três pontos desse encontro. Primeiro, o reconhecimento que as suas tropas não estavam nem organizadas nem equipadas de modo eficaz. Segundo, a decisão de passar a gastar uma boa fatia dos dinheiros do petróleo na transformação dos seus combatentes em militares profissionais. Terceiro, a decisão de procurar um entendimento com o Sudão de Omar al-Bashir, como já o havia feito com a Líbia de Gaddafi, para que territórios vizinhos não fossem utilizados como bases de lançamento de rebeliões. E assim foi. Em finais de 2009, já era nítida a diferença. Desde então, essas capacidades foram sendo consolidadas. A França, os Estados Unidos e outros ocidentais passaram a ver o Chade como a ponta de lança contra o terrorismo e o extremismo religioso. As críticas à ditadura e ao nepotismo foram postas no congelador. 

Mas nessas terras de instabilidade, a vida dá muitas voltas. Déby fechou o seu ciclo esta semana, de modo quiçá parecido com o que protagonizara há trinta anos. Só que desta vez a coluna de rebeldes era da tribo ao lado, veio da Líbia e o presidente tombou na linha da frente. O Chade, a África Central, o Sahel, a França e os europeus presentes na região ficaram mais frágeis. 

São várias as questões que se levantam com o desaparecimento de Idriss Déby. O que motivou o Presidente Macron a deixá-lo sem o apoio habitual, quando em 2019 havia enviado caças para travar uma rebelião semelhante? Erro de cálculo? Quem está por detrás desta nova rebelião, conhecida como FACT (Frente para a Mudança e a Concórdia no Chade)? Que impacto terá a nova realidade no conflito na República Centro-Africana? Que esperar do G5 Sahel e da luta contra o terrorismo nesta parte de África? Cada uma destas interrogações esconde muitas incertezas e preocupações. O futuro da pobre população do Chade é delas a maior. 

16 ABR 2021A Espanha quer correr em África em pista própria

O primeiro-ministro espanhol, Pedro Sánchez, esteve recentemente em Luanda e, no regresso, em Dakar. A deslocação marcou o arranque do plano de ação aprovado pelo seu governo com o título “Foco África 2023”. O plano é uma aposta na prosperidade africana. A Espanha quer ser um dos grandes parceiros do desenvolvimento de um conjunto de países designados como prioritários. A lista inclui, no Norte, Marrocos, Argélia e Egito, deixando de fora a Líbia e a Tunísia – uma nação a quem a Europa deveria dar uma atenção especial. Inclui ainda toda a África Ocidental (CEDEAO) e países de outras regiões – a Etiópia, o triângulo que o Quénia, Uganda e Tanzânia formam, a África do Sul e, mais perto dos interesses portugueses, Angola e Moçambique. Esta dispersão de esforços parece-me um ponto fraco. 

O plano assenta no reforço das embaixadas, das delegações comerciais e na expansão da cooperação bilateral, incluindo nas áreas da cultura, da segurança e da defesa. Para além dos intuitos políticos, abre a porta e protege os investimentos privados espanhóis nos países selecionados. É uma intervenção com duas frentes complementares, a política e a económica. Arancha González, que chefiou o Centro de Comércio Internacional, um organismo da ONU, e que agora é ministra dos Assuntos Exteriores, teve a oportunidade de ver o que a China, a Índia e outros estão a fazer em África. Essa experiência permitiu-lhe desenhar uma estratégia atual, atrativa e capaz de responder ao nacionalismo espanhol. Serve, por outro lado, a agenda pessoal da ministra, que sonha com grandes voos na cena internacional. 

A ambição declarada é a de transformar a Espanha num ator indispensável em matérias africanas, no seio da União Europeia. Assim conseguirá aumentar o seu peso relativo no universo de Bruxelas. O documento diz claramente que Madrid quer liderar a ação da UE em África. Os políticos e os empresários espanhóis sabem que o relacionamento da Europa com o continente africano vai ser, por várias razões, um tema central da política externa europeia. Estão a posicionar-se para tirar o máximo proveito desse futuro. 

A Espanha não tem a experiência subsaariana que outros países da UE acumularam ao longo da história. Mas mostra determinação política. Poderá desenvolver relações mais objetivas, sem as sombras do passado colonial e as incompreensões surgidas pós-independência. Seria um erro, no entanto, não procurar aproveitar as ligações e o conhecimento que nomeadamente a França, Bélgica e Portugal adquiriram. O desafio é demasiado grande para uma incursão sem parcerias. É esse o segundo ponto fraco desta jogada. 

A visita a Angola deixou claro que se trata de ocupar o maior espaço económico possível, da agricultura e pescas aos transportes e à energia. Existem mais de 80 projetos de investimento espanhol já em curso ou em fase de arranque. Parece haver igualmente a intenção de contar com Luanda para ajudar Madrid na normalização das relações com a Guiné Equatorial, que foi a única colónia que Espanha teve ao sul do Saará e que agora faz parte da CPLP. À primeira vista, estas diligências parecem estar em competição direta com os interesses de Portugal. Ora, o conhecimento das complexidades de Angola e da Guiné Equatorial aconselhariam a um esforço conjunto por parte dos dois Estados ibéricos.   

No Senegal, a problemática é diferente. Tem que ver com as migrações clandestinas. O país é a placa giratória para os que pretendem entrar no espaço europeu através das Canárias. Os senegaleses estão em segundo lugar, depois dos marroquinos, no que respeita às chegadas ilegais ao arquipélago espanhol. É também pelas praias senegalesas que passam muitos outros, vindos de países da região. Por isso, Espanha tem destacados no Senegal 57 polícias e guardas-civis, para ajudar a desmantelar as redes de tráfico e evitar que as pessoas se lancem numa travessia marítima muito perigosa. A outra dimensão da visita a Dakar prende-se com o facto de o Senegal continuar a ser o centro político e uma âncora de estabilidade na África Ocidental. 

Fica, de tudo isto, a nota que correr em pista própria, na imensidão africana, é um desafio que nem a um gigante aconselho. 

09 ABR 2021O infinito Vladimir Putin

Segundo dados oficiais, que valem o que valem, a revisão constitucional agora promulgada por Vladimir Putin teria recebido a aprovação de 78% dos eleitores em julho de 2020. A oposição considerou o referendo uma farsa cheia de pressões e manobras, mas o presidente irá sempre sublinhar que a revisão mereceu o apoio popular. Todos sabemos como se conseguem resultados assim, em regimes opacos e autoritários. De qualquer modo, estima-se que perto de dois terços dos russos alinham com o presidente, apesar do marasmo económico, da insatisfação social e dos entraves à liberdade. Esse nível de aceitação – ou de resignação – deve-se à propaganda incessante que o regime faz do líder, mostrando-o como um dirigente resoluto e profundamente nacionalista, personificador e protetor da identidade russa. A população ainda se lembra da governação caótica que antecedeu a sua chegada ao poder em 1999. Putin significa para muitos estabilidade e ordem pública. 

A autocracia favorece por sistema as práticas corruptas. Essa é uma das fragilidades do regime. A campanha contra o poder absoluto de Putin passa pelo desmascaramento na opinião pública da corrupção de alto nível. Atacá-lo com base nas aberrações inscritas na nova constituição não terá grande impacto. É verdade que a nova lei permite que possa manter-se na presidência, se a vida lhe der saúde, até aos 84 anos, em 2036. Esse é o aspeto mais marcante do novo texto constitucional. É uma astúcia que visa permitir-lhe sair de cena quando achar mais oportuno, sem perder um milímetro de autoridade até ao momento final. As outras alterações relevantes são a impunidade vitalícia que lhe é concedida, bem como ao fosco do Dmitry Medvedev, e a proibição dos casamentos homossexuais. 

Ver o povo russo condenado a mais um ror de anos de opressão deixa revoltado quem conhece e preza o valor da liberdade. Porém, o problema é fundamentalmente uma questão interna, que terá de ser resolvida pelo sistema político e pelos movimentos de cidadania russos. O nosso espaço de ação limita-se a condenar, insistentemente, a falta de democracia e os ataques que o regime faz contra os direitos fundamentais de cada cidadão, a começar por Alex Navalny. Mas é essencial não se ser ingénuo quanto ao perigo que Putin representa em termos da nossa estabilidade e segurança. Quando falamos de diálogo e de relações económicas não o fazemos por medo ou mero oportunismo. Fazemo-lo porque assim se deve tratar um vizinho, por muito difícil que seja, para que haja paz na vizinhança. 

Um dos problemas mais imediatos relaciona-se com a aspiração da Ucrânia a fazer parte da NATO. Esta é uma ambição compreensível. Deve ser tratada segundo os critérios de adesão – democracia, Estado de direito, resolução de conflitos por via pacífica e garantias do bom funcionamento das forças armadas nacionais, incluindo em matéria de segredos de defesa. Kiev e Bruxelas não precisam de pedir autorização a Moscovo. Vladimir Putin e os seus não ficarão nada contentes quando se chegar à fase formal de negociações. Não têm, no entanto, o direito de se opor a uma decisão legítima de política externa de um Estado independente. Convém, todavia, que tudo seja feito sem queimar etapas e com a diplomacia adequada, para evitar que um processo aceitável possa ser explorado pelo adversário, como se fosse uma provocação. 

Uma outra área de preocupação imediata diz respeito à coesão da União Europeia. Putin anda há muito empenhado em estilhaçar a unidade europeia. Vê na eleição presidencial francesa de 2022 uma oportunidade ímpar. Marine Le Pen tem, pela primeira vez, uma possibilidade elevada de vencer. É visceralmente ultranacionalista e contra o projeto europeu. A sua eleição representaria um risco muito sério para a continuação da UE. Putin sabe-o. Tudo fará para intervir no processo eleitoral francês e arruinar quem possa ser um obstáculo à vitória da candidata que melhor serve os seus interesses. É fundamental travar essa intromissão e, ao mesmo tempo, ter presente a lição que o líder russo nos recorda diariamente: as disputas vitais entre os grandes blocos já não se fazem apenas à espadeirada ou com tiros de roquetes.

02 ABR 2021A complexidade moçambicana

No seguimento do ataque terrorista à vila de Palma, dezoito organizações da sociedade civil endereçaram uma carta aberta ao presidente de Moçambique. Para além da condenação dos atos de violência, a missiva expressa a preocupação existente e lembra ao presidente Filipe Nyusi que uma situação de crise tão grave como a presente exige mais e melhor comunicação pública por parte dos dirigentes nacionais.  Percebe-se, assim, que a liderança do país não presta a devida atenção à obrigação de manter os cidadãos informados. A prática de minimizar os problemas é a norma. Não podemos ficar surpreendidos. A opacidade, a arrogância e o distanciamento são três das características que têm tradicionalmente definido a cultura política das elites no poder em Maputo. 

Também se nota que os cidadãos não entendem qual é a estratégia do governo, para além do uso das forças armadas, que mostraram, aliás, não estar inteiramente preparadas para o desafio. As ONGs não acreditam na capacidade militar nacional e sabem que não há tempo para esperar pelo treino de forças especiais em número suficiente. É verdade que formar tropas especiais é essencial. A disponibilidade expressa pelo governo português para o fazer é de louvar. Mas a situação é urgente, por razões humanitárias e não só. O que agora ocorreu em Palma, e que já havia acontecido em Mocímboa da Praia e noutras sedes distritais da província de Cabo Delgado, pode alastrar-se ao longo da costa norte, sobretudo para as áreas onde o suaíli é a língua franca. As ONGs recomendam que as autoridades peçam ajuda em matéria de segurança à Comunidade para o Desenvolvimento da África Austral e à União Africana. Não creio que o façam. Não querem olhos críticos nem dar a impressão de que o problema requer um envolvimento regional. 

É evidente, no entanto, que se trata de um conflito mais sério do que se poderia pensar até agora. A ofensiva contra Palma foi planeada de modo profissional. Uma das conclusões que se deve tirar é clara: por detrás de tudo isto há uma mão organizadora. É fundamental desmascarar essa mão, que me parece bem mais sofisticada que uma vaga conexão jihadista. 

Aparentemente, o objetivo central é impedir que o megaprojeto do gás, que está a ser lançado na região, avance. O preço do gás natural nos mercados internacionais está a um nível historicamente baixo e a tendência é para que assim continue. Não interessa aos grandes produtores de gás que apareçam novos competidores, sobretudo um que poderá ter um peso enorme. As reservas moçambicanas ocupam a terceira posição em África, a seguir à Nigéria e à Argélia. Quando estiverem em exploração – o que só acontecerá se a segurança for restabelecida na província – entrarão em competição direta com o Irão, o Qatar e a Arábia Saudita, que são, respetivamente, o terceiro, o quarto e oitavo maiores produtores mundiais. Não estou a apontar o dedo a ninguém, mas a geopolítica recomenda que olhemos para dados como estes. Sobretudo se tivermos em conta que a procura futura de gás poderá estagnar, por motivos da luta contra as alterações climáticas. A opinião pública internacional é cada vez menos favorável aos investimentos em hidrocarbonetos. 

O ponto fundamental, para além da limpeza de Palma, da ajuda humanitária e da assistência técnico-militar a Moçambique, é tentar compreender as raízes e a dinâmica desta ofensiva terrorista. Minimizar, ignorar as realidades da exclusão social ou insistir em explicações estereotipadas – incluindo as que se referem a pretensas ligações ao chamado Estado Islâmico – seria um erro. Estamos perante uma insurreição capaz de servir certos interesses e fácil de promover. São combatentes que sabem sobreviver com pouco, sem necessidade de uma logística elaborada. As armas provêm das deserções, das emboscadas anteriores, agora do ataque a Palma, e dos mercados ilegais de material militar existentes na África Oriental e Central. Não querem ocupar terreno, mas sim abater os representantes do poder e gerar a insegurança nas áreas com interesse económico, mas com fraca presença do Estado. Por isso, são indivíduos altamente perigosos. Precisam de ser levados a sério, mas sem simplismos. 

26 MAR 2021Horizontes e equilíbrios europeus

Vivemos um tempo de incertezas. A pandemia continua no centro de todas as inquietações. As diferentes mutações do vírus e a imensidade das campanhas de vacinação mostram que estamos longe da saída do túnel. E os impactos económicos, sociais e psicológicos ainda estão por determinar. Serão certamente enormes e de longo prazo. Na Europa, para já, socorremo-nos dos balões de oxigénio que o banco central e os expedientes políticos vão disponibilizando. Na realidade, estamos a viver da reputação e da penhora do futuro. Entretanto, vamos ficando para trás, quando nos comparamos à China ou aos Estados Unidos. E iremos receber uma parte dos problemas de uma vizinhança – a Sul e a Leste – que já era pobre e que verá as suas dificuldades futuras aumentar de modo incontrolável. Nada disto é pessimismo, mas sim um quebra-cabeças anunciado. 

A esses desafios juntam-se os geopolíticos. Vemo-nos arrastados para disputas que não são necessariamente as nossas. A reunião de Anchorage, que colocou frente a frente, no final da semana passada, duas delegações de alto nível – uma americana e outra chinesa –, revelou que as rivalidades entre estes países atingiram uma fase aguda de antagonismo. Pela primeira vez, nem um lado nem o outro procurou disfarçar o grau de hostilidade existente. Os jornalistas foram mesmo convidados a permanecer na sala, para tomar nota das acusações mútuas, proferidas desde o momento inicial. Só depois se passou ao recato e à substância das discussões bilaterais. 

Duas questões ficaram claras. A liderança chinesa saiu reforçada da sessão da Assembleia Nacional Popular, que teve lugar no início deste mês. Tem agora um mandato bem mais assertivo, interna e externamente. Por exemplo, os deputados ratificaram uma moção que abre a possibilidade de uma intervenção militar em Taiwan, caso as autoridades da ilha enveredem por um caminho que possa reforçar a tónica da independência. É uma mudança de linguagem muito significativa. Mais reveladora ainda é a nova postura perante os governos estrangeiros que critiquem Beijing. A China decidiu avançar para o duelo geopolítico sem máscara e com uma marcação taco a taco. 

Entrou-se num ciclo de risco que pode levar a uma confrontação entre estas potências. E a nova visão que os Estados Unidos propõem para a Europa, através do documento NATO 2030, mete os europeus nesse conflito. O que está em cima da mesa, como se viu na reunião ministerial desta semana da NATO, é uma expansão do teatro de operações da aliança, de modo a legitimar as ambições geopolíticas de Washington no Pacífico e no Índico. Ora, essas regiões estão bem fora das zonas que nos interpelam diretamente. Para mais, uma extensão para o longínquo irá certamente enfraquecer as capacidades europeias nas geografias que efetivamente nos interessam, que estão nas fronteiras imediatas da Europa. 

Podem retorquir que a China é uma ameaça económica e cibernética. Mas essas coisas resolvem-se com negociações, com medidas e contramedidas comerciais, com o reforço e a proteção das nossas economias, bem como com o aumento da capacidade de atuação dos nossos serviços de informações. Passam, em resumo, por uma Europa mais coesa. 

A redefinição do papel da NATO é necessária. O horizonte que temos pela frente é muito diferente do passado. Convém, no entanto, que nos interroguemos sobre qual deverá ser, na verdade, o nosso espaço prioritário de defesa. Também convirá debater qual é o ponto de equilíbrio entre uma Europa virada para um futuro euro-asiático e a história do nosso engajamento euro-atlântico. Vejo aqui duas variáveis que devem ser equacionadas. Uma tem a ver com o nosso relacionamento a prazo com a Rússia. Vladimir Putin não é eterno. A Rússia faz parte da nossa vizinhança estratégica, das nossas complementaridades económicas e das nossas referências culturais. A outra diz respeito à autonomia de defesa e segurança da UE. Deve ser objeto de reforço permanente, sem, todavia, pôr em causa os nossos compromissos históricos com a Aliança Atlântica. Tempos de incertezas exigem que saibamos claramente que equilíbrios manter, e que caminho escolher. Trata-se de combinar coragem com visão . 

19 MAR 2021A Europa à deriva no mar das migrações 

Realizou-se esta semana, por iniciativa da presidência portuguesa, uma reunião dos ministros dos negócios estrangeiros e da administração interna da União Europeia sobre as migrações. A precedente ocorrera em 2015, quando chegaram à Europa mais de um milhão de pessoas, vindas da Síria e de outras partes do Médio Oriente, do Afeganistão e dos países do subcontinente indiano, bem como de África. O longo hiato entre as duas reuniões aconteceu porque as migrações constituem uma problemática muito complexa e fraturante entre os Estados-membros da UE. Os líderes têm sistematicamente varrido o imbróglio para debaixo do tapete. 

Agora, o encontro foi uma nova tentativa de definir uma política comum. Fizeram-se umas declarações genéricas sobre a necessidade de uma resposta completa e coerente, que combine parcerias de desenvolvimento e de segurança com os países de origem e de trânsito dos migrantes, que abra vias para migrações controladas, que dê prioridade às relações políticas com o Norte de África e com a África Ocidental. Tudo muito vago e ao nível de meras lapalissadas. O resultado ficou, uma vez mais, aquém das expectativas. 

A Agenda para o Mediterrâneo, proposta em fevereiro pela Comissão Europeia, que era um dos documentos de referência, é igualmente imprecisa. Mete no mesmo saco realidades nacionais completamente diferentes, como se o espaço geopolítico mediterrânico fosse homogéneo. E não faz um balanço crítico do passado. Sugere que se continue e aprofunde um modelo de cooperação que, na realidade, não logrou ajudar a transformar nenhum Estado da região numa nação nem próspera, nem democrática. 

O facto é que não se consegue chegar a uma posição comum, para além do reforço da Frontex, enquanto Guarda Costeira Europeia e polícia de fronteiras. Essa é a única responsabilidade aceite e partilhada, o menor denominador comum. Quanto ao resto, tudo na mesma como dantes. Será gerido ao acaso dos acontecimentos. Os países de entrada dos imigrantes ilegais continuarão a ter de suportar os custos políticos, humanitários e económicos que resultam do acolhimento dos que aí aportam. Apesar do apelo reiterado do ministro português da Administração Interna, não haverá solidariedade entre europeus nesta matéria. 

A grande verdade é que a maioria dos Estados-membros não quer receber novas vagas de imigrantes vindos de outras geografias e de culturas diferentes. Mesmo os países que têm sido tradicionalmente o destino dos imigrantes magrebinos, africanos e outros partilham essa posição. Nós, os portugueses, estamos um bocado de fora. Não entendemos bem o peso da pressão migratória na coesão dos tecidos sociais das grandes cidades de França, da Bélgica, dos Países Baixos, da Alemanha, por exemplo. Nem temos uma noção clara do impacto político da presença de vastas comunidades estrangeiras, quando é evidente que não estão integradas nas sociedades que as receberam, sendo assim um argumento facilmente explorado pelos extremistas de direita e por potenciais terroristas.  

Nesta matéria, a Europa continuará a falar de modo construtivo e a agir de modo restritivo, repressivo mesmo. As migrações internacionais são um dos dilemas mais complexos que temos pela frente, mas que muitos europeus não querem ter em conta. Apesar do progresso dos valores de tolerância, não estamos inteiramente preparados para a diversidade das culturas e das fisionomias. Quem tiver dúvidas deve visitar os novos guetos étnicos que existem em certas metrópoles europeias. E sem ir mais longe, poderá começar por certos arredores de Lisboa.

Já vimos que o mar não é barreira suficiente para quem está desesperado ou sonha com uma vida melhor. Mas como a intenção de quem manda é a de travar movimentos populacionais que parecem ameaçadores, a Europa irá mais longe. Irá despejar fortunas nos países que têm o potencial de nos enviar novas levas de migrantes – como já está a acontecer com a Turquia. É a aposta do pau e da cenoura. Ora, nesses países, os poderosos ficam sistematicamente com a cenoura, e os pobres e os fracos levam sempre com o pau. Por isso, muitos procuram fugir para a Europa. 

12 MAR 2021Mudar de rota para evitar a colisão

Realiza-se hoje a primeira cimeira do Quad, uma nova plataforma de consulta estratégica entre os Estados Unidos, a Austrália, a Índia e o Japão. Quad resulta da abreviatura de quadrilateral. Desde 2007 que os ministros dos negócios estrangeiros destes países se encontram, esporadicamente, para discutir a segurança da região indo-pacífica. Desta vez, a reunião é ao mais alto nível, embora de modo virtual, com Joe Biden e os primeiros-ministros dos três outros Estados. 

O presidente norte-americano e Scott Morrison, da Austrália, são os verdadeiros instigadores deste projeto. Narendra Modi e Yoshihide Suga tinham mais reticências. Não queriam que o encontro parecesse o que na verdade é: uma via para discutir como travar a crescente influência da China nas regiões do Índico e do Pacífico. Por isso, a agenda oficial regista três pontos apenas – o combate à pandemia; a cooperação económica e a resposta às alterações climáticas. Esta lista esconde assim a preocupação dominante, o poder cada vez mais resoluto da China nos dois oceanos e junto dos Estados ribeirinhos. A China já possui a maior frota armada do mundo, com navios de combate, de assalto anfíbio, de logística, porta-aviões, quebra-gelos polares e submarinos. Nos últimos 20 anos, a sua capacidade naval foi multiplicada por três. Tem mais embarcações do que os Estados Unidos e a ambição para o corrente quinquénio (2021-2025) foca-se no aceleramento da produção dos meios que assegurem presença e visibilidade, no aumento da capacidade em mísseis de vários tipos e na expansão do armamento nuclear.   

A envergadura destes investimentos militares e a política externa muita incisiva do Presidente Xi Jinping deixam alarmados muitos estrategas americanos. É neste contexto que deve ser vista a cimeira do Quad. Há mesmo quem pense que, a prazo, o objetivo de Washington é o de criar uma aliança de defesa que abranja o Índico e o Pacífico, num arranjo que se inspiraria no que existe no Atlântico Norte, ou seja, a criação de uma NATO do oriente. 

Não vai ser fácil. A Índia, por muitos problemas fronteiriços que tenha com a China, não quer ser vista por Beijing como um vizinho hostil. Procura, apesar das disputas existentes, manter um certo equilíbrio diplomático com os chineses, de modo a moderar o apoio destes ao Paquistão, que é olhado pelos líderes indianos, esse sim, como o seu inimigo número um. Mais ainda, Nova Delhi quer aparecer, não só perante os chineses, mas também face aos russos, como um poder autónomo em matéria de defesa. Modi é um nacionalista que sabe muito de geopolítica e de jogo de forças.

O Japão, por razões diferentes, também não deseja entrar numa confrontação aberta com a China. Procurará continuar a beneficiar do guarda-chuva militar americano, mas sem ir além de uma política prudente em relação a Beijing. Tóquio aposta mais nos interesses mútuos que na rivalidade. E enquanto Beijing não tentar capturar as ilhas japonesas de Senkaku, há muito objeto de disputa diplomática entre os dois países, Tóquio não deverá alterar a sua posição. 

Porém, a estratégia americana nesta parte da Ásia é a de criar uma frente de contenção face à China. Se a iniciativa Quad não resultar, voltar-se-ão para a Europa, a começar pela NATO. É aqui que tudo isto tem que ver com a nossa segurança. Não defendo a ideia de uma aliança esticada até aos confins do globo, por muito que os europeus vejam a China como um competidor económico pouco leal ou como um Estado que não segue os valores que consideramos essenciais – a democracia, a liberdade e os direitos humanos. 

O risco de um confronto armado naquela parte do mundo é cada vez maior. O papel da Europa deve ser o de apelar à moderação, ao respeito pelas normas internacionais e ao diálogo efetivo entre os líderes americanos e chineses. Os desafios globais que o mundo hoje enfrenta já são por demais, e exigem a construção de uma agenda de cooperação entre as grandes potências. E aí, sim, deverão poder contar com o empenho europeu.

05 MAR 2021Uma Primavera europeia com mais pujança

As próximas seis a oito semanas, que incluem o período da Páscoa, poderão ser um período de grandes tensões na União Europeia (EU). Entramos na Primavera. É a altura em que a vida volta a brotar. As pessoas, como os rebentos das plantas, querem sair à rua para apanhar o novo sol. Tornam-se impacientes e aceitam dificilmente que os seus movimentos sejam controlados por um polícia a cada esquina. 

Os líderes europeus, incluindo a Comissão, continuam a projetar uma imagem de inconsistência perante a calamidade que enfrentamos desde há um ano. O desafinamento é geral, embora, como a reunião da semana passada mostrou, os membros do Conselho Europeu procurem disfarçar o desapontamento e manter a discussão dentro dos limites das boas maneiras. Não há críticas diretas, mas vários dirigentes nacionais andam à procura de alternativas, fora do quadro comum. Viktor Orbán, como sempre, foi o primeiro a sair da fotografia. Esta semana fez-se vacinar publicamente com a Sinopharm chinesa e aprovou a aquisição da Sputnik V russa. Tudo à revelia do decidido em Bruxelas. A via que abriu está a ser seguida pela República Checa, a Croácia, a Eslováquia e a Polónia, que também querem a vacina russa ou as produzidas na China. 

A conclusão é simples. A falta de celeridade da campanha de vacinação é atualmente o problema político mais importante na Europa. Sem a imunidade generalizada, o resto, a vida familiar, a economia, a cultura, o desporto, as viagens, as atividades sociais, continuarão moribundas. Em declarações que fez esta semana, Von der Leyen parece ter finalmente entendido a importância de uma campanha rápida, eficaz e bem explicada. Mas não é suficiente. A confusão, a burocracia, a baralhada com as farmacêuticas e os enviesamentos geopolíticos continuam a atrasar tudo. E não há quem consiga proporcionar a liderança que é precisa. A Presidência atual do Conselho Europeu anda dispersa com outras coisas, como se estivéssemos num tempo normal e não houvesse uma prioridade absoluta. Portugal tem de corrigir o tiro. 

Ao nível dos Estados membros, para além da desorientação reinante, verificamos que as políticas adotadas são as tradicionais – confinar, fechar tudo e criar barreiras nas fronteiras. E agora a fratura é acentuada pelos pactos bilaterais que estão na forja entre a Áustria e a Dinamarca com Israel, um país que tentará explorar ao máximo os dividendos políticos desses acordos. 

São respostas caso a caso, que põem em causa o esforço comum.

Em França, Emmanuel Macron deixou de ter tempo para as questões europeias. Está enredado numa situação política complexa, agravada pela proximidade das presidenciais de 2022. As sondagens, com Marine Le Pen em ascensão, não o deixam em paz. Sem contar que Michel Barnier poderá entrar na contenda, surgindo assim como mais um obstáculo à reeleição do atual presidente.  

Na Alemanha, onde a economia e a opinião pública resistem melhor à crise, não há grande entusiasmo pelos assuntos europeus. A questão central é a da sucessão, dentro de meses, de Angela Merkel. A que se juntou agora a decisão de colocar o partido da extrema-direita, a Alternativa para a Alemanha (AfD), sob vigilância policial.  

Em Itália, a chegada de Mario Draghi ao poder é favorável à Europa. Trata-se de um europeu convicto e corajoso. Mas, tem de se focar, acima de tudo, na delicada situação económica e social em que o seu país se encontra. E em manter a sua frágil coligação coesa. 

O resto da UE pesa pouco na definição da linha futura. Assim, é essencial ter em Bruxelas uma liderança comunitária forte. Essa é uma das lições que se deve tirar da presente barafunda – precisamos de líderes sólidos nos principais países da União e de políticos de primeiro plano nas instituições europeias. A prática de mandar para Bruxelas personalidades de segunda linha não serve. Na crise atual e perante a dimensão dos desafios dos próximos anos, há que pensar numa remodelação profunda da presente Comissão e num reforço dos seus poderes. Algo difícil, mas que deve ser encarado sem demoras e com a necessária sensibilidade. 

26 FEV 2021Arrumar os fantasmas que nos perseguem

Nos tempos da União Soviética, dizia-se em Moscovo que o passado era imprevisível. A história da governação comunista mudava cada vez que uma nova clique se apoderava do Kremlin. Essa piada lembra-nos que a narrativa sobre a história tem uma importância política colossal. É normalmente capturada pela classe dominante, para justificar o seu controlo do poder. Assim acontece nas ditaduras.

Num quadro democrático, deve prevalecer uma versão, sobretudo na descrição das épocas mais controversas, que seja o mais próximo possível de um consenso amplo. Os Estados constroem-se com altos e baixos. Resultam das variadas facetas que os povos foram vivendo ao longo dos tempos, numa conexão de momentos heroicos e criativos com outros de retrocesso e tragédia. A verdade é que um país moderno não pode viver em contínuo desassossego com o seu passado. Estados que conheceram crises nacionais profundas e que, finalmente, conseguiram deixar para trás regimes autoritários, abusadores dos direitos humanos, têm de encontrar maneiras de arrumar essa fase da sua história e de focar as suas energias na construção de um futuro livre, próspero e mais justo. E em paz consigo mesmo. 

Assim aconteceu na década de noventa na África do Sul ou, logo depois já no nosso século, na Serra Leoa, após as atrocidades cometidas durante a guerra civil (1991-2002). Em ambos os casos, as novas autoridades políticas estabeleceram Comissões de Verdade e Reconciliação. No essencial, para além da responsabilização de quem tivera um papel chave durante o período tenebroso e do reconhecimento dos crimes cometidos por indivíduos que agiram como executantes excessivos de ordens recebidas, as comissões permitiram construir uma memória aceitável sobre esses tempos dolorosos, dar uma plataforma para as vítimas se fazerem ouvir e sanar as ansiedades comuns. 

Nas últimas três décadas mais de quarenta países viram a necessidade de fazer uma introspeção coletiva do seu passado. Utilizaram instrumentos de administração da justiça e de reconciliação próximos dos pilotados pelos sul-africanos e os serra-leoneses, com as adaptações necessárias a cada contexto. Em geral, esses esforços levaram ao reforço da coesão nacional. Uma síntese das suas conclusões mostra que o foco foi sempre colocado em quatro pilares: explicação do acontecido, amnistia, reparações e resolução das discriminações. Trata-se, no fundo, de reconhecer os erros, evitar a sua repetição, apagar o ódio e criar as condições para encarar o futuro de modo construtivo. 

Uma das comissões mais recentes foi a canadiana (2015). O cerne da sua missão consistiu na análise das injustiças praticadas contra as comunidades indígenas e na proposição de medidas de reparação e de igualização de oportunidades. A questão era importante, pois alimentava uma linha de fratura social e dava espaço aos discursos racistas sobre a superioridade branca. Ao olhar para os Estados Unidos, os canadianos compreendem a importância do combate ao racismo e ao radicalismo baseado na cor da pele.  

Um povo não pode passar os dias a discutir os fantasmas de outrora. Nem a imitar os estalinistas que apagavam personagens das fotos oficiais, segundo as conveniências políticas da hora. Os fantasmas que cada povo tem – uns terão mais do que os outros – devem ser catalogados com bom senso e arrumados no museu dos factos históricos. 

Ruídos recentes levaram-me a escrever este texto. Refiro-me à polémica sobre os brasões na Praça do Império frente ao Mosteiro dos Jerónimos, à ideia demolidora que trouxe o Padrão dos Descobrimentos para as redes sociais ou, ainda, ao passamento de um antigo militar que ganhou as suas medalhas no campo da guerra colonial. A paixão extrema das posições assumidas por muitos mostra, uma vez mais, que ainda não conseguimos falar com serenidade do Portugal que virou a página há quase cinquenta anos. Ora, sem esquecer o acontecido, os muitos problemas que temos pela frente pedem que passemos ao capítulo seguinte. Caso contrário, andaremos em conflito com nós próprios, absortos aos tiros nos pés, para o proveito e gáudio de quem nos quer manter distraídos. 

19 FEV 2021Uma vacina contra as rivalidades geopolíticas

Boris Johnson convocou para hoje uma cimeira extraordinária virtual do G7. Justificou-a dizendo ser urgente encontrar um acordo que permita uma resposta global à covid-19, ou seja, o acesso de todos à imunização possível. Acrescentou que seria igualmente uma oportunidade para coordenar a procura de vacinas, de modo a evitar-se uma corrida desenfreada às poucas quantidades já disponíveis. A cimeira seria a ocasião para resolver a competição entre os Estados, que, se continuar, poderá levar a sérias fraturas políticas entre parceiros tradicionais, como se viu recentemente no aumento da tensão entre UE e o governo de Londres. 

O Reino Unido ocupa a presidência do G7 em 2021. Daí a legitimidade da iniciativa de Johnson. Mas o primeiro-ministro pode ter outros objetivos bem para além da busca de uma resposta global à pandemia. O homem é um político habilidoso, com jeito para ações espetaculares. Vai tentar aproveitar ao máximo a oportunidade que a liderança do G7 lhe oferece para mostrar aos seus eleitores que tem uma estatura global capaz de marcar a agenda do grupo dos países mais desenvolvidos. Se isso se traduzir num incremento da cooperação internacional, que bem precisa de ser estimulada, só poderemos agradecer. 

Receio, no entanto, que não consiga alcançar esse resultado. O tema da reunião é manifestamente prioritário, mas não se pode limitar aos países do G7. É verdade que a Austrália, a Coreia do Sul e a Índia foram também convidadas a participar na cimeira. A Índia conta, em matéria de produção de vacinas. Mas o convite traduz, sobretudo, o interesse específico do Reino Unido em reforçar as suas relações com esses países e não a contribuição que eles possam dar para fazer chegar as vacinas aos lugares mais pobres e recuados do planeta. Reflete igualmente uma outra agenda política, que é partilhada por outros, especialmente por Joe Biden. A de barrar as ambições geopolíticas dos principais rivais dos Estados Unidos e dos seus aliados ocidentais. Só que fazer política internacional à custa de uma pandemia não me parece ser eticamente aceitável. 

Na realidade, seria mais oportuno organizar uma reunião do G20 para tratar da harmonização da distribuição das vacinas e definir a contribuição de cada um para a realização desse objetivo. O G20 tem o mérito de sentar à mesma mesa todos os países do G7 mais a China e a Rússia, entre outros. A coordenação com estes dois Estados é fundamental para um combate rápido, eficaz e generalizado contra o vírus. A intromissão de rivalidades hegemónicas não deveria ser admitida, quando se trata de responder a um problema que ameaça a saúde de todos, o progresso social e a estabilidade do futuro. Segundo estimativas do Banco Mundial, a pandemia já fez voltar à pobreza extrema um número dramático de pessoas – poderão ser à volta de 115 milhões. Acresce que a impossibilidade de acesso às vacinas por parte das populações dos países mais pobres provocará uma distorção mundial com consequências inimagináveis. Entre outros aspetos, as desigualdades internacionais ficariam ainda mais acentuadas, explosivas mesmo. O agravamento dos desequilíbrios entre regiões do globo é um dos maiores riscos que temos à nossa frente. 

O G20 é atualmente presidido pela Itália. O executivo italiano, agora com Mario Draghi à cabeça, enfrenta imensos problemas internos. Não está em condições de exercer um papel de liderança na cena internacional, numa altura em que esta precisa de um gigante que a mobilize de modo incontestável. Draghi tem previsto realizar a 21 de maio, em Roma, uma cimeira global sobre a pandemia e questões afins. Maio é, contudo, daqui a uma eternidade, quando se precisa de decisões urgentes. 

Entretanto, num espírito positivo, espero que a reunião de hoje do G7 permita reforçar a COVAX, o mecanismo criado pela OMS, em colaboração com várias organizações, para garantir aos países com poucos recursos financeiros e operacionais um acesso equitativo às vacinas contra a covid. Se isso acontecer, teremos de reconhecer que a iniciativa tomada por Boris Johnson terá tido algum mérito.

12 FEV 2021No Sahel, muitos militares e pouca política

A chamada veio de Bamako. Do outro lado da linha, estava um antigo colega, agora de regresso à terra natal, depois de uma carreira brilhante nas Nações Unidas. O essencial da sua conversa foi contra a presença maciça de tropas estrangeiras no seu país. São cada vez mais, quer no quadro da missão da ONU – conhecida pelo acrónimo MINUSMA – quer por intervenção da França. Contrariamente às declarações recentes de Emmanuel Macron, que afirmou que a guerra contra o terrorismo no Sahel estaria a ser ganha, o meu amigo falou-me da deterioração da situação no Mali e nos países vizinhos. Ou seja, há mais militares, mas, paradoxalmente, menos segurança. 

Vejamos as últimas estatísticas da Organização Internacional das Migrações. Contabilizam cerca de 1,7 milhões de deslocados devido à instabilidade e às ações armadas nesta parte do Sahel, sobretudo na zona das três fronteiras, entre o Mali, o Níger e o Burkina Faso – uma região conhecida como Liptako. Estima-se, por outro lado, em cerca de sete mil as vidas perdidas nos últimos doze meses por atos de terrorismo e operações de prevenção e de resposta contraterrorista. São números muito acima da média dos anos anteriores. Mais ainda, uma investigação recente das Nações Unidas mostra que no Mali, desde 2013, se têm cometido crimes de guerra e atrocidades. O relatório, que além de apontar o dedo a terroristas põe em causa forças armadas de certos estados, caiu num buraco profundo, no Conselho de Segurança, e aguarda debate para as calendas gregas.  

Liptako é um território vasto, com uma área onde Portugal caberia três vezes e mais. Os fulas, na sua dupla condição de pastores nómadas e de comerciantes itinerantes em longas caravanas, têm tradicionalmente partilhado essas imensidões secas e agrestes com outras etnias. Mas os modos de vida mudaram. O crescimento demográfico acelerado das últimas décadas, a que se junta uma enorme pressão da pecuária – uma multiplicação das manadas e rebanhos –, as chuvas cada vez mais irregulares e escassas, por causa das mudanças climáticas, a pobreza e a ausência de uma administração estatal eficaz contribuíram para um ambiente generalizado de instabilidade social, revolta e conflitos. A corrida ao ouro, que começou a ser explorado intensivamente de modo artesanal vai para vinte anos, tem atraído novas ondas de violência. Esse é o quadro em que se movem e operam vários bandos armados sob as bandeiras confusas da rede terrorista do Estado Islâmico no Grande Saará (EIGS) ou, mais a norte, a caminho da fronteira com a Argélia, as gentes afiliadas à Al-Qaeda. O fanatismo religioso serve de desculpa ou baralha-se com o banditismo. Para muitos jovens, a kalashnikov passou a substituir o bordão do pastor ou a enxada do agricultor, num contexto progressivamente mais árido, imprevisível e perigoso. Dizia-me alguém da região que aderir a um grupo armado é para muitos um ato de autoproteção. 

Existe aqui um problema enorme que exige fundamentalmente dois tipos de abordagens: uma será política e a outra de combate à desertificação e à pobreza. Mencionarei apenas a parte política, que requer a inclusão de todos, sem discriminações de base étnica. Também significa mostrar publicamente mão firme contra a corrupção, nas instituições militares e na administração do Estado. Inclusão e probidade são duas questões fundamentais, que têm de ser resolvidas pelas elites nacionais. 

 Os parceiros europeus têm fechado os olhos e pretendido que não veem esses problemas. Por exemplo, andam há anos a formar os oficiais das forças armadas do Mali, sabendo perfeitamente que esses oficiais mantêm uma mentalidade tribal e desviam sistematicamente para proveito próprio recursos destinados ao esforço de estabilização do país. É preciso mudar a maneira de agir no Sahel. O diálogo com os países da região deve ser respeitoso. O futuro que está em causa é, acima de tudo, o deles. Não podemos retirar-lhes a direção do processo. Ser mais papista que o Papa na terra dos outros é uma prática que tem de ser arrumada de vez, numa gaveta do passado. Mas tem de ser um diálogo franco. 

05 FEV 2021Suu Kyi e a nossa Ursula

Tencionava escrever sobre o golpe de estado em Myanmar. Sigo regularmente o que aí se passa, especialmente o papel das associações da sociedade civil na defesa dos cidadãos, os investimentos chineses e o seu impacto político, assim como a ação dos diferentes grupos armados de base étnica. A China, que é o segundo maior investidor estrangeiro no país – o primeiro é Singapura – partilha com Myanmar uma longa fronteira e vê no seu vizinho sobretudo um corredor económico de acesso mais curto e direto ao Golfo de Bengala. Esse corredor tem um interesse estratégico enorme para os chineses, quer para as importações de gás e de petróleo, quer para as exportações para o Médio Oriente e África. As mensagens que iria incluir no meu texto seriam para condenar o golpe militar e defender o processo de democratização iniciado em 2015 e as legislativas de novembro de 2020 – que o Carter Center considerou como aceitáveis, apesar das restrições impostas pela pandemia e pelas rebeliões armadas. 

Também procuraria discutir as dúvidas que a atividade política de Aung San Suu Kyi tem levantado nos círculos ocidentais, lembrando ao mesmo tempo que a senhora ganhou as eleições de novembro por larga maioria. A apreciação dos birmanes é muito distinta dos julgamentos que nós, com os nossos olhos europeus, fazemos. Teria mencionado, nesse meu texto, o bloqueio que o Conselho de Segurança da ONU sofre, quando se trata desse país. Essa incapacidade de condenar foi claramente demonstrada a partir de 2017, aquando da perseguição e expulsão para o vizinho Bangladesh de quase um milhão de pessoas da etnia rohingya. A objeção vem sempre do mesmo lado, de Beijing, e com Moscovo a fazer o favor político de se alinhar com os chineses, numa manobra tática à espera de dividendos. Porém, desta vez surpreenderam-me, pela positiva. A China e os outros membros do Conselho de Segurança aprovaram ontem uma declaração que considero forte e que condena explicitamente o golpe militar e a detenção arbitrária de Aung San Suu Kyi e de todos os outros. Foi uma surpresa encorajadora, que inclui um apelo inequívoco ao respeito pelos direitos humanos e pelas liberdades, nomeadamente a da imprensa. Iria especular que este acordo sobre Myanmar é um bom sinal, que poderá ser visto como um gesto conciliador de Xi Jinping a Joe Biden.  

Decidi, contudo, mudar de ideias e focar-me na balbúrdia em que se transformou a campanha de vacinação na União Europeia. Cada dia que passa mostra que a questão das vacinas é altamente política e que os atrasos, fracassos, lentidões e injustiças podem ter um efeito devastador sobre a imagem da Comissão Europeia e a autoridade moral e a estabilidade dos governos nacionais. Fica igualmente claro que a prioridade das prioridades na UE tem de ser a imunização sem demoras do maior número de cidadãos. 

Em finais de dezembro, Ursula von der Leyen dizia, com um misto de alegria e arrogância, que a campanha estava lançada em simultâneo em todo o espaço europeu. A Comissão decidiu, e bem, que as encomendas junto das farmacêuticas seriam feitas de modo unificado, para toda a UE. Essa maneira de proceder aumentaria a nossa força negocial perante um sector que é poderosíssimo e experiente na redação de contratos comerciais. Passadas cinco semanas, temos cerca 2,9% da população vacinada na União, e mais de 14,5% nas terras de Boris Johnson. Ainda, as vacinas encomendadas não aparecem, por não haver capacidade suficiente de produção, de logística e porque as farmacêuticas já tinham outros contratos assinados previamente. 

Assim, entramos em fevereiro com a perceção clara que não há assunto mais explosivo do que este. E com a certeza que é fundamental transformar a vacinação numa verdadeira campanha, urgente, massiva, eficaz e com critérios justos e aceites pelas populações. Caso contrário, caminharíamos a passos largos para o caos político e social. Muito longe e diferente de Myanmar, obviamente, mas igualmente desestabilizador.  

29 JAN 2021Putin anda inquieto

Vladimir Putin é um verdadeiro quebra-cabeças, no sentido literal e figurado. Face às recentes e múltiplas manifestações populares, respondeu com redobrada violência e voltou a demonstrar que, na sua visão política, não há espaço para a mínima contestação. Às aspirações democráticas contrapôs os bastões das polícias e a detenção de milhares de cidadãos. 

Especialistas em política interna russa dizem-me que, pela primeira vez, Putin não se sente tranquilo. Vê o que se passa na Bielorrússia e teme o contágio. Ainda, o oponente Alexei Navalny aparece, hoje mais que nunca, como uma ameaça a sério. A coragem que Navalny demonstrou, ao regressar pelo seu pé a Moscovo, apesar de saber que se ia meter na boca do lobo, impressionou uma parte dos seus compatriotas. Mostrou determinação, que é uma das principais qualidades exigidas a um líder político. Por outro lado, temos a divulgação esta semana, também por Navalny, de um longo vídeo que exibe o luxuoso palácio que Putin mandou construir para seu uso nababo. A reportagem sobre esta extravagância imensa, uma versão delirante de Versalhes no Mar Negro, está a ser vista por milhões de cidadãos. Quem sabe destas coisas considera que o impacto político do vídeo sobre a imagem de Putin é fortíssimo. Se assim for, confirma-se o que sempre disse: para fazer sair o autocrata é preciso abalar a sua alegada autoridade moral junto dos cidadãos. O nome de Putin precisa ser diretamente associado à corrupção em alta escala que existe nos meandros da elite em que se move. É fundamental mostrar que o abuso do poder e a falta de ética têm como objetivo a satisfação do ego e da ganância pessoal do presidente.   

Putin também é um quebra-cabeças para os dirigentes da UE. Após seis anos de sanções europeias contra o regime russo, o que se conseguiu obter foi nada. Antes pelo contrário, as sanções oferecem-lhe um pretexto para reforçar a sua narrativa nacionalista, para propalar que o Ocidente é contra a Rússia e que o seu papel histórico é o de defender a pátria e a alma russas. 

Na realidade, as medidas adotadas pela UE contra a autocracia e a hostilidade do Kremlin são pouco incisivas. Frente à Rússia, Angela Merkel e outros europeus a ocidente da Alemanha dão uma no cravo e outra na ferradura. Não atingem o centro do poder e não tocam, senão ligeiramente, numa das principais fontes de receitas das suas finanças públicas, o gás. O exemplo mais flagrante é o projeto Nord Stream 2, que está quase concluído. A passagem à fase operacional desse gasoduto tem de ser vista como uma oportunidade para um diálogo político que inclua, por exemplo, a libertação de Navalny e de outros presos políticos, o fim quer dos ataques cibernéticos contra alvos estratégicos europeus quer do apoio pelo Kremlin a movimentos neofascistas alemães, franceses, italianos e outros. Ou seja, a entrada em funcionamento de Nord Stream 2 tem de estar ligada ao restabelecimento de uma plataforma de confiança política entre as partes.  

Entretanto, Joe Biden e Vladimir Putin tiveram uma primeira conversa. Para além de ter permitido perspetivar a continuidade do tratado sobre o controlo de armas nucleares, o New Start, que havia sido assinado em 2010 e que expirava daqui a oito dias, o presidente norte-americano marcou claramente a sua posição em matérias relacionadas com a soberania da Ucrânia, a espionagem e os ciberataques praticados pelos serviços russos, e a defesa, incluindo a proteção dos aliados de Washington. Sublinhou igualmente que Navalny deve ser liberto. Esta maneira de tratar com Putin aponta a linha que deve ser seguida pelos europeus. Uma linha aberta, clara e firme, baseada no contacto permanente com Moscovo e na referência constante aos valores da democracia. Os mesmos valores que mobilizam milhares de cidadãos russos, apesar do frio e da repressão.  

22 JAN 2021Biden no trapézio e o mundo na corda bamba

Muito do que se decide no círculo do poder em Washington tem um impacto global, quer se queira quer não. Peço desculpa por começar este texto com esta lapalissada. Mas é um facto que a política americana continua a pesar mais do que nenhuma outra na relações estratégicas e económicas internacionais. Assim, com a entrada em funções da administração Biden, a cena internacional começou um novo capítulo. É uma mudança profunda de rota, num sentido positivo e democrático. Para já, anuncia a esperança de um apaziguamento das tensões criadas ao longo dos últimos quatro anos e que colocaram as dinâmicas entre os principais atores mundiais num patamar potencialmente explosivo. O diálogo deverá substituir a política da confrontação e do abuso da força. 

Vivemos, porém, num tempo de grandes interrogações. A mobilização de dezenas de milhares de paramilitares, para assegurar a tranquilidade da cerimónia de entrada em funções do novo presidente, é um indício flagrante da gravidade das contradições internas que existem na sociedade americana. Joe Biden tem um trabalho de equilibrista à sua espera. Sabe que é feroz a hostilidade que foi fomentada pelo seu predecessor, e amplificada por vários dirigentes que se sentam no Congresso ou por comentadores que aparecem em certos canais televisivos. É ainda mais perigosa por ter gerado, na mente de muitos fanáticos, uma diabolização dos oponentes. Na lógica doentia de alguns desses tresloucados, o passo seguinte é a ação violenta, o tentar aproveitar qualquer oportunidade para atirar a matar sobre a democracia. Essa possibilidade é um risco que o Serviço Secreto terá de equacionar de modo permanente.  

Ao procurar uma visão mais ampla do que poderá acontecer no seguimento deste momento de viragem, noto que ninguém consegue vaticinar de modo convincente os contornos do que temos pela frente. Apenas se pode dizer que o mundo de amanhã será diferente do que conhecemos até agora. Quem pensa que tudo voltará à situação onde estávamos em 2019, antes da pandemia, ou em 2016, antes da presidência de Donald Trump, só pode andar a sonhar com o passado. 

O capítulo que agora se abre combina uma certa dose de otimismo com uma longa lista de incertezas. Na véspera da tomada de posse de Biden, participei numa discussão internacional sobre as perspetivas e os desafios que se podem antever no horizonte dos próximos anos, e não houve clareza de ideias. Quem olha para o futuro com honestidade intelectual pode identificar um número de pistas possíveis, mas acaba por ter de confessar que tudo é incerto e nebuloso. 

Os únicos pontos de acordo dizem respeito à pandemia do coronavírus. Primeiro, aceitamos todos que a pandemia é um desafio enorme, que condiciona todos os outros. Por isso, deve ser tratada como a prioridade das prioridades. Isto exige uma mobilização excecional da atenção política e de todos os meios necessários. A segunda área de acordo é sobre o imperativo da cooperação internacional. Países do Norte e do Sul, como eufemisticamente se diz, todos devem colaborar de modo a tornar as vacinas acessíveis a cada pessoa. A luta contra a covid deve ser uma ponte de união e de cooperação entre os povos, e não uma linha de maior fratura. Seria uma tragédia de consequências incalculáveis sair desta crise com um mundo ainda mais dividido entre ricos e pobres, e, infelizmente, essa possibilidade existe. Terceiro, também há acordo sobre a duração da crise. Não podemos alimentar a ilusão de que dentro de meses tudo estará resolvido. As questões logísticas, as dificuldades financeiras e as insuficiências em matéria de infraestruturas, sobretudo nos países mais pobres, as mutações que o vírus vai conhecendo, sem esquecer os comportamentos de algumas pessoas, tudo isso pede tempo, diligência, paciência e prudência. Essas são as mensagens que devem ser sublinhadas. 

A incerteza é uma fonte de medos, de insegurança e conflitos. É propícia ao aparecimento de iluminados políticos, que reduzem a complexidade dos factos a duas ou três frases, e as soluções a um par de slogans. Por isso, há que estar atento e combater todas as formas de demagogia e mentiras políticas, de que se alimentam os populismos de todas as matizes.

15 JAN 2021Le Pen e as nossas penas

Marine Le Pen veio a Portugal para apoiar o seu parente ideológico. A senhora é, em França, a face mais visível e feroz do extremismo de direita. O seu partido, o Rassemblement National (RN), é um apanhado de retrógrados, neofascistas, racistas, rufiães, antiglobalistas, bem como de vários órfãos políticos e outros ressabiados. A salgalhada inclui parte dos novos pobres, um proletariado que a modernização e a internacionalização da economia empurraram para os subúrbios da política e da vida. O RN representa um pouco mais de 20% do eleitorado, uma percentagem reveladora de uma França cheia de contradições, frustrações, desigualdades e ódios. Na cena partidária do país, Le Pen e os seus são olhados, incluindo pela direita conservadora, como nada recomendáveis, gente que não se deve frequentar. 

Em 2017, Le Pen foi à segunda volta das eleições presidenciais contra Emmanuel Macron. Saiu inequivocamente derrotada e com uma imagem de incompetência. No debate televisivo contra o seu opositor, meteu os pés pelas mãos, quando questionada sobre temas de substância. Não conseguiu ir além das chapas estereotipadas. Ficou assim confirmado que a sua ideologia era oca, forrada com ultranacionalismo primário, passadismo, xenofobia e uma ambição pessoal desmedida.

Prepara-se, agora, para as presidenciais de 2022. Uma parte da direita conservadora sabe que um novo embate entre Macron e Le Pen acarretará uma nova derrota. Por isso tem procurado encontrar uma alternativa mais credível, mas sem o conseguir. Marine Le Pen e a implantação local do RN não deixam espaço para essas manobras. O rosto do extremismo de direita continua a ser o seu. Porém, depois do fracasso de 2017, a senhora aprendeu que o poder não se conquista, numa sociedade politicamente madura, com meras tiradas de bota-abaixo. Na entrevista ao Diário de Notícias (10/1/2021), deixou claro que a sua campanha se irá concentrar em quatro temas – segurança, imigração, família tradicional e emprego. Na realidade, isto significa que, para ganhar votos, procurará explorar os medos e as fragilidades, sobretudo o pavor do que é estrangeiro, os sentimentos de precariedade e de injustiça social, bem como os preconceitos decorrentes de uma visão antiquada das relações entre as pessoas. 

No fundo, a principal estratégia de Le Pen e de todos os extremistas consiste na diabolização de uma categoria de cidadãos, na criação de um inimigo interno, que passa a ser o foco visível e repetido de todos os ataques. No caso francês, é fácil identificar esse alvo – os muçulmanos. São eufemisticamente designados como “imigrantes” e concentram todo o fogo que o RN traz para o combate. A isso junta-se uma retórica de nacionalismo económico, que jura defender os empregos dos franceses. Assim surgem os slogans contra o Islão, a imigração, a globalização e fortemente anti-UE, bem como as bandeiras do patriotismo patético e da civilização ocidental à moda RN.  

Foi esta personagem que veio apoiar o “primo” português. Durante a estada, poderá ter notado que as hipóteses de crescimento da extrema-direita lusa são praticamente inexistentes. Falta aos nossos exaltados um grupo social que possa ser efetivamente referenciado como uma ameaça para a segurança da sociedade e a preservação da cultura nacional. Sem um alvo que faça medo, os movimentos radicais não ganham força. Não existindo fraturas nacionais graves, o “primo” não teve outro remédio senão focar-se no único grupo social que apresenta algumas diferenças em relação à generalidade dos cidadãos. Mas este grupo – a comunidade cigana – não é visto pelo resto dos portugueses, apesar de existirem imagens e preconceitos que vêm de longe, como uma ameaça existencial. São, antes pelo contrário, pessoas tidas como vulneráveis e sem poder. A verdade é que os extremistas da direita portuguesa, ao contrário do que acontece noutros países europeus, têm pouco espaço político, por não haver um filão identitário que possa ser explorado. 

Isto não significa que não se deva estar atento. Antes pelo contrário. Aqui, como no resto da Europa, os próximos anos vão conhecer grandes crises sociais, no seguimento da pandemia. E as crises de envergadura costumam abrir as portas ao aparecimento de pretensos salvadores da pátria que, ensina-nos a história, sempre a afundaram.

08 JAN 2021 Mugabe e Trump, filhos do mesmo monstro

Apesar das boas notícias vindas do Estado da Geórgia, o essencial da semana política americana deixou muitos de nós estupefactos, neste lado do Atlântico. Entre outros aspetos, veio lembrar-nos que a democracia é um combate sem fim, que nunca pode ser considerado como definitivamente ganho. Também nos mostrou que a existência de instituições sólidas permite defender a democracia, quando atacada por demagogos, oportunistas, charlatães, aspirantes a caudilhos ou meros arruaceiros. Mas, atenção, pois também vimos esta gente tentar servir-se das instituições para procurar consumar o assalto ao poder. 

No centro da investida antidemocrática temos, como se sabe, o infame Donald Trump. Curiosamente, à medida que fui seguindo as suas manobras, veio-me à lembrança o falecido Robert Mugabe, que esteve décadas à cabeça do Zimbabué. Pode parecer despropositado meter Trump e Mugabe no mesmo saco. Sobretudo porque Mugabe era um político culto, hábil em matéria de diplomacia e profundo conhecedor dos meandros geopolíticos. É difícil comparar um tirano cujo comportamento oficial fazia pensar na imagem que se tem de um aristocrata escocês, enquanto os seus acólitos eliminavam os opositores ao regime, com um egomaníaco, que se comporta como um rufião sem miolos. Por isso, não comparo. Mas o telefonema que Trump fez para exigir, ao longo de uma hora de ameaças e de raiva mal contida, que o responsável das eleições na Geórgia “encontrasse” – inventasse – o número de votos necessários para falsear os resultados, e colocar o derrotado como vencedor, não ficaria atrás das fraudes eleitorais que Mugabe mandava orquestrar. Quando, um número de vezes, lhe levantei a questão da batota, o líder zimbabueano sempre me retorquiu que quem está no poleiro, e deixa fugir a vitória, deve ser visto como um pateta político. Ora ele, tolo, não era. 

Como Trump se considera um génio, não pode aceitar a derrota. Sobretudo contra alguém que ele considera fraco, um meio adormecido. Também Mugabe olhava para os seus opositores com enorme desprezo. Uma mesma linha com várias matizes une de facto os ditadores. 

Nunca imaginei que um presidente americano me fizesse pensar nos déspotas que fui encontrando em cantos perdidos por esse mundo fora. Fico igualmente preocupado quando vejo senadores e membros da Câmara dos Representantes apoiarem, submissa ou oportunisticamente, as derrapagens e tentativas golpistas de Trump. A minha preocupação aumenta para o nível do pesadelo quando noto que milhões de cidadãos americanos se empenham, de modo obsessivo, nesses intentos antidemocráticos. A conclusão é aterradora: uma parte importante da sociedade norte-americana está imbecilmente radicalizada. Há aqui um perigo latente de violência, quer a nível interno quer na cena internacional. A gravíssima desordem que agora aconteceu em Washington, instigada pelo rufião, faz-me temer o futuro. 

Perante isto, a UE tem de ser prudente no relacionamento com os EUA. Os próximos anos – enquanto durar a administração Biden – poderão ser apenas um interregno de bom senso, numa paisagem política mais complexa e inquietante. Da próxima vez, será possível que conquiste a presidência um sucedâneo do golpista de hoje, mas numa versão mais inteligente. Com o tempo, uma liderança desse tipo poderá levar o país a uma confrontação internacional, arrastando os europeus nessa loucura. O que aconteceu no Afeganistão ou no Iraque, com os europeus à trela, passaria a ser visto, comparativamente, como simples bulhas entre bairros rivais. 

A UE tem de aproveitar o mandato de Joe Biden para reforçar a sua autonomia nas áreas vitais de política interna e internacional. Isto significa manter uma relação cordial com os EUA, mas mais equilibrada e progressivamente emancipada. Assim, considero que o fortalecimento da coesão europeia, nas suas diferentes dimensões, deve constituir uma prioridade absoluta para os próximos quatro anos. Não é uma tarefa fácil, sobretudo depois do reacender dos nacionalismos em virtude da pandemia e tendo em conta o período de vacas magras que temos pela frente, mas é uma tarefa que tem de ser levada a cabo. Para tal deve também contribuir a realização da planeada Conferência sobre o Futuro da Europa, um processo que requer a participação dos cidadãos, e cuja proposta precisa rapidamente de renascer das cinzas.

01 JAN 2021E o prémio vai para a China

No grande jogo da geopolítica, a taça de 2020 deve ser atribuída à China. Foi um ano muito difícil para todos os países. Porém, aqui chegados, noto que o único que sai verdadeiramente reforçado, passadas todas as provas, é a China. A Austrália e a Nova Zelândia jogaram bem, mas estão noutro campeonato. Não têm, nem de longe, o peso político do campeão. 

O ano começara mal, com a cidade de Wuhan – 11 milhões de habitantes – no centro das preocupações. Mas uma resposta forte, extremadamente nacionalista, e uma população formatada pela versão moderna do confucionismo ancestral – manda quem está no poder, obedece quem anda pelas ruas da vida – transformou o controlo do vírus numa vitória política para a elite dirigente. Acima de todos, para o Presidente Xi Jinping. 

E o ano terminou com mais um golo, marcado nos minutos finais, com a conclusão das negociações sobre os investimentos entre a China e a União Europeia. Este acordo, importante para ambas as partes, estava a ser discutido há sete anos. O arrastar da coisa deveu-se à obstrução chinesa, que queria ter as mãos livres para investir na Europa, enquanto criava obstáculos aos empreendimentos europeus na China. Finalmente, e antes da tomada de posse de Joe Biden, Beijing achou que era importante fechar o pacto com os europeus, afastando-os assim de uma posição mais combativa que a nova administração americana possa vir a adotar. Para os europeus, o acordo abre as portas a investimentos nos sectores da finança, saúde, energia e das tecnologias da informação. Se for respeitado, representará um avanço no reequilíbrio das relações económicas entre os dois lados. O tratado procura ainda defender os direitos de propriedade intelectual e promover certas normas laborais internacionais, mas sem convicção. As autoridades chinesas não deixam espaço de manobra nesta área, nomeadamente na abolição do trabalho forçado de prisioneiros ou de minorias étnicas.

O nosso problema com a China é acima de tudo político. Diz respeito aos direitos humanos e aos valores democráticos. E aí não vejo uma concordância no horizonte, nem de perto nem de longe. Os sucessos obtidos em 2020 e a acentuação do nacionalismo e do orgulho chinês, teclas fáceis de pressionar perante a confusão que se vive na nossa parte do mundo, reforçaram a legitimação e o poder de Xi Jinping. Essa legitimidade assenta em dois grandes pilares – a existência de oportunidades económicas para a maioria dos cidadãos e a manutenção da ordem interna, incluindo a disciplina cívica. Ainda esta semana, quando falei, como regularmente o faço, com os meus correspondentes na China, ouvi sublinhar essas duas dimensões. Em resposta às minhas referências aos direitos humanos e à democracia, uma jovem chinesa lembrou-me que a sua geração, mesmo os que obtiveram diplomas académicos no estrangeiro e observaram como funcionam as liberdades, não faz ondas. Os jovens com estudos superiores preferem aproveitar as ofertas de emprego e de prosperidade, que continuam a ser imensas, numa China em crescimento acelerado e com um mercado interno vastíssimo. Num à parte, foi-me dito que o número de candidaturas a bolsas de estudo nos EUA e na Europa, para o próximo ano letivo, cresceu bastante. A ambição é obter diplomas em instituições com prestígio e voltar, depois, ao mercado de oportunidades que é a China. Também aqui o regime de Xi Jinping conseguiu incutir duas ideias. Uma, que a prazo não haverá futuro para os diplomados chineses que se queiram instalar no Ocidente, por causa da crescente desconfiança que aí diz existir em relação a quem possa ser visto como um agente sub-reptício do governo de Beijing. Outra, que o futuro pertence à China, que será nos próximos anos, talvez já a partir de 2028, a maior economia mundial. 

Entramos em 2021 com uma China que se sente mais possante e arrojada, invencível mesmo. Mas, a história há muito nos ensinou que todos os gigantes têm pés de barro. A China de Xi Jinping, se não introduzir uma certa dose de prudência nas suas relações internacionais, incluindo moderação na desmesurada Nova Rota da Seda e a aceitação de valores humanos fundamentais, poderá acabar por tropeçar na sua própria arrogância e gigantismo.   

26 DEZ 2020Que tal um almoço no Sahel?

Há uns anos, a minha mulher e eu fomos convidados para um almoço de Natal invulgar. O convite veio da presidência do Chade e o local do repasto situava-se a uma centena de quilómetros a norte de Fada, uma localidade a mais de duas horas de avião de Ndjamena, já na zona de transição do Sahel para o Saara. O plano consistia em voar até Fada e seguir por terra até um dos oásis da Depressão de Mourdi – um conjunto de vales profundos, com várias lagoas, muito procuradas pelos mercadores das numerosas manadas de camelos em trânsito para a Líbia, onde cada camelo acaba vendido nos mercados de carne.

Lá fomos. A viagem entre Fada e o oásis decorreu no meio de vinte e tal jipes de uma companhia de tropas de elite com experiência operacional da região. Os jipes de caixa aberta –os famosos “technicals” – avançavam a alta velocidade, em paralelo, numa frente única de várias centenas de metros. Tratava-se de evitar a poeira e as emboscadas de grupos sem lei que já na altura vagueavam por essas paragens. 

O pitéu foi carneiro, recheado com galinha e cuscuz, assado num buraco cavado na areia. O bicho, bem passado, limpo das cinzas e da areia, foi colocado à nossa frente, inteiro, da cabeça às patas, a fitar-nos com os seus olhos de carneiro bem morto, para que nós, os convidados, déssemos início ao festim. O protocolo era claro. Ninguém tocaria em qualquer pedaço de comida antes de nós havermos terminado a nossa. A minha mulher e eu olhávamos um para o outro, e não sabíamos o que fazer. O chefe dos GOE (Grupo de Operações Especiais da PSP), que tinham a responsabilidade da minha segurança pessoal, puxou de um navalhão, cortou dois pedaços e nós lá começámos a roer. Devagarinho, para mostrar apreço pela iguaria. Duas centenas de olhos seguiam atentamente o nosso mastigar. Quando demos o sinal de que estávamos aviados, os militares lançaram-se ao bicho e à restante comida. Limparam tudo num abrir e fechar de olhos. 

Ao contar tudo isto, a minha intenção não é a de convidar o leitor para um almoço de Natal semelhante. Trata-se, isso sim, de aproveitar o momento para falar do Sahel, da fome e da insegurança alimentar que definem o quotidiano das suas gentes, e da violência que se vive nessas terras. É também uma homenagem a quem pouco mais tem do que a sua dignidade pessoal, uma qualidade que sempre definiu a maneira de ser das gentes do Sahel. Mas essa dignidade é agora frequentemente violada por quem tem poder, seja do lado dos governos, dos salteadores armados ou dos terroristas. O Sahel e o Saara adjacente vivem uma profunda crise de segurança, que se agrava continuamente desde 2012, e isto apesar de uma forte presença militar europeia na região.  

O ano que agora termina foi o mais violento. Os Jihadistas e outros grupos armados, incluindo as milícias populares constituídas pelos governos que os europeus apoiam, terão provocado mais de 4250 mortes e milhares de deslocados. A zona mais perigosa é a das três fronteiras, entre o Mali, Burkina Faso e Níger. Cerca de metade dos ataques foram dirigidos contra populações civis. Na maioria dos casos, a violência, mesmo a que usa uma capa de radicalismo religioso, tem como principal objetivo extorquir recursos. As comunidades que vivem da exploração artesanal do ouro ou da pastorícia, bem como aqueles que percorrem os corredores comerciais de ligação com a costa ocidental de África, com o Benim, o Togo e a Nigéria, são os alvos mais frequentes. É difícil determinar onde acaba a pilhagem e começa o fanatismo, o ódio étnico ou a violação dos direitos humanos. Terrorismo é um rótulo que define mal uma realidade muito complexa. Mas, pesa. Em 2020 assistimos a numerosas confrontações entre dois dos grupos mais importantes, ou por eles perpetradas: o Estado Islâmico no Grande Sahel e as fações ligadas à Al-Qaeda. E continuamos a ouvir relatos de crimes de guerra cometidos pelas forças armadas de países a quem a Europa dá formação militar. 

A UE está a preparar uma nova estratégia para a região. Poderá estar pronta durante a presidência portuguesa. Para ser válida, deverá começar por questionar as razões do insucesso da estratégia que tem sido seguida até agora. As primeiras indicações que tenho é que será mais do mesmo. Talvez fosse uma boa ideia organizar, para alguns responsáveis europeus, um almoço num canto remoto do Sahel. 

19 DEZ 2020A Rússia a letras gordas

Esta semana, Vladimir Putin e a Rússia voltaram a ser manchete na comunicação social. Um dos motivos foi a mensagem de felicitações que Putin enviou a Biden. O líder russo acabou por ser um dos últimos chefes de Estado a dar os parabéns ao vencedor das eleições americanas. O pretexto da delonga foi o de estar à espera dos resultados do Colégio Eleitoral. Este formalismo, impecável do ponto de vista legal, mas pouco diplomático e inconsequente em termos do trato futuro, esconde mal a preferência que Putin tinha por Donald Trump. A política intempestiva, incoerente e divisiva de Trump era, na visão de Moscovo, a que mais enfraquecia a posição internacional dos EUA e melhor servia o renascimento geopolítico russo. Sem mencionar, claro, a deferência que o americano sempre mostrou pelo homem forte do Kremlin.  

A mensagem de Putin fala de cooperação e coloca o seu país a par dos EUA, na liga muito exclusiva dos grandes, ou seja, dos Estados “especialmente responsáveis pela segurança e estabilidade globais”. Putin, sempre atento, aproveita a ocasião para reafirmar o papel indispensável do seu país na cena mundial. 

Entretanto, surgiram outros cabeçalhos sobre a Rússia. Foi acusada de estar a infiltrar desde março os sistemas informáticos de vários alvos americanos de primeira importância. A lista das instituições federais e das empresas privadas violadas, bem como o nível de refinamento utilizado, permitem medir a envergadura da operação, que só pode ter sido realizada pelos serviços altamente especializados que compõem a teia oficial russa. É verdade que outros países tentam permanentemente fazer o mesmo. Mas o facto é que os russos o conseguiram e durante um longo período. Isto só pode significar que a liderança investe de modo excecional na ciberespionagem. Nunca se saberá exatamente que informações foram extraídas. Resta a esperança de que o volume de dados seja de tal magnitude que acabe por submergir os analistas. Nestas matérias, uma coisa é obter as informações, outra é ter a capacidade de proceder à sua análise, de modo a transformá-las em conhecimento e pistas de ação, e isso em tempo útil, que se torna escasso mal descoberta a infiltração.

Para completar o ramalhete, notou-se logo de seguida que os russos também haviam pirateado a Agência Europeia do Medicamento. E a CNN publicou um relatório pormenorizado da perseguição e envenenamento do opositor Alexei Navalny pelos agentes de Putin. Depois surgiu a notícia sobre as dopagens e a interdição de participar nos próximos Jogos Olímpicos. Uma série de manchetes negativas sobre um regime que adora vender como respeitável a sua imagem.   

No meio de tudo isto, os europeus prolongaram as sanções contra a Rússia até julho de 2021. Estas medidas, que vêm de 2014 e estão relacionadas com as intromissões armadas russas na Ucrânia e a ocupação da Crimeia, têm um campo de aplicação pouco abrangente. Não incluem, por exemplo, a suspensão da construção do gasoduto Nord Stream 2, que ligará a Rússia à Alemanha através do Báltico. Aliás, um outro título da semana foi para anunciar que os trabalhos de instalação do gasoduto haviam recomeçado e entrado mesmo na fase final. 

A realidade é que os dirigentes da UE não têm uma visão política clara do que deve ser o relacionamento com a Rússia de Vladimir Putin. Tem havido muito debate sobre a questão, incluindo o desenho de cenários possíveis, mas não há acordo. A tendência parece-me ser, ao olhar para a década que temos pela frente, uma mistura de impasse, hesitação, oportunismo, desconfiança e distanciamento. Uma política de tateamentos, com Putin a marcar o compasso. 

A Organização para a Segurança e a Cooperação na Europa (OSCE), agora com a alemã Helga Schmid ao leme, deveria procurar ser a ponte para o diálogo entre nós e Moscovo. Mas não só. A agenda externa da UE precisa de definir uma linha estratégica em relação à Rússia, que inclua propostas de ações conjuntas, primeiro em áreas de menor controvérsia e que sirvam para construir entendimentos e confiança. O mesmo deve acontecer ao nível militar, quer na UE quer na NATO. A Rússia é o nosso grande vizinho. Ameaçadora, certamente, com uma liderança autocrática, sem dúvida, mas geográfica, cultural e economicamente próxima. Uma política de portas trancadas não tem saída. 

12 DEZ 2020Nós e a China

O ministro dos Negócios Estrangeiros da China, Wang Yi, falou esta semana à nata dos dirigentes das empresas norte-americanas estabelecidas no seu país. O foco do seu discurso foi o reatamento do diálogo político entre a China e os Estados Unidos de Joe Biden. Considerou urgente o restabelecimento da comunicação e da confiança mútuas. Deu a entender que era tempo de ultrapassar a falta de objetividade e de racionalidade que haviam marcado a governação de Donald Trump.  Fora a referência à linha vermelha da não-ingerência nos assuntos internos chineses – ou seja, Beijing não quer que lhe falem de direitos humanos –, a sua comunicação refletiu uma linha oficial positiva e apaziguadora. 

No mesmíssimo dia em que Wang discursou, Washington acrescentou 14 personalidades chinesas à lista dos sancionados por motivos da repressão em Hong Kong. E de seguida, o Secretário do Comércio norte-americano Wilbur Ross defendeu em Singapura, perante uma plateia de líderes da região, que a China seria a principal ameaça militar e económica para os países da Ásia. Esta afirmação é coerente com a intenção que a equipa de Trump tem de criar um facto consumado que condicione a política de Biden em relação à China. E eu diria que está a conseguir reduzir, pelo menos por algum tempo, o espaço de manobra da nova administração. Uma boa parte da opinião pública e da classe política norte-americana revê-se na posição ideológica de hostilidade em relação à China.  

Dias antes, John Ratcliffe, o diretor da Inteligência Nacional americana e, como tal, o coordenador supremo das dezassete agências de espionagem e contraespionagem do país, havia publicado uma opinião sobre a China no Wall Street Journal. Dado o seu autor, o texto atraiu muita atenção. A música era a mesma e o título do artigo resumia tudo: “A China é ameaça n.º 1 para a segurança nacional”. No corpo do texto ia mais longe, ao afirmar que a China seria igualmente o maior perigo para a democracia e a liberdade mundiais. O resto do escrito era uma amálgama que confundia competição económica, legitimamente exercida ou baseada em ações sub-reptícias, com ambições hegemónicas, sem se diferenciar bem o que seria do domínio da segurança nacional, do anedótico ou tão só do interesse das multinacionais americanas. 

O legado que Trump procura deixar nesta matéria também se destina a condicionar os europeus. Já o está a conseguir na NATO. O grupo de peritos criado pelo Secretário-geral para refletir sobre a NATO para o horizonte 2030 é copresidido pelo americano Wess Mitchell, um intelectual tão querido de Trump quão hostil em relação a Beijing. O documento que o grupo produziu, em discussão pelos ministros dos Negócios Estrangeiros da Aliança desde o início deste mês, refere-se à China como um “desafio intenso”. 

Contudo, a Europa não pode olhar para a China apenas pelo prisma único fornecido pelos americanos. Os nossos interesses e a nossa implantação geopolítica são diferentes. Também não estamos numa corrida ao poderio militar, nem temos os motores dos porta-aviões chineses a roncar por águas que nos são vizinhas. Sabemos, por outro lado, que não se pode colocar todos os riscos no mesmo saco. Cada ameaça, seja ela militar, de desestabilização política, de espionagem científica, tecnológica ou económica, do campo da propriedade intelectual ou da concorrência desleal, exige um tratamento específico. 

No caso europeu, a atenção deve centrar-se em três temas. Primeiro, no combate à espionagem, à intrusão e aos roubos ligados aos avanços científicos e tecnológicos. Os serviços de inteligência europeus devem preparar-se para essa tarefa e cooperar mais intimamente entre si. Segundo, haverá que definir um quadro de referência comum, que dê coerência à maneira como os estados europeus se relacionam com a política e a economia da China. Dito de outro modo, isto significa que as relações oportunistas, e fora desse quadro, entre países membros da UE e a China deverão ser consideradas inaceitáveis. Terceiro e acima de tudo, a UE deve afirmar claramente que a cooperação é a única via desejável. Assim, sem pôr em causa a nossa aliança com os EUA e sem esquecer que em Beijing manda uma ditadura, o diálogo político com a China deve procurar o benefício mútuo, a promoção dos direitos e dos valores universais e a cooperação no ataque aos grandes desafios globais. 

05 DEZ 2020Irão: o dia seguinte

Em 2018, Mohsen Fakhrizadeh tornou-se conhecido quando Benjamin Netanyahu o acusou de ser o cientista à cabeça do programa nuclear iraniano. Fakhrizadeh foi assassinado nos arredores de Teerão há uma semana. Existem narrativas contraditórias sobre o desenrolar do crime. O certo é que a emboscada foi executada por um número razoável de agentes, uma boa dezena pelo menos, e de um modo profissional – a esposa, que viajava com ele, saiu ilesa, não fazia parte do objetivo. Não tenho dúvidas que foi efetuada por forças especiais, com executantes perfeitamente treinados, que tinham à sua disposição as informações, a logística e os meios necessários para uma missão de alto risco. É pacífico concluir que não terá sido obra da oposição interna. Teve todas as características de uma operação planeada, organizada e levada a cabo por um Estado hostil ao Irão. E não posso deixar de pensar nos três principais inimigos do regime: a Arábia Saudita, Israel e os Estados Unidos de Donald Trump. 

Quem sabe destas coisas aponta no sentido de Israel. É verdade que os serviços secretos desse país, nomeadamente a afamada Mossad, já demonstraram ter uma capacidade de penetração nos círculos oficiais iranianos incomparavelmente superior às de qualquer outro Estado. Veja-se um exemplo dessa capacidade, com julgamento dos inculpados a decorrer atualmente em Antuérpia. Foi a Mossad que fez conhecer às autoridades belgas o atentado que o governo iraniano estaria a maquinar em 2018 contra o Conselho Nacional da Resistência Iraniana no exílio. Os serviços de inteligência europeus onde a trama se preparava – os belgas, franceses e austríacos – não se haviam apercebido de nada.  

Israel nunca poderá admitir uma mínima ponta de responsabilidade por assassinatos deste género. Essa admissão abriria a porta a um processo de acusação no Tribunal Internacional de Justiça da Haia ou numa jurisdição de um país membro das Nações Unidas. A lei internacional é clara. Uma execução extraterritorial, sumária e arbitrária, promovida por um Estado fora de uma situação de conflito armado e à revelia de uma decisão tomada por um tribunal competente, é um crime que viola a lei internacional sobre os direitos humanos e as Convenções de Genebra de 1949 e os Protocolos Adicionais de 1977. Mais ainda, a Carta das Nações Unidas proíbe expressamente o uso extraterritorial da força em tempos de paz. 

Por tudo isso, a paternidade do que aconteceu agora a Fakhrizadeh ficará para já incógnita. Restar-nos-ão, apenas, as suspeitas. 

O assassinato mostrou que o sistema iraniano de espionagem interna, que aterroriza a população, tem falhas muito sérias. O poderoso Ministério da Inteligência está mais preocupado com a repressão da crescente oposição interna do que preparado para identificar as ameaças mais sofisticadas vindas do exterior. Esta constatação não é nova. Em inícios de julho, por exemplo, os serviços de segurança não conseguiram impedir uma explosão, com origem externa, na central nuclear de Natanz nem souberam evitar a sabotagem de programas de fabricação de mísseis. 

Uma questão fundamental é a de tentar perceber o motivo central do assassinato. Aquele que parece mais óbvio, que seria o de desferir um golpe importante capaz de atrasar ainda mais o programa nuclear do regime, não faz sentido. O país já conta com várias equipas de cientistas capazes de proceder ao enriquecimento do urânio. O ataque contra Natanz e as sabotagens, esses sim, atrasaram os planos. O verdadeiro motivo terá de ser outro.

Se olharmos para montante, veremos que o governo de Israel está à beira do colapso e que Netanyahu vai precisar outra vez de argumentos de campanha convincentes. A presunção de uma mão forte contra os aiatolas dará certamente votos. Olhando mais longe, constatamos que a nova administração Biden é favorável à reabertura de um processo negocial com Teerão. Isso ficaria mais difícil se os clérigos respondessem ao que aconteceu a Fakhrizadeh de modo intempestivo. Os velhos dirigentes do Irão são fanáticos e retrógrados. Mas são astutos em matéria de política internacional. Devem olhar para o assassinato como uma tentativa de provocação política. E saberão que a espera paciente pela entrada em funções de Joe Biden poderá ser a melhor resposta ao repto que lhes lançaram há dias. 

28 NOV 2020Eles não cabem no nosso futuro

Reconheço as preocupações que muitos pensadores expressam sobre o que será o mundo, no rescaldo da pandemia do coronavírus. Uma boa parte diz que esta crise pulveriza as nossas sociedades e desestrutura a democracia e as alianças que nos ligam a outros povos, promove a tendência para o isolamento, o egoísmo nacionalista e a perda dos pontos de referência que davam sentido às relações internacionais. Assim, o mundo sairia da crise fragmentado, com cada país mais centrado sobre si próprio, mais autocrático e com as instituições do sistema multilateral bastante enfraquecidas. 

Proponho uma leitura diferente da rota que agora navegamos. Acredito que a crise nos dá a oportunidade para reforçar a dimensão humanista que tem faltado, quer ao nível das políticas domésticas quer na cena internacional. Sairemos certamente mais pobres do ponto de vista económico, mas podemos ficar bem mais ricos, do lado da política. É uma questão de boa liderança e de movimentos de cidadania fortes. A pandemia veio lembrar-nos que as pessoas são o fim essencial da política. Não as pessoas num sentido geral e abstrato, mas sim cada um de nós, em simultâneo na nossa individualidade e enquanto membros do espaço social a que pertencemos. A política deve colocar uma ênfase reforçada na proteção e no respeito dos nossos direitos fundamentais, a começar pelo direito à dignidade, à saúde, à segurança e à diversidade, bem como criar condições para que cada um possa desenvolver o seu potencial como melhor souber.  

Creio que o drama pandémico preparou uma boa parte dos cidadãos para um novo tipo de consciência no que respeita à sua relação com os outros e a natureza. Penso que nos tornou mais comedidos nas nossas ambições. Estamos perante a possibilidade de renovar a prática política. Essa é a principal conclusão que tiro da situação presente. É igualmente a linha que orienta a minha visão do futuro. Fazer política amanhã terá de significar que se luta continuamente pelos direitos humanos, pela democratização, pela lisura na gestão pública e por mais solidariedade. Há que tirar partido da maturidade adquirida durante este período de choque. Se assim acontecer, ganha a credibilidade da política, cimenta-se a cooperação multilateral e estaremos em melhor posição para encarar aqueles que considero os três maiores desafios globais da década: a luta contra a pobreza, a defesa da liberdade e a regeneração do ambiente, a começar pela mitigação das alterações climáticas. 

Na verdade, nada disto deveria ser novo para nós, europeus. O artigo 2º do Tratado da União Europeia define claramente – e com uma redação feliz, o que nem sempre é o caso quando se trata de compromissos legais entre Estados – os valores que constituem os alicerces fundamentais do nosso projeto comum, incluindo a centralidade da dimensão humana da política. Só que os políticos, em geral muito hábeis nos jogos de oportunismo e na ambiguidade dos consensos destinados a agradar a gregos e a troianos, nem sempre se apoiam como deveriam nesse artigo do Tratado.

Nestas circunstâncias, é fundamental que o orçamento da Comissão Europeia para o período 2021-2027 e o plano excecional de recuperação económica, que deverá responder aos desafios criados pela pandemia, reconheçam a essencialidade do respeito por cada Estado-membro da letra e do espírito do artigo 2º já mencionado. Orçamentos e democracia são as duas faces da mesma Europa. Aqui não pode haver truques nem malabarismos ou jogos de palavras e de mal-entendidos. Os vetos da Hungria de Viktor Orbán e da Polónia de Jaroslaw Kaczynski, agora também com o apoio de Janez Janša, o primeiro-ministro da Eslovénia, são inaceitáveis. Falemos claro. Orbán é um déspota à cabeça de uma clique que muitos acusam de cleptocracia. Kaczynski é um retrógrado que explora ideias de outros tempos. Janša é um pequeno bronco: foi o único dirigente europeu que felicitou Donald Trump pela sua “vitória” eleitoral. Todos eles manipulam as opiniões públicas dos respetivos países e não irão mudar, enquanto mantiverem o controlo do poder. Não podemos deixar que esses senhores pensem que a UE é apenas uma fonte de dinheiros, sem ligação com uma política de valores e de direitos democráticos. Qualquer cedência nesta matéria significaria que não teríamos aprendido nada com a revolução cultural que a crise pandémica nos está a proporcionar.  

21 NOV 2020Narciso ou a fragilidade das democracias

Incutir realismo a um desvairado que não tem os pés assentes na terra é uma tarefa quase impossível. Mas é ainda mais difícil tentar explicar a um político narcisista que não é o melhor e o mais amado deste mundo e do outro. Infelizmente, a política está cheia de narcisos. É uma perturbação da personalidade que os torna politicamente tóxicos. Vivem a um passo de se tornarem dirigentes autocráticos.

De todos os narcisistas, Donald Trump é o mais visível e, tendo em conta o poder que ainda tem, o mais perigoso. As semanas que sobram até ao fim do seu mandato deixam muitos de nós ansiosos quanto ao tipo de decisões que ainda possa vir a tomar. A ordem que manda retirar uma boa parte das tropas americanas que ainda restam no Afeganistão e no Iraque é apenas o exemplo mais recente. Foi decidida sem consultas prévias com as autoridades desses países e à revelia dos compromissos assinados com outros parceiros da NATO, que têm igualmente militares destacados nesses teatros de conflito e cuja permanência vai de par e pressupõe uma presença mínima das forças americanas. Um outro exemplo de uma péssima decisão, também tomada esta semana, diz respeito à autorização de exploração de gás e de petróleo na maior reserva natural da zona ártica do Alasca. As concessões que vierem a ser aprovadas nos próximos dias deixarão a administração de Biden prisioneira de acordos com calamitosas consequências ambientais. 

Existe igualmente a possibilidade de uma loucura de última hora contra o Irão. É verdade que os conselheiros que ainda pesam na Casa Branca e sobretudo no Pentágono não são favoráveis a uma ação desse tipo. Seria como abrir uma caixa de Pandora, numa altura em que a autoridade de Trump está por um fio e o Médio Oriente muito instável. Aparentemente, a ideia foi posta de parte. Mas tratando-se do personagem que é, nada pode ser considerado definitivo enquanto ele se mantiver no poder. Estamos, na realidade, a viver um período em que cada dia pode trazer-nos uma péssima surpresa. 

Na realidade, a única decisão significativa que se deverá esperar de Donald Trump será a do reconhecimento da sua derrota eleitoral. Tenho receio que o transtorno narcisista do personagem o impeça de o fazer. Estou convencido que vai continuar mergulhado na fantasia que criou, a matutar até ao fim numa fraude que não existiu, mas em que precisa de acreditar, para tentar sarar a grande ferida que o seu desmesurado ego sofreu. 

Fico ainda mais preocupado quando vejo destacados membros do seu partido a fazer trinta por uma linha para influenciar as autoridades eleitorais de vários estados. A essa pressão política, que é simplesmente ilegal, juntam declarações públicas que põem em causa a legitimidade do processo e a vitória do presidente eleito. Uma sondagem de há dias da Reuters/Ipsos revelou que quase 2 em cada 3 eleitores republicanos acreditam que Biden não teria vencido as presidenciais de maneira limpa. 

Tudo isto provoca grandes danos à paz social e à boa aceitação da nova administração. A democracia parece ter sido a principal vítima destes quatro anos de governação atípica, egocêntrica e incompetente. A sondagem acima referida mostrou a existência de uma desconfiança crescente em relação ao sistema democrático nos EUA. Donald Trump poderá ficar na história americana como um dos piores presidentes dos últimos cem anos. Ficará, certamente, como o que mais contribui para o enfraquecimento da democracia no seu país e o aviltamento da classe política. A política partidária, os departamentos da governação federal, a Câmara dos Representantes e sobretudo o Senado, são algumas das instituições cujo prestígio foi profundamente abalado pela megalomania, a instrumentalização do poder, o nepotismo e a incoerência que caracterizaram a governação de Trump. 

Daqui se depreende que a democracia, na nossa parte do mundo, é mais frágil do que se pensava.  Fica bastante ameaçada quando há uma concentração do poder num só líder nacional e este o utiliza para proceder à bipolarização da vida política, à prática de uma retórica que divide a sociedade em campos antagónicos. Foi isso que aconteceu nos EUA. Mas também está a acontecer em alguns países europeus, sobretudo quando a maioria parlamentar é constituída por deputados que devem o seu assento à fidelidade que devotam de olhos fechados ao líder do seu partido que é, ao mesmo tempo, chefe do poder executivo. 

14 NOV 2020Uma Europa mais arrojada

Quando se trata de política europeia a sério, é sempre bom começar por saber o que pensa Angela Merkel. Mesmo tendo presente que deverá sair de cena no próximo ano, continua a ser uma voz de referência. Esta semana a chanceler saudou, sem ambiguidades, a vitória de Joe Biden. E acrescentou que a parceria entre a União Europeia e os Estados Unidos deverá ser a aliança fundamental do século XXI. Estarei de acordo com esta afirmação, se a colaboração assentar num equilíbrio de forças entre os dois lados. Como também estou em sintonia com Merkel quando diz, na sua mensagem ao presidente eleito, que para que a cooperação funcione eficazmente ter-se-á de pedir um esforço suplementar do lado da UE. 

No dia seguinte, Ursula von der Leyen falou aos chefes de missão que representam a Europa no mundo. Mencionou, como não podia deixar de ser, o futuro das relações com os EUA. As suas palavras inspiraram-se no que Merkel havia dito. Sublinhou que cabe à UE tomar a iniciativa de um novo tipo de sinergias com a administração entrante, que não se trata de voltar ao passado, como se nada tivesse acontecido durante os últimos quatro anos. Ontem e amanhã pertencem a diferentes eras históricas. Após um mandato tão desafiante, radical e absurdo, como foi o de Donald Trump, uma boa parte da sociedade americana olha para a Europa e para o mundo com desconfiança. É preciso responder a esse estado de espírito, combater as tendências isolacionistas e voltar a acentuar a importância da cooperação internacional para a prosperidade de todos e para a resolução de problemas que não conhecem fronteiras. 

A filosofia que está por detrás destas declarações europeias, à quais se juntaram as palavras de Emmanuel Macron, é encorajante. 

A pandemia pôs o mundo de pantanas e veio mostrar que a solidariedade internacional e as complementaridades são hoje mais necessárias que nunca. A Europa tem todas as condições para contribuir de modo positivo para a transformação estrutural que o novo futuro exige. Para isso, precisa de se tornar mais forte, mais ambiciosa, no bom sentido da palavra, e de olhar para as outras grandes potências num pé de igualdade. A velha atitude de subordinação aos Estados Unidos não serve os interesses europeus. Também não permite que a UE ganhe a autonomia necessária para desempenhar um papel estabilizador perante as rivalidades entre os outros grandes do planeta. 

A responsabilidade europeia é a de aproveitar o espírito construtivo que a administração de Biden deverá trazer para as relações internacionais para projetar uma imagem mais nítida do que significa viver-se numa democracia de respeito mútuo e tolerante, justa e capaz de responder aos anseios de segurança de cada cidadão. A importância da segurança individual, no sentido multidimensional deste conceito, abrangendo a vida, o emprego, a saúde, a tranquilidade pessoal, é uma das grandes lições que a pandemia nos proporciona. Há que transpor essa lição para a prática política.   

Para contribuir eficazmente para a parceria transatlântica e para qualquer ponte com outras regiões do globo, a UE tem de ser particularmente exigente consigo própria. Governações retrógradas, ultraliberais, xenófobas ou mesmo racistas, ou corruptas, não podem caber no espaço europeu. Como também não podemos aceitar administrações simplesmente ineficientes e burocráticas. 

A força da Europa estará, acima de tudo, na qualidade e justeza da sua governação e na coerência dos seus valores. Será completada pela existência de sistemas eficientes de segurança e defesa. Aqui, nas áreas da segurança europeia, a mensagem é que não somos contra ninguém, nem nos deixaremos arrastar pelas guerras dos outros, como infelizmente aconteceu no passado recente, mas também que não somos ingénuos. Esta mensagem é válida para todos, aliados e competidores. E também significa que sabemos que, no mundo de amanhã, melhor defesa e mais segurança não passam por mais canhões e mais soldados, mas sim por mais análise e inteligência, mais quadros e oficiais altamente preparados, mais forças especiais, melhores sistemas cibernéticos, um seguimento mais efetivo das plataformas sociais e uma informação que ajude os cidadãos a identificar a verdade e a eliminar o que é falso. 

Se assim avançarmos, estaremos a responder de modo positivo à esperança que a eleição de Joe Biden criou e a abrir uma rota de progresso no sentido de um mundo mais equilibrado, seguro, inteligente e sustentável.

07 NOV 2020Estados Unidos: depois da confusão

O assunto desta semana tem sido a eleição presidencial norte-americana. Não pretendo agora entrar na embrulhada em curso. Quero apenas abordar dois aspetos que me parecem merecer mais atenção.  

O primeiro é sobre o “bife”. Em 1984, uma empresa de hambúrgueres criou uma frase publicitária que foi de imediato apropriada pela classe política. A frase era: onde está o bife? Ou seja, para além da verborreia, digam-nos quais são as propostas concretas que fazem? A pergunta permanece no arsenal político e tem muita força argumentativa. 

Este ano o bife eleitoral foi uma mistura de perspetivas económicas, gestão da pandemia e luta pela igualdade racial. Foram estas as bandeiras que mobilizaram os eleitores, para além do profundo gosto ou desgosto que cada candidato suscitava. Ficou claro que os cidadãos participam mais no ato eleitoral quando o bife é consistente, feito de grandes causas. 

A economia parece ter sido o motivador mais importante da afluência às urnas. Isto faz-me lembrar a célebre expressão utilizada pela campanha de Bill Clinton em 1992: “é a economia, estúpido!” Donald Trump representava, para os seus apoiantes, a melhor aposta em termos de recuperação económica. Estavam convencidos que a covid seria resolvida em breve, com a descoberta da vacina apropriada. O importante era poderem contar com um presidente ultraliberal na área económica e com um pé leve, em matéria fiscal. Trump conseguiu vender essa imagem, bem como a representação de um oponente que estaria nas mãos da ala mais esquerdista do Partido Democrata, ou seja, que seria uma marionete dos radicais socialistas. 

Do lado de Joe Biden, o bife esteve na pandemia, na repetição da acusação da incompetência de Trump e da falta de respeito pela salvaguarda da vida dos seus concidadãos. A isso acrescentou um acompanhamento de questões sociais à volta das iniquidades raciais e da violência contra os cidadãos negros.  Esse hambúrguer político era uma refeição completa. Mas havia um senão: o seu oponente explorou a imagem de bom senso e equilíbrio que Biden transmitia, transformando-a numa fragilidade. Projetar energia faz parte das qualidades de quem manda. Assim, temos agora um líder que precisa de trabalhar a sua imagem e mostrar que pode combinar humanismo com firmeza, incluindo na frente externa.  

E chegamos ao segundo aspeto. A União Europeia precisa de tirar duas ou três conclusões de tudo isto.

A primeira é que Joe Biden, confirmada a sua vitória, terá necessariamente de se concentrar sobre a política interna americana, para alargar a sua base de apoio e resolver uma boa parte da bipolarização, rancor e ódio que existem no país. Em termos de política externa, para além de um regresso moderado ao multilateralismo, terá de se focalizar nas relações com a China e os vizinhos desta.  Restar-lhe-á pouca disponibilidade para os assuntos europeus.

A segunda é que uma boa parte dos americanos tem uma visão da política, da economia e das relações sociais muito distinta da europeia. A contínua divergência de valores leva ao enfraquecimento da aliança com a Europa. A distância política entre os dois espaços geopolíticos será cada vez maior. Temos, por isso, que trabalhar mais arduamente para uma Europa que seja tão autónoma quanto possível nas áreas da defesa e segurança, da economia digital, da energia e dos sistemas de pagamentos internacionais. As chantagens que a administração cessante nos fez, procurando o nosso alinhamento com as suas decisões unilaterais de sanções económicas e financeiras, ensinou-nos que devemos criar os nossos próprios mecanismos nestas áreas.  

Terceiro ponto, a Europa deverá reforçar a sua política externa, para ganhar espaço e independência em relação às decisões tomadas em Washington. A política externa europeia continua fraca, apesar dos recursos postos à disposição do Serviço Europeu de Ação Externa. Temos de ser francos e tratar decididamente desta fraqueza. É um perigo andar a reboque de outros poderes. 

Esta eleição deveria conduzir a uma relação internacional mais equilibrada e construtiva. O lado europeu tem de saber aproveitar a oportunidade e tornar-se um parceiro mais forte, mais interventivo e mais independente. Se o fizer, podemos dizer obrigado a Donald Trump por nos ter forçado a abrir os olhos. 

31 OUT 2020A caricatura de um político megalómano

O meu texto da semana passada, sobre o radicalismo islamita, provocou várias reações. Os amigos portugueses, que sempre viveram em Portugal, embora com muitas viagens turísticas no currículo, ficaram surpreendidos com a minha descrição da intolerância que se vive em certas escolas e nalguns segmentos da sociedade francesa. Essa é uma situação que não ocorre em Portugal. Aqui ninguém intimida ninguém por mencionar o Infante D. Henrique, Mouzinho de Albuquerque ou o ateu José Saramago. Amigos residentes na Europa da imigração – na Bélgica, por exemplo – reconheceram na minha crónica situações que lhes são familiares. A rejeição de valores que consideramos fundamentais e a vida em silos sociais são factos correntes. Acrescentaram que é preciso coragem para falar dessas coisas, de modo equilibrado e sem cair na recriminação primária e racista. Também recebi mensagens de antigos colegas de trabalho, que por esse mundo vivem a sua fé muçulmana. Para eles, o problema reside na troça, nas caricaturas, na interpretação que delas fazem como um instrumento de investida dos europeus contra o Islão. 

Lembrei-me, então, que na cerimónia de homenagem ao professor Samuel Paty, o presidente Emmanuel Macron afirmou que a França não iria abdicar das caricaturas. Compreendo essa posição. O que outros vêem como uma ofensa imperdoável, é para nós uma simples expressão da liberdade. A religião é um tema como qualquer outro. Na Europa, o desmoronamento da ideia de blasfémia começou em 1789, com a Revolução Francesa. 

Recep Tayyip Erdogan agarrou-se a essa declaração de Macron sobre os desenhos para tratar o seu homólogo francês de doente mental. Disse-o repetidamente, para que não houvesse dúvidas sobre o insulto. Para Erdogan, o desenho de um boneco de rabo no ar é mais chocante do que a perseguição inumana de milhões de muçulmanos pelo regime de Xi Jinping. Em relação a isso, não se exalta, nada diz. 

Vivemos tempos únicos, com um chefe de Estado a abocanhar um outro, de um país aliado. A hostilidade de Erdogan em relação a Macron não é novidade. Começou logo após o início do mandato do presidente francês, em 2017. Existem vários pontos de fricção entre ambos, a começar pela oposição francesa à adesão da Turquia à UE e a continuar na Líbia, na Síria, no apoio à soberania da Grécia no Mar Mediterrâneo e mais e mais. Perdura, além disso, uma enorme tensão no seio da NATO, onde a França acusa a Turquia de travar a estratégia da organização, quando se trata de regiões em que Ancara está diretamente implicada. 

Para além de tudo isso, adivinho que Erdogan quer quebrar a aliança que existe entre Paris e Berlim. Investe contra a França sabendo que a Alemanha, onde vivem mais de quatro milhões de pessoas com raízes turcas, não tem muita margem de manobra para tomar uma posição solidária com a França. Ao atacar este pilar da UE e ao manter a ameaça recorrente de abrir os portões a uma nova onda de migrações para a Europa, semelhante à que ocorreu em 2015, a Turquia de Erdogan constitui o risco mais importante para a sobrevivência do projeto europeu. 

No Conselho Europeu de dezembro é absolutamente necessário que os dirigentes dos estados-membros tomem uma posição dura contra o presidente turco. Em política internacional, só há duas posições possíveis perante um brigão: ceder e acabar por pagar um preço elevado, ou então, fazer-lhe frente com todo o arsenal diplomático necessário. 

Salman Rushdie adverte-nos que “o fundamentalismo não diz respeito à religião, mas sim ao poder”. Erdogan vê-se como o líder dos muçulmanos sunitas e o guardião dos fiéis perante os pretensos ataques europeus. Combina megalomania com fanatismo. Em conluio com os radicais da Irmandade Muçulmana e com o apoio financeiro de Qatar, Erdogan estabeleceu em vários países europeus uma série de associações que, sob a capa da religião, da cultura e da ação humanitária, promovem interpretações totalitárias do Corão e a sua imagem de defensor da fé. 

Uma das tarefas dos serviços de segurança europeus é a de monitorizar essas associações e os seus membros mais influentes. É, todavia, uma missão quase impossível. A vigilância de cada extremista potencialmente violento, para ser feita como deve ser, requer cerca de duas dezenas de agentes, vinte e quatro horas por dia. A verdadeira resposta tem por isso de ser política e partilhada por todos os países europeus.  

24 OUT 2020Terror ou democracia

Quase duzentos e cinquenta anos após a sua morte, Voltaire permanece como um dos pensadores mais influentes da história de França e da Europa. Escreveu abundantemente e foi conselheiro dos grandes de então. O seu pensamento político e filosófico abriu o caminho que levaria à Revolução Francesa e à divisa nacional, que ainda hoje se mantém: Liberdade, Igualdade, Fraternidade. Os seus escritos troçavam dos dogmas religiosos, numa altura em que era muito perigoso fazê-lo, batiam-se contra a intolerância, advogavam a liberdade de expressão e a separação da igreja do estado. Em 1736, escreveu uma peça de teatro contra a intransigência religiosa, que intitulou “O Fanatismo ou Maomé, o Profeta”. Nesta tragédia, Voltaire crítica diretamente e com todas as letras o fundador do Islão. Pessoalmente, leio a obra como sendo uma investida contra as religiões, num caso, de modo aberto, noutro, o do catolicismo, de maneira mais subtil, para não pôr em risco a sua pele. 

Agora tornou-se impossível ensinar Voltaire nalgumas escolas de França, nomeadamente nos subúrbios de Paris. Certos alunos, vindos de famílias muçulmanas radicalizadas, impedem que tal aconteça. Para essas pessoas, Voltaire é o pior dos infiéis, aquele que se atreveu a conspurcar o nome do Profeta. No passado, a Santa Inquisição católica queimava os hereges em público. No presente dos maníacos islamistas, Voltaire seria degolado. Além de Voltaire, é um perigo falar do Holocausto ou condenar o antissemitismo, citar o escritor Gustave Flaubert e o seu romance Madame Bovary – uma mulher livre e apaixonada, um péssimo exemplo para um radical que considera que as mulheres devem ser submissas e andar tapadas da cabeça aos pés – ou procurar discutir Charlie Hebdo e as caricaturas de Maomé. Uma boa parte do sistema escolar público francês vive num clima de desassossego, em que a reação violenta de certos alunos substituiu o debate de ideias. E a intimidação começa cada vez mais cedo. Já se conhecem histórias de meninos que, nas escolas pré-primárias, recusam sentar-se ao lado das meninas. 

Tudo isto nos leva à decapitação criminosa e absurda que ocorreu na semana passada. A vítima, o professor Samuel Paty, era um homem corajoso e consciente de que a missão das escolas também é a de formar os futuros cidadãos, livres, iguais em direitos, solidários, respeitadores e responsáveis. Mas, em França, a escola laica tem estado a ser ativamente minada pelos islamistas radicais desde 2005. Uma sondagem recente revelou que cerca de 40% dos professores de disciplinas literárias, cívicas e de humanidades se autocensuram e não mencionam, nas suas aulas, seja o que for que possa provocar a ira dos estudantes mais fanáticos. Por isso, a minha primeira reação à notícia do ato do tresloucado foi de admiração perante a coragem e o sentido de dever profissional de Samuel Paty. Lembrou-me ainda que a resposta à ameaça terrorista passa por um comportamento vertical, inequivocamente firme. 

Mas a coragem e a firmeza não podem ser apenas questões individuais. O terrorismo não é o resultado, como alguns pretendem, das ações de “lobos solitários”. O velho visionário Friedrich Nietzsche dizia que “tudo o que é absoluto pertence à patologia”, mas no caso do terrorismo, é isso mais o contexto social. Estamos perante um fenómeno identitário extremo, um ecossistema social que faz viver num pântano ideológico salafista milhares de famílias. São uma franja minoritária dos cidadãos europeus de fé muçulmana, mas muito desestabilizadora. 

Em situações como a francesa – e noutros países europeus, nomeadamente na Bélgica e nos Países Baixos, que vão no mesmo sentido do que se tem verificado em França – é fundamental acertar numa resposta política adequada. Numa outra ocasião, escreverei sobre o tratamento securitário da questão. Politicamente, convém começar por reconhecer que o fanatismo, ao colocar uma interpretação manipulada, primária e ignorante da religião acima dos valores da república, é uma ameaça para a democracia e para a paz social. Se os democratas não conseguissem tratar do radicalismo terrorista, a extrema-direita, chame-se ela Le Pen ou outra coisa, noutro país qualquer, utilizaria essa falência para conquistar o poder. E então esmagaria todos, não apenas os exaltados de faca em riste e as suas comunidades de apoio. 

17 OUT 2020As fragilidades de um gigante

Os corredores económicos que a China está a construir através de Myanmar e do Paquistão são dois pilares da Nova Rota da Seda, a ambição gigantesca que o Presidente Xi Jinping formulou, após chegar ao poder em 2012. Gigantesca é aliás uma adjetivação insuficiente, minúscula mesmo, perante a enormidade e a complexidade dessa ambição. Mais ainda, a envergadura da Nova Rota da Seda tem causado ansiedades em muitos círculos de decisão geopolítica na Europa, América e Ásia, e explica uma boa parte do sentimento de desaprovação, de oposição mesmo, que agora existe em relação à China. Em política, como na vida, a ambição desmesurada acaba por ser uma fonte de grandes conflitos. 

O corredor China-Myanmar é acima de tudo um investimento em pipelines – cerca de 800 quilómetros –, já concluídos e que tive a oportunidade de visitar há cerca de uma ano. Está neste momento a ser planeado um projeto complementar, que consiste na construção de uma ferrovia, que seguirá o percurso do oleoduto e do gasoduto desde a costa marítima birmanesa no Golfo de Bengala até Kunming, a capital da província chinesa de Yunnan. Estas infraestruturas destinam-se a facilitar as importações petrolíferas da China, evitando o longo e perigoso percurso através do Estreito de Malaca e pelo Mar do Sul da China. O petróleo e o gás virão do Médio Oriente e de África. A via férrea fará parte da ligação, que continuará por via marítima, entre a China, Mombasa e Djibouti, dois portos de grande importância estratégica, quer como pontos de entrada em África quer como bases de apoio ao trânsito de mercadorias para a Europa. Djibouti oferece, igualmente, uma localização excecional para a proteção da navegação entre o Oriente e a Europa.  Chineses, americanos, franceses, japoneses, indianos e outros, todos querem ter uma presença militar em Djibouti. A China é a única potência que combina nesse território defesa com infraestruturas económicas. 

Voltando ao corredor que atravessa Myanmar, verifiquei que as grandes companhias chinesas de petróleo, gás e obras públicas têm luz verde dos militares birmaneses e do governo civil de Aung San Suu Kyi. Consideram, além disso, que cabe às autoridades de Myanmar tratar da sorte das comunidades afetadas pelos projetos. O problema é que ninguém explicou nada às populações nem prometeu qualquer indemnização pelas expropriações e demais perdas. O resultado, para já, como o constatei pessoalmente, é a hostilidade crescente das diferentes comunidades birmanesas contra os chineses. Mais tarde, a própria segurança dos projetos poderá estar em risco. 

O corredor paquistanês é apresentado como o navio almirante no universo da Nova Rota da Seda. Começa na região chinesa de Xinjiang e termina no porto paquistanês de Gwadar, no Índico, muito perto da entrada do estratégico Golfo de Omã. Não visitei esse empreendimento faraónico – um investimento de 87 mil milhões de dólares americanos para financiar estradas, ferrovias, centrais elétricas e zonas económicas especiais. Mas vejo que a intenção é clara. A China ajuda o Paquistão a modernizar as infraestruturas de comunicações, de produção de energia, industriais e portuárias. Em troca, tem acesso direto ao Oceano Índico e a várias zonas francas, onde poderá contar com a mão-de-obra abundante e barata que o Paquistão tem disponível. Além disso, reforça o poder político e militar de um aliado fundamental na sua rivalidade crescente com a Índia. Sei que também aqui, como em Myanmar e noutros países de investimento chinês em larga escala, há o problema da adesão ou da hostilidade das populações. A China é vista como uma aliada do regime e o regime é tido como alheio aos interesses do povo. Temos de novo a fragilidade acima mencionada. 

Há, no entanto, quem tenha consciência na China destas coisas e saiba que os acordos com regimes de legitimidade duvidosa têm pés de barro. Alguns centros de estudos já começaram a debater as questões do impacto dos megaprojetos nas comunidades afetadas, na Ásia e em África, bem como a desconexão que existe entre as lideranças políticas nos países anfitriões, que são favoráveis à penetração chinesa, e as populações, que consideram que os seus políticos são os principais beneficiários dos investimentos em causa. Tenho ficado surpreendido com a franqueza de certas intervenções dos académicos chineses. Uma China monolítica, sim, mas com alguma subtilidade de tons.  

10 OUT 2020Europa e África: à procura do futuro comum

A sexta cimeira entre a União Europeia e a União Africana deveria realizar-se no final deste mês, em Bruxelas. A pandemia veio estragar o plano. Cyril Ramaphosa, chefe de Estado da África do Sul e atual presidente em exercício da UA, tentou tudo por tudo para que o encontro se realizasse ainda este ano, antes do termo do seu mandato. Mas não conseguiu um número suficiente de adeptos para uma opção virtual. Na verdade, a falta de entusiasmo pelos ecrãs digitais revelou que existem divergências importantes entre os europeus e os africanos quanto ao futuro das relações mútuas, ou seja, ainda não há acordo sobre a estratégia comum. 

Se tudo correr bem, a cimeira terá lugar durante a presidência portuguesa da UE, no primeiro semestre de 2021. Espero que não haja novo adiamento. No segundo semestre, será a Eslovénia quem estará na presidência, um país que não dá a África a atenção que nós damos. Não se sabe ainda qual será o chefe de estado que estará nessa altura à frente da UA – será um vindo da África Central – mas espero que a contraparte de Ursula von der Leyen continue a ser o chadiano Moussa Faki Mahamat. Eleito presidente da Comissão da União Africana em 2017, Moussa Faki é um político nobre, inteligente e equilibrado. 

Entretanto, haverá que aproveitar o tempo extra para tentar resolver as divergências. As prioridades que constam da proposta de estratégia são demasiado vastas, têm de tudo. Mais ainda, dão a impressão de ser uma agenda europeia e não um ponto de encontro entre as visões de um lado e do outro. Tratam da transição ambiental e energética; da transformação digital; do crescimento sustentável e do emprego; da segurança e da governação; e ainda das migrações. A leitura que a parte africana faz é que se continua a pensar em termos de ajuda e dependência, em vez de parcerias económicas, de investimento e de comércio livre. A preocupação europeia parece ser, acima de tudo, a de pôr um travão às migrações de África para a Europa.

Definir uma estratégia que responda às inquietações das partes, quando temos de um lado 55 países africanos e, do outro, 27 europeus, não é fácil. Por exemplo, as realidades que existem na região ocidental de África são muito diferentes dos desafios que a África Austral enfrenta. Uma estratégia para o relacionamento com um continente tão diverso tem de ficar pelas grandes linhas, definir apenas os objetivos e os princípios políticos gerais. Deverá, depois, ser completada por acordos mais operacionais, região por região – tal como as define a UA. A estratégia precisa de reconhecer a complexidade do continente africano. O mesmo deve acontecer com a Europa. Certos países europeus têm uma ligação mais íntima com África do que outros. Fale-se de África na Polónia ou nos Bálticos e obter-se-á um comentário distante, bem diferente do que se ouve em Lisboa ou Paris. 

A estratégia também precisa de ser mais clara no que respeita ao reconhecimento do que são os problemas comuns e de como cada lado deverá contribuir para a sua resolução. Neste momento, a leitura que o projeto de estratégia sugere é que os problemas estão em África e que o papel da Europa é o de ajudar a resolvê-los. Esta é uma maneira de ver antiquada. Não serve para construir parcerias entre iguais. Portugal daria uma contribuição inovadora ao propor a discussão dos reptos comuns e a maneira de juntos, lhes responder. 

Há ainda o problema do grande elefante que, embora presente na sala, os europeus preferem ignorar: a China. Ora, a China é hoje um ator primordial em África. Os líderes africanos, que acharam que não seria aconselhável uma cimeira virtual com a Europa, fizeram uma com a liderança chinesa, para discutir o impacto da covid 19 e as possíveis áreas de cooperação futura, no quadro da realidade pós-pandémica. Esta iniciativa deveria abrir aos europeus duas novas pistas de reflexão, que têm necessariamente de ser encaradas antes da reunião de 2021. Primeiro, para reconhecer que a estratégia precisa de ser revista, para ter em conta as debilidades que a pandemia revelou. Segundo, para analisar o papel da China em África e definir uma posição política europeia sobre essa presença cada vez mais determinante. Fechar os olhos para não ver a intervenção massiva da China em África pode ser cómodo, mas é má estratégia.   

03 OUT 2020A Europa e as migrações

A Comissão Europeia acaba de apresentar as grandes linhas para um pacto sobre as migrações e o asilo. Prometeu, além disso, submeter nos próximos meses um pacote complementar de propostas que trate das diversas facetas da questão. Ou seja, a integração dos migrantes; as operações de repatriamento – quer dizer, a expulsão – dos que virem os seus pedidos de asilo e de residência negados; a revisão das normas que regem o espaço Schengen e o reforço das fronteiras da União; a luta contra o tráfico de pessoas; e uma novo tipo de cooperação com os países de origem dos migrantes. É um programa ambicioso. O meu receio é que todo este trabalho dê muita parra e poucos resultados. Esta é uma das matérias que mais divide os países da UE. Não se conseguem acordos para além do reforço das fronteiras exteriores da União e da intenção, sempre difícil de levar a cabo, de proceder ao retorno musculado dos imigrantes que não forem aceites. Tem sido assim desde a crise migratória de 2015 e temo que assim possa continuar.  

Mas vale a pena insistir. A Comissão tem o mérito de nos lembrar que a questão das migrações é um dos principais problemas que temos pela frente. Também nos recorda que se trata de um desafio comum e não apenas dos países que a geografia e a história colocaram mais perto de África, do Médio Oriente, do subcontinente indiano ou da América Latina. Alguns, porém, não querem ver o problema como sendo de todos. Pensam que poderá ser resolvido se se fecharem as fronteiras, de modo a impedir os movimentos de massa. A aposta em fronteiras estanques é uma proposta irrealista. Não tem em conta a demografia, os conflitos, a falta de oportunidades e o desespero que existem às portas da Europa.  Se eu fosse um jovem natural do Níger ou da Tunísia, a minha ambição primeira seria a de tentar emigrar para a Europa, a todo o custo. Teria a mesma atitude se viesse do Paquistão ou do Bangladesh. Hoje, é assim. Amanhã, a pressão migratória será incomparavelmente maior. 

Perante um cenário deste tipo, compreende-se que a Comissão considere que é melhor estar preparado. Não será fácil, mas há que tentar. As migrações desordenadas e as respostas apenas ao nível nacional acabarão por pôr em causa o acordo de Schengen e a continuação da UE. Tornar-se-ão, acima de tudo, uma bandeira para os populistas, e por isso, uma ameaça para a democracia em vários países europeus. Trata-se, assim, de uma questão política da maior importância. 

Em Portugal, a problemática não é tão visível. Somos mais um país de emigrantes do que de imigrantes. É verdade que em certos círculos europeus já se começa a falar de Portugal como uma porta de entrada e uma antecâmara de passagem para quem vem da Guiné, de Cabo Verde, do Brasil e mesmo da Índia, para mencionar apenas os mais importantes. E já há quem olhe para o mar entre Marrocos e o Algarve e veja aí uma nova rota, que precisa de ser interrompida quanto antes. 

Na França, a situação é outra. O presidente Macron sabe quais poderão ser os custos políticos de uma imigração descontrolada. Também está consciente das fraturas que certas comunidades de imigrantes provocam na sociedade francesa. Chama a essas fraturas “separatismo” e considera-as como um dos problemas mais prementes. O separatismo de que fala é mais do que a falta de integração na sociedade gaulesa. É uma atitude deliberada de grupos de pessoas de nacionalidade francesa, mas com raízes estrangeiras, que recusam aceitar os valores laicos, tolerantes e igualitários que definem o etos francês. Esses valores são similares aos prevalecentes no resto da União, mas não são reconhecidos noutras terras, que viveram experiências históricas diferentes das nossas. Esta rejeição deliberada da assimilação é um fenómeno novo e preocupante. 

Menciono a França a título de exemplo. Poderia falar de outros países que, no eixo central da Europa, têm sido ao longo dos últimos sessenta anos o destino de migrantes vindos de fora da cultura europeia. Em todos esses países, a migração é um tema sensível, latente quando as economias prosperam e aberto quando as dificuldades apertam. Ora, com a economia à beira de uma grande crise, por causa do impacto da covid, não tratar politicamente da questão migratória seria um erro de consequências imprevisíveis para a Europa. Não podemos consentir que se persista nesse erro. 

26 SET 2020O Presidente Trump e as Nações Unidas

O nome do laureado com o Prémio Nobel da Paz deste ano será anunciado a 9 de outubro. A lista de candidatos conta com 318 nomes, um número impressionante. Ao que parece, o nome de Donald Trump estaria incluído no rol dos nomeados, o que não é impossível, pois um membro do seu governo, do Congresso ou qualquer outra personalidade, têm a faculdade de nomear. O facto é que o presidente veria com muito agrado a atribuição do Nobel. Calhava que nem ginjas, menos de um mês antes da eleição presidencial. 

Assim se compreendem as palavras pronunciadas esta semana pela embaixadora americana junto das Nações Unidas, Kelly Craft, quando foi chamada a introduzir, perante a Assembleia Geral da ONU, a intervenção do seu chefe. As breves palavras de Craft procuraram transmitir apenas uma mensagem. Disse que Donald Trump é um líder que dá um valor especial à procura da paz. Mencionou, de seguida, as iniciativas relacionadas com Israel, os Emirados Árabes e o Bahrein, o acordo económico assinado na Casa Branca entre a Sérvia e o Kosovo, a Coreia do Norte, um país que desapareceu das notícias e que por isso pode ser apresentado como bem comportado, e ainda o início das conversações entre afegãos, com o apadrinhamento americano. 

Depois, falou o presidente. O seu discurso borrou a imagem de líder preocupado com a paz. Se os tempos de hoje fossem regidos pelas normas diplomáticas habituais, as palavras do Presidente Trump deveriam ser vistas como um prenúncio de uma declaração de guerra à China. Este país foi apresentado como o causador da pandemia da covid-19 e da crise económica global que lhe está associada. Foi igualmente apontado como o maior poluidor da terra, mar e ar.

Tratou-se de um ror de acusações aos outros e de louvores a si próprio e aos sucessos que a sua administração teria obtido em vários domínios, da resolução de conflitos à redução das emissões de carbono. Tudo com os olhos postos nas eleições de novembro.  

Mas, não nos equivoquemos. A diatribe contra a China tem consequências profundas e prolongadas na vida política e na psique americanas. É algo que irá marcar as relações internacionais dos Estados Unidos, esteja ou não Trump à cabeça do país. A classe política, os círculos militares e vários sectores da academia, da intelectualidade e da sociedade americana vêem na ambição externa da China uma ameaça vital para o papel dos Estados Unidos no mundo. Para uns é uma questão de hegemonia política ou de interesses económicos, para outros haverá uma dimensão ética e de valores democráticos, quando pensam numa China que se transforma em superpotência. A década que temos pela frente vai ser marcada pela rivalidade obstinada entre estes dois colossos. Os que pensam que a União Europeia poderá servir de contrapeso e de equilíbrio perante essa competição deveriam pôr a sua imaginação estratégica a trabalhar desde já. Não escondo, no entanto, a minha preocupação no que respeita ao conflito crescente entre os Estados Unidos e a China, nem o meu ceticismo em relação à eficácia estratégica da política externa europeia. 

Voltemos à Assembleia Geral e à comunicação do Presidente Trump. Para além da invetiva contra a China e da propaganda eleitoral, o discurso enunciou o que parece ser uma agenda para as Nações Unidas, na versão de Washington. Às questões da paz – a área dos “capacetes azuis” é uma prioridade não só para os americanos, mas para muitos mais; a única questão é que as principais recomendações da Comissão Ramos-Horta (2015) e as subsequentes ilações políticas continuam por aplicar, havendo uma desconexão entre as operações militares e o trabalho político das missões – o presidente acrescentou a luta contra o terrorismo, a opressão das mulheres, o tráfico de pessoas e drogas, as perseguições étnicas e religiosas. Fez ainda uma referência especial aos direitos humanos. 

É evidente que não falou dos impasses que entravam o bom funcionamento do Conselho de Segurança, da marginalização da ONU e do sistema multilateral, que tem sido uma marca do seu mandato, nem da falta de apoio ao Secretário-Geral. Mas o que disse de positivo deve ser aproveitado para que se possa dar uma nova visibilidade às Nações Unidas e relançar a cooperação internacional. Quanto ao resto, depois de novembro se verá. 

19 SET 2020Manter a relevância das Nações Unidas

A Organização das Nações Unidas celebra 75 anos de vida no início da semana entrante. Essa é igualmente a semana do Debate Geral, que permite aos líderes mundiais discursar perante a Assembleia Geral e para quem os quer ouvir. Este ano, apesar da importância simbólica do aniversário, tudo terá um perfil baixo, digital apenas, por causa da pandemia. Os chefes de Estado e de governo não se deslocarão a Nova Iorque. Enviarão vídeos, na maioria dos casos com as lengalengas habituais destinadas às suas audiências domésticas. A ausência dos líderes fará perder a parte mais relevante da reunião anual, que é a de permitir toda uma série de encontros face a face, entre os grandes deste mundo. Tudo isto torna a sessão deste ano relativamente invisível, precisamente quando as Nações Unidas precisam de recuperar a atenção internacional.  

Pode acontecer que o Presidente norte-americano seja o único a fazer a deslocação e a falar presencialmente. Seria vantajoso que o fizesse, para poder estar com o Secretário-Geral António Guterres. Sabe-se que Donald Trump abranda os seus ímpetos quando há contacto pessoal, algo que não tem acontecido entre os dois há bastante tempo. Mas mais importante do que a ida ou não à sede da ONU é o que o Presidente irá dizer. Tem havido muita especulação e nervosismo à volta disso. Há mesmo quem diga que poderá incluir a ameaça da saída do seu país das Nações Unidas. Não creio que o faça. Que será uma prédica virada para o eleitorado americano, será. Mencionará Israel e as recentes vitórias diplomáticas que conseguiu tirar da cartola, bem como são de esperar referências musculadas aos seus inimigos de estimação, a começar pelo Irão. Em relação a este, pode-se esperar uma crítica direta das posições russas e chinesas, que toque nos europeus de raspão, por estes não terem apoiado as decisões americanas. Mas receio, sobretudo, que o Presidente desenvolva uma narrativa que lhe permita justificar uma hipotética intervenção no Irão, algo que não é de excluir como um possível trunfo eleitoral.  

O Presidente Trump não parece ter muita consideração pela ONU. Ele e a sua equipa já perceberam que não a podem utilizar docilmente como um instrumento que lhes dê legitimidade internacional a posteriori. Assim aconteceu em finais de agosto, quando o Conselho de Segurança recusou a pretensão norte-americana de impor novas sanções ao Irão. Nestas situações, a resposta americana tem sido uma de duas: ou sair das organizações especializadas da ONU, como se viu com a UNESCO, a Comissão dos Direitos Humanos ou a OMS; ou então, marginalizar e ignorar a instituição, como tem acontecido com o secretariado das Nações Unidas. Mais ainda, a atual liderança americana já mostrou que não acredita em soluções multilaterais. A opção de política externa que prevalece é a de fazer pressão e exigências, com base no princípio que quem tem o poder, tem o direito.

Perante a erosão do multilateralismo e a marginalização, a resposta tem de ser potente. Deve assentar na repetição constante do papel fundamental da ONU na promoção da paz e da segurança, tal como estes conceitos são hoje entendidos. Isto significa, antes de tudo, o reconhecimento que a organização existe para facilitar as soluções políticas, em caso de risco ou de conflito. As dimensões do desenvolvimento e da ação humanitária são pilares importantes do sistema onusiano, mas a primazia deve ser dada ao trabalho político. Essa é a mensagem que Nova Iorque tem de fazer ouvir com uma voz firme. E explicar que, para que haja paz e segurança, tem de existir, acima de tudo, respeito pela dignidade das pessoas, pelos seus direitos e aspirações de liberdade, boa governação e igualdade de oportunidades. Ou seja, é preciso dar um sentido político mais intenso às ideias de desenvolvimento humano e de segurança individual. Estes conceitos foram conceptualizados nos anos 90 e reconhecidos como grandes avanços na maneira de ver as relações internacionais.  Continuam, porém, órfãos em termos da oratória política onusiana. É preciso traduzi-los para uma linguagem política. Esta mantém-se tímida e tradicional, muito baseada na soberania dos Estados e na não ingerência nos assuntos internos de cada país. A narrativa deve agora, aos 75 anos, acentuar a necessidade de um equilíbrio entre a soberania e os direitos de cada um de nós. “Nós, os povos das Nações Unidas”, como se diz no início da Carta. 

12 SET 2020Uma digressão pelo Mali

O Mali é um país fascinante, diverso nas suas paisagens e culturas. É terra de grandes cantores e músicos tradicionais, que tocam a corá, um instrumento ancestral feito a partir de uma grande cabaça, das máscaras e estatuetas Dogon, berço da cidade de Timbuktu, uma referência histórica ímpar em matéria de estudos islâmicos. Durante quatro séculos, até 1670, o Mali foi o epicentro de um grande império na África Ocidental, um império reconhecido pelos exploradores portugueses, que com ele mantiveram trocas comerciais de envergadura, através do Rio Gâmbia. Acrescento ainda que tive, na ONU, vários colegas malianos, que se revelaram excelentes profissionais e que ocuparam postos importantes nas diferentes organizações multilaterais. Escrevo isto para me premunir de opiniões sumárias, dos que têm o hábito de arrumar tudo o que é africano num canto escuro, à sombra dos preconceitos habituais. Fico triste, como muitos outros, quando vejo o país a esfrangalhar-se e a tornar-se inseguro, como continua a acontecer diariamente. 

O Mali voltou a ser notícia, nas últimas três semanas, no seguimento do golpe militar de 18 de agosto. É, pela mesma razão, objeto de debate, incluindo em círculos europeus. Mais ainda, alguns teóricos das conspirações viram a mão de Moscovo por detrás dos coronéis que tomaram o poder, uma hipótese que considero improvável. Mas há outras mãos a mexer no Mali, da França à Arábia Saudita, e com intenções muito diversas. 

Também está em jogo o papel das Nações Unidas, que mantêm no país uma missão de paz desde 2013, com mais de 15 mil elementos. MINUSMA, assim se chama a missão, tornou-se, com o tempo, num caso de estudo por não ter sabido responder às questões políticas e de governação que estão no centro dos problemas que o Mali vive. A direção política da missão resolveu, para agradar aos franceses e por oportunismo estratégico, colar-se ao presidente que o golpe de Estado agora depôs. Em Nova Iorque, no Conselho de Segurança, ninguém teve a coragem de corrigir esta trajetória. Assim se perde a credibilidade e se hipoteca o futuro.  

Voltando ao debate atual, tem faltado sublinhar que mais de dois terços da população do Mali tem menos de 25 anos de idade. E que a educação e a economia são incapazes de responder aos desafios que uma pirâmide de idades deste tipo acarreta. Quando estive pela primeira vez no Mali, em 1990, a sua população total rondava os oito milhões e meio. Hoje, trinta anos passados, está próxima dos vinte milhões. O mesmo acontece nos outros países da região. Todos têm pirâmides etárias explosivas. A pressão demográfica cresceu em todo o Sahel a par e passo com o avanço da desertificação e da pobreza. Ser-se jovem no Sahel significa olhar para o futuro e ver apenas uma imensidão de políticas áridas, um deserto de oportunidades e um habitat urbano caótico e inumano. Assim, é difícil haver esperança e paz social. Resta a migração com destino à Europa, ou então a aderência ao banditismo armado e às rebeliões fanáticas. O fanatismo cresceu de maneira exponencial, na última década, graças nomeadamente à proliferação de mesquitas, de escolas corânicas wahabistas e de pregadores radicais, tudo financiado pelos sauditas e outros do género.  

Os que não emigram nem se juntam aos grupos extremistas, vegetam nas grandes cidades, onde podem observar como as desigualdades sociais se tornaram gritantes, fruto da corrupção que prevalece nos meios políticos, nas forças de segurança e na administração da justiça. Vêem ainda que os países europeus e outros atores internacionais fecham os olhos às manigâncias praticadas pelos poderosos. Foi isto o que aconteceu no Mali. Após meses de contestação popular contra a indiferença do presidente e a avidez dos seus, um grupo de oficiais superiores resolveu agir. Têm o apoio popular, pelo menos por enquanto. É verdade que não se deve apoiar golpes anticonstitucionais. Mas é igualmente verdade que não se pode continuar a fingir que não se vê a corrupção, a inépcia e a falência da administração territorial, com vastas zonas do espaço nacional sem qualquer presença do Estado. A mitigação das crises começa pela promoção da probidade e pela restauração do poder local, para além do tratamento das questões da juventude. É isso que importa lembrar aos coronéis, aos líderes da região, ao Conselho de Segurança da ONU e aos parceiros europeus do Mali, Portugal incluído.  

05 SET 2020Para além do veneno

O relacionamento político da União Europeia com a Federação Russa continua muito nebuloso e tenso. Voltou a explodir esta semana, depois do anúncio alemão de que Alexei Navalny havia sido envenenado com uma composição química, banida pela lei internacional, mas disponível no arsenal do estado russo. 

Para além de Navalny, o impasse na Bielorrússia, o renovar da pressão norte-americana contra o gasoduto Nord Stream 2, as recentes declarações da Suécia sobre as ameaças militares no Mar Báltico, a detenção de um oficial superior francês, acusado de colaborar com a espionagem russa, tudo isto nos lembrou, nos últimos dias, que a definição de uma política europeia em relação ao regime de Vladimir Putin é uma matéria urgente e complexa. Tem de ir mais além do atual pacote de sanções económicas, que foi aprovado no seguimento da invasão da Crimeia, em 2014. Essas sanções, agora em vigor até 2021, dizem sobretudo respeito a transações financeiras e à exportação de material que possa ser utilizado na produção e exploração de petróleo ou nas áreas militares. Estão estritamente ligadas à evolução de intervenção russa na Ucrânia, incluindo a Crimeia, e não à questão mais ampla, de como encarar e lidar com a Rússia de hoje. 

Reconheço que o assunto tem sido muito debatido e que continua na ordem do dia. Josep Borrell, ao lançar recentemente um processo de reflexão sobre a segurança e a defesa, a que deu o nome de “Bússola Estratégica”, tinha essa questão em mente. O problema é que a Rússia é vista de modo diferente pelos distintos países membros da UE. Nos Bálticos ou na Polónia, é considerada como a grande ameaça externa. Essa opinião esbate-se à medida que caminhamos na direção do Atlântico e nos afastamos do Leste e dos traumas dos tempos soviéticos. 

O debate avivou com o regresso de Vladimir Putin à presidência, em 2012. Nos dois anos anteriores, na NATO e nas instituições europeias ainda havia alguma esperança de uma relação construtiva e cooperante entre as duas partes. Oficiais generais russos chegaram a ser convidados, nessa altura, a participar em exercícios de comando operacional de alto nível da Aliança Atlântica. Também houve outras tentativas de definição de uma nova política de vizinhança. Falo por experiência própria. Numa delas, em que participei como facilitador, por iniciativa suíça, ficou claro que o orgulho nacionalista russo havia sido irresponsavelmente maltratado, nos anos seguintes ao fim da Guerra Fria, e que a agenda de Vladimir Putin seria a de restaurar a presença internacional do país e apresentar a conta aos Ocidentais. Um projeto revanchista. 

A crise da Ucrânia e a subsequente anexação da Crimeia faziam parte do ajuste de contas. Desde então, as relações entraram numa fase de ziguezagues, com tendência crescente para confrontações políticas e diplomáticas. Passou a ser claro que Vladimir Putin queria minar a UE por dentro, através de uma diplomacia seletiva e de ações de desinformação, propaganda e apoio a partidos políticos de extrema-direita, desde que tivessem como bandeira a desagregação do projeto europeu. A ilusão de um “restauro” da cooperação foi sol de pouca dura. Mas nem todos querem ver a realidade dessa maneira. A Bulgária, a Chéquia, bem como a Grécia e a Hungria têm, dentro da EU, uma atitude relativamente favorável às posições do Kremlin. Outros serão, em certa medida, neutros e estarão disponíveis para um desanuviamento, como será o caso português.  

A definição de uma política comum passa por um entendimento claro e partilhado das intenções de Vladimir Putin, dos seus interesses estratégicos e pessoais. Começa por se entender que a Rússia é diferente da China. Esta é um competidor, em muitas áreas, e precisa de uma resposta concorrencial adequada. A Rússia sob Putin é um estado hostil e deve ser tratada como tal. Ninguém quer entrar em conflito com um vizinho poderoso e belicoso. Mas, ignorá-lo seria um erro. Por isso, há que lhe lembrar repetidamente quais são as regras e os valores que é preciso respeitar, limitar a interação ao mínimo e sancionar, pessoalmente, os principais dirigentes do país. É preciso mostrar à população europeia e, acima de tudo, à russa, que se considera os seus dirigentes como gente malcomportada, à luz das práticas democráticas e da lei internacional. 

29 AGO 2020Nós e o vizinho Erdogan

A semana esteve à beira de explodir, no Mediterrâneo oriental. A Turquia continuou a prospeção marítima de depósitos de gás, com intenções económicas e políticas, e aumentou a sua presença militar em águas que a Grécia considera como pertencentes à sua plataforma continental. Esta, como retaliação, declarou que iria levar a cabo exercícios navais e aéreos nessas mesmas águas. E assim o fez, durante três dias, de 26 a 28 de agosto, em colaboração com as forças armadas de Chipre, da França e da Itália. Estas manobras seguiram-se a um outro exercício marítimo, greco-americano, que foi mais simbólico do que outra coisa, mas que não passou despercebido em Ancara. Certos comentadores turcos disseram, então, de modo subtil pois criticar o regime mete muitos jornalistas na prisão, que um dos objetivos do governo deveria ser o de evitar o isolamento diplomático da Turquia. Um conselho muito revelador. 

A possibilidade de um incidente militar entre os dois países vizinhos deixou várias capitais europeias inquietas. A grande interrogação passou a ser a de como evitar um confronto aberto, que acabaria por arrastar vários países europeus e até mesmo o Egipto, entre outros.

Um esforço de apaziguamento no quadro NATO foi posto de parte. A organização não tem condições para responder a esta rivalidade entre dois Estados membros. Aliás, é cada vez mais notória a paralisação da Aliança, em matérias que tenham que ver com os jogos políticos do Presidente Erdogan. A Turquia transformou-se, no seguimento da mal contada tentativa de golpe de estado de julho de 2016, numa mó de azenha amarrada ao pescoço da NATO. 

Restava o canal europeu. A Alemanha, que ocupa a presidência da UE e tem peso em ambos os países, enviou a Atenas e a Ancara o seu ministro dos Negócios Estrangeiros, o social-democrata Heiko Maas. A sua proposta era clara: que se estabelecesse uma moratória na exploração das águas contestadas e que se procedesse à procura de uma solução negociada. Na Grécia, pouco conseguiu. Os gregos haviam obtido a convocação de uma reunião europeia sobre o assunto e continuavam a apostar nas decisões que aí pudessem ser tomadas, bem como no apoio de Emmanuel Macron. Na Turquia, Maas obteve do seu homólogo uma promessa de participação num processo de diálogo. Foi uma maneira hábil de responder, por parte do ministro turco, que assim procurou esvaziar a vontade dos europeus em adotar sanções contra o seu governo. 

A vizinhança greco-turca está muito complicada. Só tem uma solução, que é a do diálogo e da cooperação entre os dois vizinhos. Essa deve ser a linha recomendada pelos parceiros europeus. Não será fácil fazê-la aceitar, mas em alternativa, a confrontação seria uma catástrofe. Também é preciso enviar mensagens claras ao Presidente Erdogan, quer sobre o futuro da relação entre o seu país e a Europa – que não passará pela adesão, pois a Turquia está inserida numa outra realidade geopolítica e numa esfera cultural que diverge da predominante no espaço europeu – quer sobre outras questões em que os interesses estratégicos das partes possam estar em colisão. 

Deve reconhecer-se que a Turquia é um país que conta na área geográfica em que se insere. Ao mesmo tempo, não nos podemos esquecer das opções que o Presidente Erdogan tem tomado nos últimos anos, que chocam, contrariam a nossa ideia de democracia e deixam muitos líderes europeus francamente apreensivos. A Turquia de Erdogan tem ambições irrealistas, que vão muito além da sua força económica – o PIB nacional é metade do PIB de Espanha, apesar da população turca ser o dobro da espanhola – e da sua capacidade de influência regional. Na verdade, a Turquia é um país ainda em desenvolvimento e com sérios problemas de inclusão social das suas minorias étnicas, para já não falar do tema sempre presente do respeito pelos direitos humanos.  Faria melhor em gastar menos em despesas militares – representam 2,7% do PIB, um valor bem acima da média e da recomendação que prevalece no interior da NATO – e mais na promoção do bem-estar e das oportunidades dos seus cidadãos. Se assim acontecer, é certo que poderá aspirar a uma associação mais próxima com a UE. 

Isso é para o futuro, talvez mesmo apenas possível numa época pós-Erdogan. Para já, é fundamental travar a escalada militar e acalmar as águas. 

22 AGO 2020De regresso aos imponderáveis

O grande desafio, nas nossas sociedades, é o de fazer desabrochar lideranças que sejam realistas, transformadoras e convincentes. Esse desafio é hoje premente. Com as férias de verão a aproximarem-se do seu termo, olha-se para os quatro meses que faltam para completar o ano e não se pode achar estranho que muitos fiquem apreensivos. Vêem uma maré cheia de problemas e vaza de liderança internacional. Nenhum dirigente atual consegue ultrapassar os limites da sua paróquia e propor uma perspetiva animadora e credível, face ao que temos pela frente. 

A cena mundial continuará marcada pela pandemia da Covid-19 e, em boa parte, pela política interna norte-americana. Para não falar de outras complicações que se vivem na nossa vizinhança geopolítica, como a tensão crescente entre a Europa e a Turquia, agora na parte oriental do Mar Mediterrâneo, mais os conflitos e as dificuldades sem fim no Médio Oriente e no Sahel, a começar pelo Mali. Uma lista de preocupações que não cessa de crescer e que passou a incluir a Bielorrússia, graças ao ditador Alexander Lukashenko, uma reminiscência dos tempos soviéticos e do que a cultura do partido único produziu como desequilibrados políticos. Sem esquecer, claro, as fraturas no interior do nosso espaço europeu, muito fragilizado no seu todo e com várias crises nacionais já visíveis ou em gestação, como será o caso da Bulgária e, por outras razões, da Itália, onde existe um mal-estar social muito agudo. A pandemia é um incêndio global a que se junta uma série de fogos locais. A sabedoria consistirá em entender o que tudo isto acarreta como consequências e saber propor uma ordem internacional diferente. Pensar assim parece uma miragem. Mas este é um momento excecional, que nos interpela e exige uma visão diferente do futuro. 

No que respeita às eleições presidenciais nos Estados Unidos, uma pessoa amiga dizia-me esta semana que há que ter paciência e esperar por novembro. Acrescentava que não tinha dúvidas sobre a derrota de Donald Trump e que depois, tudo voltaria à normalidade, incluindo na área das relações internacionais. Não dou por adquirida a derrota de Trump. Os Democratas não devem considerar a vitória como favas contadas. Faltam, é verdade, pouco mais do que setenta dias para a eleição e as previsões não são favoráveis ao Presidente. Mas este é um período em que o imponderável pode acontecer. Os analistas mais objetivos e atentos lembram-nos que o país está mergulhado numa crise multidimensional. Não é apenas o caos na gestão da pandemia, o impacto desta sobre a economia ou a inépcia generalizada e flagrante do Presidente. A mistura Trump-Covid está a provocar um abanão social profundo, estrutural, com dimensões raciais, pobreza e desespero. Põe em causa, acima de tudo, o sistema e a democracia, com a radicalização de sectores populacionais, sobretudo os que creem que a derrota de Trump significaria um apertar do cerco que pensam existir contra os seus interesses. 

Donald Trump não se vê como perdedor. Irá tentar tudo e mais alguma coisa para recuperar o terreno perdido, ou, em desespero, mandar o tabuleiro ao chão. Enfrentamos tempos imprevisíveis. Ele e os seus precisam de continuar a captura da administração federal por mais quatro anos. Certos analistas pensam que isso pode levar o Presidente a entrar em jogos muito perigosos para a estabilidade do seu país e do mundo. E ficam ainda mais preocupados quando notam o alinhamento cego dos dirigentes do Partido Republicano, que nada ousam fazer para contrariar o Presidente. 

Sou dos que pensam que esses receios são exagerados. As instituições americanas são suficientemente sólidas para travar qualquer tentação do abismo. E o resto do mundo é suficientemente paciente para não se deixar cair em provocações. Incluindo a China. Mas a verdade é que o ano tem sido um mar de surpresas inimagináveis. Por isso, para os meses que faltam, é melhor pensar no impensável. Esse seria o repto que eu lançaria a um par de centros europeus de reflexão estratégica. Entretanto, à cautela, convirá que continuemos, aqui deste lado, a trabalhar para o melhor, sem descurar a preparação para que possamos responder a novas confusões. 

15 AGO 2020Do Líbano ao congelador de conflitos

O distrito de Beja e o Líbano têm a mesma área territorial. Mas a comparação termina aí. Se de um lado temos à volta de 153 mil habitantes, do outro são 7 milhões, que vivem apertados numa das regiões mais instáveis do globo. E que constituem um mosaico social extremamente fragmentado e prenhe de rivalidades, que subsiste à custa de equilíbrios precários, sempre prontos para serem quebrados. Cada segmento da sociedade puxa a brasa à sua sardinha. Os respetivos chefões corrompem o sistema e apropriam-se das instituições da governação. À emergência de líderes mais honestos, os chefões respondem com assassinatos ou intimidação, para calar ou empurrar para o exílio quem os ponha em causa.

Assim se compreende que um país de gente empreendedora e com um nível cultural elevado tenha atravessado uma longa guerra civil, de 1975 a 1990, e viva uma crise nacional profunda desde há anos. A situação entrou numa fase aguda em outubro de 2019, com milhares de cidadãos a protestar regularmente nas ruas. A economia e o sistema financeiro deixaram de funcionar. O governo central ficou prisioneiro das rivalidades ferozes que existem entre os 18 grupos político-confessionais que constituem o país e que servem de peças de um xadrez de tensões entre as potências regionais, sobretudo do Irão e da Arábia Saudita.

A situação tornou-se catastrófica depois da explosão que ocorreu no porto de Beirute. Desde então, o país passou para a primeira página das notícias e para a lista prioritária das preocupações das potências do costume, graças sobretudo aos esforços de Emmanuel Macron. O Líbano permanecerá nessa lista enquanto a atenção internacional estiver focada na sua crise. Mais tarde ou mais cedo aparecerá uma nova tragédia, algures, e o país, como outros que também vivem conflitos nacionais recorrentes, passará para a prateleira dos esquecidos, no frigorífico mundial onde se guardam, bem ou mal congeladas, tantas crises insolúveis.  

Entretanto, foi anunciado um auxílio humanitário de urgência. É fundamental que essa ajuda chegue rapidamente e que seja entregue a quem de facto está numa situação de grande precariedade. Aqui o papel das organizações das Nações Unidas é o de garantir a credibilidade da distribuição dos bens humanitários, que deverá ser canalizada através de ONGs libanesas. Há que evitar o aproveitamento político dessa ajuda, quer pelas fações internas quer pelas potências doadoras. Por isso, não me parece demais lembrar que a ação humanitária tem como objetivo salvar vidas, com transparência, sem corrupção. Não tem nada que ver com possíveis mudanças na teia de aranha política.

É verdade que o Líbano precisa de mudar a seu labirinto político. Surgiram, nos últimos dias, uma série de propostas que colocariam esse encargo sobre os ombros da comunidade internacional. Falou-se de um novo regime de mandato – o país esteve sob mandato francês até 1943 – e há muita gente no Líbano, ao nível popular, que gostaria que isso acontecesse. Essa modalidade, mesmo com adaptações às realidades da política moderna, seria uma coisa do passado. Não corresponde à visão atual, que coloca a responsabilidade de mudança nas mãos dos agentes políticos nacionais. 

Também não me parece possível enviar para o país um contingente das Nações Unidas, com uma missão política aprovada pelo Conselho de Segurança, ao abrigo do Capítulo VII da Carta da ONU. Essa parte da Carta permite o uso da força militar e de polícia, o que teoricamente tornaria a missão mais eficiente. Na realidade, só funciona se houver vontade política nacional suficientemente forte, que queira mudar a maneira de gerir o país, o que me parece muito difícil de conseguir no Líbano. Poder-se-ia, isso sim, recorrer às funções de mediação e de facilitação do diálogo político, um papel que é cada vez mais central no menu das Nações Unidas. Só que não acredito que os políticos libaneses estejam disponíveis para um esforço desse tipo. 

Assim, enquanto se presta algum socorro humanitário e se espera por um arrefecimento político interno, receio que o Líbano se junte ao grupo de países que a inércia do Conselho de Segurança coloca regularmente no congelador de conflitos. 

08 AGO 2020Questionar a obsessão securitária

A Comissão Europeia ganhou o hábito de produzir estratégias. É uma boa prática, por permitir fazer avançar a reflexão sobre temas prioritários e chamar a atenção dos diferentes governos sobre a necessidade de coordenação e de ações conjuntas, quando apropriado. Pena é que esses documentos fiquem apenas por Bruxelas e em certos círculos especializados, e não sejam debatidos nos parlamentos nacionais e pela opinião pública, nos diferentes Estados membros. 

A Comissão acaba agora de delienar uma outra, a que chamou Estratégia de Segurança da União. Foi desenvolvida sob a batuta do Vice-Presidente para a Promoção do Modo de Vida Europeu, Margaritis Schinas, que tem na sua salgalhada de incumbências assegurar o nexo entre as dimensões externas e internas da segurança. Ou seja, uma tarefa quase impossível, na medida em que não há harmonia de interesses no que respeita à política externa, nem mesmo no que se relaciona com a vizinha Rússia. Também, não há coragem para agir contra os Estados que na realidade representam uma ameaça para a estabilidade interna da Europa, como é o caso da Turquia, entre outros. 

A nova estratégia de segurança é, acima de tudo, um exercício de enumeração. Faz um apanhado exaustivo das iniciativas em curso, incluindo as respeitantes aos crimes cibernéticos e às campanhas de intoxicação e de deturpação vindas do exterior – sem qualquer referência aos agentes internos que servem de caixa de ressonância dessas mensagens mentirosas. É tudo muito técnico, baseado na intervenção das polícias e dos organismos de investigação criminal. Falta a ligação à Estratégia Global, aprovada em 2016, e à Política Comum de Segurança e Defesa. É como se a Comissão estivesse apenas a acrescentar mais um silo ao edifício político europeu. Isso é mau. Carece, igualmente, de uma análise das vulnerabilidades de certas categorias de cidadãos, segundo a idade, o sexo, o local de residência, a fragilidade social e económica, a pertença étnica ou cultural. Isso é ainda pior.  

Quem tenha a paciência de ler o documento fica com a impressão de que no final do período de referência, o ano de 2025, iremos ter uma Europa em que cada passo de cada cidadão será registado e poderá vir a ser objeto de perscrutação. É fácil ficar-se com a imagem de que chegaremos então a uma sociedade fortemente vigiada, com bancos de dados gigantescos a armazenar todos os pormenores das nossas vidas. A estratégia mostra, aliás, que o processo já começou e que será acelerado pelos progressos da digitalização e da Inteligência Artificial. A prevenção do terrorismo e dos ataques híbridos, que possam pôr em causa as infraestruturas fundamentais, e a luta contra os crimes financeiros serão três das linhas utilizadas para justificar uma vigilância apertada, que parece inspirada no Big Brother imaginado por George Orwell. 

Mesmo quando se diz que o objetivo último é a defesa dos direitos e liberdades dos cidadãos europeus, não podemos cair na armadilha da segurança omnisciente, omnipresente e omnipotente. A razão é simples. Um Estado securitário está sempre a um passo de resvalar para um Estado opressivo e manipulador. Exemplos passados mostram que os dirigentes políticos caem facilmente na tentação de desviar as funções da segurança para fins que nada têm que ver com a consolidação do regime democrático e a verdadeira tranquilidade dos cidadãos. 

Os que não comungam dessa tentação mostram-se tantas vezes incapazes de exercer a fiscalização democrática das instituições de segurança. A maioria das comissões parlamentares de supervisão dos serviços de informação têm mandatos reduzidos, acesso limitado e resultados insatisfatórios. A estratégia agora formulada é omissa quanto às alternativas que deveriam ser consideradas para que poderes independentes, sem conotação partidária, exteriores às disputas parlamentares, possam efetivamente travar possíveis abusos securitários.  Ora, a questão do controlo equilibrado dos potenciais excessos de quem observa o nosso quotidiano é essencial.  E isso porque as obsessões securitárias são como as bruxas. Há quem nelas não acredite, mas que as há, há! Inclusive, nas democracias europeias! 

01 AGO 2020Este tempo não é para estátuas

Uma boa parte de nós ainda vê a situação atual como algo de temporário, que a investigação científica, os subsídios anunciados e o tempo acabarão por resolver. Penso que é uma visão ligeira da pandemia e das suas consequências. Não tem em conta as lições aprendidas com as crises precedentes, que levaram anos a ser ultrapassadas, apesar de não terem sido tão graves como a de agora.

Para além do impacto económico e social, poderão surgir fraturas políticas de grande envergadura. A confusão, a incerteza e os medos são terrenos férteis de onde costumam brotar políticos autoritários, com pinta de messias megalómanos e ideias ultranacionalistas, populistas e bizarramente perigosas. O espaço democrático encontra-se ameaçado. Começam a aparecer cópias em miniatura de Donald Trump e companhia. Gente que, vinda de fora da prática política e sem a experiência do funcionamento das instituições, pensa ter a solução simples e pronta a cozinhar que irá solucionar todos os males de hoje. Mas, na realidade, os populistas mais argutos estão à espera da oportunidade, que surgirá, no seu entender, com o esgotamento da capacidade de resposta dos sistemas sociais.  

Num contexto destes, precisamos de líderes esclarecidos, corajosos e capazes de dar sentido às transformações que aí vêm. Acontece que as pessoas olham à sua volta e não vêem esse tipo de líderes. Não se descortina um novo Nelson Mandela, um Kofi Annan de agora ou uma versão moderna de Jacques Delors. O imediatismo e o materialismo substituíram a luta pelos valores humanos. A liderança moral, que o Papa Francisco, o Secretário-geral da ONU e outros poderiam exercer, está apagada. Deixaram de aparecer ou, quando o fazem, falam tarde e de coisas vagas. Ninguém toma nota.

Dir-se-ia que só é ouvido quem exagera. Creio que não será bem assim. A Primeira-Ministra da Nova Zelândia, Jacinda Arden, é uma dirigente moderada que todos admiram. Não tem mais projeção internacional porque está muito focalizada nas questões do seu país. Mesmo assim é frequentemente citada. Greta Thunberg e Malala Yousafzai podem ser mencionadas como outros exemplos de liderança internacional. São vozes respeitadas, que marcam a agenda global. A razão, diria de modo simplificado, é porque vão diretas ao assunto, sem diplomacias, nem receios ou ambições pessoais. São vistas como genuínas e combativas. E com ideias claras. É isso que se espera de quem lidera. 

Do outro lado da moeda, veja-se o caso das Nações Unidas. Os últimos dez anos foram um desastre para a sua credibilidade. A falta de autoridade ao nível global agravou-se a partir da crise da Líbia em 2011 e conheceu vários momentos de deterioração, nos anos seguintes. A invasão da Crimeia em 2014 e o conflito na Ucrânia, tudo feito com impunidade, o impasse na Síria, com vetos repetidos, o silêncio e a inação face às migrações em massa de 2015, a eleição de Donald Trump em 2016, um político que não aceita os valores da cooperação internacional, a falta de resposta política ao genocídio dos Rohingyas em 2017, a exclusão do Conselho de Segurança das questões relativas à Palestina, os ataques contra a UNESCO e a OMS, são alguns dos marcos no processo de marginalização da ONU. Outros mais poderiam ser referidos, numa lista que nos lembra que é preciso repensar o quadro institucional global. Acrescento, apenas, que não há maior frustração na vida internacional do que estar à frente de uma instituição que praticamente ninguém ouve. 

Nestas coisas, gosto de sugerir que se siga o exemplo daquele santo homem, descrito num famoso sermão a pregar aos peixes, porque as pessoas não o queriam escutar. Ou seja, este não é, de modo algum, o momento para ficar calado, sem tirar as lições que a crise nos põe à frente dos olhos. Um líder silencioso é apenas uma estátua, o que nestes dias é um perigo, pois as estátuas estão a ser derrubadas. 

25 JUL 2020Da distância social à política 

Não quero iniciar este diálogo regular com o leitor sem ter como primeiro tema a pandemia. É verdade que é um assunto batido, com muita gente a refletir sobre o que poderá ser o mundo, uma vez vencido o vírus. Uma boa parte dessas reflexões inspira-se no princípio da bola de cristal, uma técnica que foi aperfeiçoada, ao longo do tempo, por todo o tipo de adivinhos. Outros pensadores vêem no desenrolar da pandemia a confirmação das suas obsessões ideológicas. Aproveitam para atacar à esquerda e à direita. Confirmam a morte do neoliberalismo ou da globalização, mesmo do capitalismo, aquecem ao apontar as causas climáticas, saúdam antecipadamente o fim da hegemonia americana ou a falência do projeto europeu e assim por diante. Para muitos desses intelectuais, futurismo parece rimar com irrealismo e irrequietismo. 

É, na verdade, fundamental saber-se olhar para o futuro. Temos consciência que as grandes transformações vieram de quem conseguiu ver para além do horizonte. Cem anos após a mal denominada “gripe espanhola”, a pandemia do coronavírus é o maior choque que se sofre depois da Segunda Grande Guerra. É como um tsunami global. O mundo está a trabalhar em câmara lenta ou mesmo parado, nalguns casos. O que era até março uma aldeia global, transformou-se num arquipélago de ilhas isoladas. As pontes levadiças estão todas levantadas, com medo do contágio que possa vir do vizinho. Vivemos um tempo de ansiedades e medos. Todavia, apesar das incertezas, não fica descabido prever-se que a ordem mundial de amanhã seja bem diferente da que fomos construindo até ao início deste ano. Sem entrar no jogo da bola de cristal, prevejo que as questões da pobreza em massa, como existe em certas partes do globo, das desigualdades sociais, nas sociedades mais desenvolvidas, da deterioração do meio ambiente e da competição entre as superpotências marquem de modo predominante a agenda do futuro. 

Cada uma dessas questões traz consigo uma teia de outras interrogações, que mostram a complexidade do que temos pela frente. Por outro lado, é preciso vencer a indiferença social que, entretanto, se apoderou das pessoas. Cada um preocupa-se apenas com o tratar de si. Fecha-se na sua concha de alheamento perante as dificuldades dos outros. Muitos líderes políticos tiram depois a conclusão de que o importante é o que se passa no espaço doméstico, como se fosse possível parar os problemas à porta da nação, com o baixar de uma cancela fronteiriça. Daí até à crise do sistema multilateral é um passo de anão, tanto mais facilitado quanto mais tímidos, apagados ou confusos se mostrarem os que estão à cabeça das instituições internacionais. 

A competição entre as superpotências preocupa-me sobremaneira. Vejo os Estados Unidos e a China a percorrer uma rota perigosa. A pandemia veio acelerar o conflito, em particular do lado americano. Novas tensões e acusações permanentes contra o adversário podem levar a um passo em falso, que teria gravíssimas consequências para todos nós. Entretanto, ambos os lados procuram aumentar o número dos seus apoiantes na arena internacional. Aliados não é a palavra exata. O que cada um deles pretende é criar um círculo de Estados vassalos, que sigam a linha política definida em Washington ou Beijing e limitem o acesso dado ao outro lado. É esta a tendência crescente do relacionamento americano com a Europa. Estão a ter êxito com Boris Johnson, que acaba de dar uma cambalhota política no que respeita à Huawei. E continuam a fazer pressão junto de outros governos europeus, no mesmo sentido e em várias outras matérias, igualmente. A única resposta estratégica é, porém, a de manter uma certa distância entre as duas partes antagónicas, reforçando a soberania europeia. A pandemia ensinou-nos a expressão “distância social”. A Europa precisa agora de aprender a prática da “distância política”.  

11 JUL 2020 – “A minha filha mais nova tinha 14 anos e viu centenas de corpos a boiar vindos do Ruanda, mortos à catanada” (Entrevista ao DN)

Sei que esteve na organização das primeiras eleições livres que houve em Portugal, a 25 de abril de 1975 para a Assembleia Constituinte. Como é que foi
parar à CNE?
Eu, nessa altura, era técnico superior no INE e o governo lembrou-se de que seria interessante ter alguém da estatística como membro da CNE. Consultaram dois ou
três partidos e um deles disse que havia um fulano no INE que esteve no estrangeiro, que trabalhou no Instituto de Sociologia em Bruxelas. Assim, entrei como membro independente, porque a CNE tinha os comissários independentes e tinha, depois, os representantes dos partidos. Uma das primeiras coisas que notámos logo nas primeiras reuniões foi que era impossível fazer funcionar a Comissão com este tipo de mistura. Uma das primeiras decisões que propusemos ao governo foi que os representantes dos partidos saíssem da CNE.

É de Évora, estudou na cidade e tinha 25 anos no 25 de Abril. Vivia na Bélgica por razões políticas?
Sim, eu fui refugiado político. Saí de Portugal em julho de 1973 e estava no Instituto de Sociologia da Universidade de Bruxelas como investigador quando foi o 25 de
Abril. Vim logo a seguir – já estava cá no 1.º de Maio – e depois fui eleito, pelos funcionários do INE, como um dos membros da Comissão de Direção do Instituto.

O que é que foi para si mais fantástico, foi ouvir a notícia do 25 de Abril, quando estava em Bruxelas, ou no 25 de Abril do ano seguinte, as pessoas a
fazer filas para votar?

Penso que ambas as coisas. No dia 25 de abril de 1974 cheguei à universidade e uma das minhas colegas disse-me que tinha havido uma revolução em Portugal. Eu estava completamente fora das notícias e procurei informar-me junto de outros portugueses em Bruxelas e, de facto, foi uma surpresa extremamente agradável. Tão agradável que, no dia seguinte, pedi a demissão e vim para Portugal. Também foi extremamente interessante ver as eleições que nós tínhamos organizado, as primeiras eleições livres em 1975. Eu, como membro da CNE, estava na Gulbenkian creio que a nossa base – e foi interessante ir seguindo ao longo do dia as eleições e, depois no fim do dia, receber a visita de helicóptero do general Otelo Saraiva de Carvalho. Foi agradecer à CNE o dia ter corrido bastante bem. Depois, já na ONU, vai organizar eleições em muitos países.

Como é que aparece a oportunidade de ser funcionário da ONU?
Em 1976, quando saí da direção do INE e voltei para o gabinete de estudos do instituto, eles não sabiam bem o que fazer de mim pois tinha estado na direção durante dois anos. Então, fui nomeado, pelo instituto e também pela Secretaria de Estado do Planeamento, para representar Portugal num grupo de trabalho na OCDE sobre indicadores sociais em Paris. Houve uma altura em que ia lá praticamente todos os meses passar uns dias. Era um grupo que integrava técnicos vindos de vários países europeus e técnicos vindos das Nações Unidas em Nova Iorque. Um desses técnicos disse-me uma vez que estavam à procura de alguém para organizar o sistema estatístico e o primeiro recenseamento da população de São Tomé e Príncipe e queriam saber se eu estaria interessado. Falei com a minha mulher e disse que sim, que por um ano estaria disposto a ir e levava a família pois nessa altura tinha uma filha bebé. Foi assim que comecei. Fui para São Tomé por um ano.
Nessa altura, São Tomé estava muito influenciado pela presença cubana.

Estamos a falar em que ano?
Estamos a falar em 1978. O aparecimento de um português à frente de um projeto de estabelecimento do sistema nacional de estatística e do sistema de planeamento de São Tomé era visto pelos cubanos com muita suspeita. Então, eles nomearam uma espécie de acompanhante que, curiosamente, era um cubano extremamente simpático e que se chamava Évora. É evidente que essa coincidência do seu nome de família com a minha terra de naturalidade permitiu-me ter uma relação muito especial não só com ele, mas com o resto da comunidade cubana que tinha muita influência política e ideológica em São Tomé.

Era casado e já tinha uma filha. A sua mulher é portuguesa?
Não. A minha mulher, Christiane, é belga.

Conheceu-a em Bruxelas?
Não. Conheci a Christiane na Avenida da Liberdade, eu era muito novo e ela também. Conheci-a em 1966 ou 1967… Eu estava na altura a fazer um estágio no INEF [Instituto Nacional de Educação Física]. Naquela altura eu era um corredor de velocidade, era uma grande promessa na área dos 100 metros, e ela veio com uma delegação de jovens belgas também ligados ao desporto, mas eu não a conheci no INEF. Nós saíamos ao fim de semana e eu vim para a Avenida da Liberdade onde encontrei o grupo onde ela estava.

Tem essa filha que era muito pequena na altura em que foram para São Tomé e mais outra.
Sim, temos duas filhas. A mais velha está na Bélgica e a mais nova vive em Sevilha. Voltando à experiência de África – São Tomé é a sua primeira experiência no quadro da ONU, mas depois vai acumular várias. Depois de São Tomé, onde ficámos não um ano, mas dois anos e meio, Nova Iorque perguntou-me se eu estaria interessado em abrir um escritório regional do Fundo de População em Maputo, e eu fui para lá em dezembro de 1980. Lembro-me perfeitamente de que cheguei a Maputo quando começou o problema com a Renamo na Gorongosa. Por várias razões, eu tive acesso ao presidente Samora Machel e perguntei-lhe qual devia ser a interpretação daquilo que se estava a passar na Gorongosa, e ele respondeu-me que eram meia dúzia de bandidos e que dentro de uns meses o problema estaria resolvido porque iriam acabar com eles. Lembrome perfeitamente de que quase cinco anos depois, quando saí de Maputo para ir para a República Centro-Africana, fui ver novamente o camarada Samora Machel – eu digo “camarada” porque era assim que o tratava – e lembrei essa nossa primeira conversa – ele também se lembrava, curiosamente, mas ele tinha uma memória excecional – e, nessa altura, a Renamo estava em toda a parte. Aquilo que no final de 1980 era apenas um pequeno foco de rebelião, em 1985, na altura em que eu saí, era um problema nacional.

Sentiu aquele carisma que se atribuía ao Samora Machel? Conheceu muitos líderes africanos, sentiu alguma coisa de diferente neste moçambicano?
Sim, Samora Machel era uma pessoa extremamente interessante porque era uma pessoa de uma grande vivacidade. Era uma pessoa que muito rapidamente passava de um assunto muito sério para uma brincadeira e para um assunto mais ligeiro, e isso fazia que fosse uma pessoa muito atraente. Não havia monotonia e não havia
aborrecimento com o Samora Machel.

Sentia nele algum tipo de hostilidade em relação aos portugueses por sermos antigos colonizadores?
Não, da parte do presidente Machel nunca senti qualquer tipo de hostilidade. Aliás, foi bastante curioso porque em 1981/82, os antigos portugueses, os cidadãos moçambicanos de origem portuguesa ocupavam ainda postos muito importantes, e era muito frequente eu fazer reuniões com dirigentes de vários departamentos em que só havia eu, como português, e os outros como antigos portugueses.

Depois teve uma experiência na África de língua francesa, certo?
Sim. Em 1985, quando estava a terminar a minha missão em Moçambique, recebi duas ofertas da parte das Nações Unidas. Uma, era para ir para o Rio de Janeiro para o mesmo Fundo para a Atividade da População; a outra era para ir para Bangui, na República Centro-Africana. Lembro-me perfeitamente de que, quando nós recebemos esta proposta – ou uma coisa ou outra -, quer a minha mulher quer eu não tínhamos ideia nenhuma de onde era Bangui. Lembro-me de que passámos uma parte do serão com uma lanterna – não havia luz, pois era naquela altura em que estava tudo muito complicado em Maputo e havia cortes frequentíssimos de luz – e com um atlas antigo à procura de Bangui no mapa. Vimos que Bangui era no meio de África, num sítio que nos era totalmente desconhecido. Por outro lado, havia essa oferta para irmos para o Rio de Janeiro. A oferta do Rio de Janeiro era extremamente atraente do ponto de vista das condições de vida, mas nós fizemos um cálculo em termos de – éramos jovens – carreira e pensámos que o impulso seria
muito maior se fôssemos para Bangui.

Como é que a sua mulher adapta a carreira a estar consigo? Ela tem uma carreira paralela?
Ela, em Maputo, ainda conseguiu trabalhar na Embaixada da Bélgica, mas a partir da nossa ida para Bangui ela passou a ser o suporte, digamos assim, acompanhava-me, mas não trabalhava.

Isso acontece muito com os funcionários internacionais, um dos dois tem de fazer uma opção.
É sempre uma questão muito difícil, há sempre um dos dois que tem de se sacrificar porque é impossível fazer uma carreira conjunta, ou então é possível quando se trabalha numa das sedes – Nova Iorque, Genebra, Viena ou Nairobi -, mas quando se anda de um lado para o outro como era o nosso caso, é absolutamente impossível.

E criar duas filhas em África nessas circunstâncias. A segunda nasce em Maputo?
Não, a segunda nasceu no período em que eu ainda estava em São Tomé, mas nasceu em Bruxelas.

Portanto, quando chega a Maputo já tem duas meninas?
Sim, sim. Peggy, a mais nova, tinha então 6 meses. Ela e a Leslie foram depois connosco para Bangui, onde estivemos quatro anos. De Bangui fomos para Banjul, para a Gâmbia, e elas aí já não foram.

Em Bangui elas eram pequenas e andavam na escola?
Sim, sim. Andavam na escola francesa.

Mas elas para a Gâmbia já não vão consigo?
A partir da nossa missão em Bangui vão para um internato em Inglaterra, e passaram toda a sua vida escolar restante no Reino Unido. Foi uma opção muito difícil, devo dizer que foi, provavelmente, a opção mais difícil que nós tivemos de tomar. A mais nova foi para um internato quando tinha 9/10 anos e passou toda a sua vida escolar, o resto da escola primária e a escola secundária, internada em colégios.

Mas sentiu que era a forma de lhes dar alguma estabilidade?
Era a única maneira de lhes garantir uma educação que fosse de alguma qualidade. Elas poderiam ter ido connosco para a Gâmbia, mas não havia condições para garantir uma educação minimamente válida.

Quando as pessoas muitas vezes falam que os diplomatas e os funcionários internacionais têm bons salários, esquecem este tipo de constrangimentos.
Quem não passou por isso não compreende o que significa separar-se dos filhos quando eles são pequenos, no nosso caso, uma tinha 9/10 anos e a outra tinha 12/13. É de facto uma decisão que do ponto de vista da família, do ponto de vista afetivo, é uma decisão muito difícil de tomar. Eu lembro-me de que quando elas vinham ter connosco durante as férias, a emoção de as ver, a emoção de estar com elas, era uma coisa enorme.

Banjul, estamos agora a falar da África anglófona, nova experiência.
Sim, sim. Banjul correu bastante bem, pois eu tinha uma relação excecional com o governo da altura, nós conseguimos fazer alguns programas de desenvolvimento que foram considerados pioneiros no início dos anos 1990. Aliás, foram duas ou três vezes apresentados à comunidade internacional em Genebra. Por causa disso, eu saí de Banjul em 1994, um mês antes do golpe de Estado que lá ocorreu, para dirigir um dos vários programas das Nações Unidas que era o programa da Tanzânia.

Mais um país de língua inglesa.
Exatamente. Uma das razões por que eu fui para a Tanzânia foi o sucesso de Banjul e a outra foi por que era preciso alguém que fosse para lá para se ocupar dos refugiados que estavam a chegar do Ruanda, porque isto foi na altura da crise do Ruanda. Eu chego à Tanzânia quando centenas de milhares de refugiados chegaram ao país. Lembro-me perfeitamente de numa das primeiras visitas que fiz à zona da fronteira ter levado a minha filha mais nova – ela estava de férias – e nós fomos de avioneta de Dar es Salaam até à zona da fronteira, que é bastante longe, e uma das primeiras coisas que fizemos foi ir ver o rio que faz a fronteira com o Ruanda. Uma das primeiras coisas que ela viu, e nessa altura ela tinha 14 anos, foram centenas de corpos a boiarem vindos do Ruanda, todos mortos à catanada. Ela nunca mais se esquecerá.

Esse foi o genocídio dos tutsis pelos hutus. Dos países onde esteve, estou por exemplo a pensar na Serra Leoa de onde chegaram também imagens atrozes – havia aquela prática de cortarem os braços – foi sobretudo aí que esteve envolvido num processo de pacificação?
Exato. Na Serra Leoa o ambiente era diferente porque, por um lado, já se estava num processo de reconciliação nacional, havia ainda alguns focos de insubordinação, eu não diria de rebelião, mas que era preciso resolver. Nós resolvíamos conversando com as pessoas e tendo reuniões com as pessoas, com os jovens rebeldes. Na Serra Leoa foi sobretudo traumatizante ver como é que aquela população tinha sido afetada pela guerra civil, não só em termos das mutilações, mas também em termos da pobreza extrema que se vivia na capital e também em várias partes do país.

Quando fala de reconciliação, aí a presença da ONU é essencial para garantir que aquelas pessoas, que andaram a matar-se umas às outras, parem de o fazer?
Pois, aí a presença das Nações Unidas teve duas funções. Uma delas era garantir a estabilidade e a segurança do país, e essa função foi desempenhada com sucesso; a outra era tentar reconstruir a administração pública e a economia do país, e organizar, digamos assim, um processo político que fosse credível e que levasse à eleição dos novos líderes de uma nova Serra Leoa. Também foi extremamente interessante porque essas eleições em 2007, que eu organizei – aliás a organização começou em 2006 -, tinham dois campos bem definidos, o campo do presidente que era constituído fundamentalmente por gente vinda do sul do país e com uma forte composição étnica e, por outro lado, o campo do principal líder da oposição que era fundamentalmente de gente do norte do país. A minha grande preocupação era fazer que isto não levasse a uma guerra entre as populações do norte e as populações do sul ou a um massacre.

Victor Ângelo com Robert Mugabe

Quando olha agora, passados 13 anos sobre essas eleições, consegue ver que ficou um legado positivo? Pelo menos não se fala de novos conflitos.
A Serra Leoa foi um caso interessante porque foi, provavelmente, um dos primeiros países em África onde as eleições levaram à vitória da oposição, o que era
extremamente raro. Aliás, o presidente Robert Mugabe, com quem eu trabalhei muitos anos, sempre me disse que se houvesse um governo africano que perdesse
as eleições era porque esse governo africano era dirigido por idiotas.

O líder zimbabuano nunca perdeu.
Ele não era idiota, nem nunca perdeu as eleições e sabia como organizá-las.

E digamos que não acabou mal de todo, apesar de ter sido destituído com 93 anos… É uma figura que em 1980 é apresentada como um líder visionário, capaz de fazer um compromisso com os brancos para proteger a possibilidade do Zimbabué, mas depois termina a vida visto como um déspota. Como é que olha para esta personalidade?
Eu trabalhei quatro anos diretamente com Robert Mugabe. Conheci-o bem e à maneira como ele via as coisas. Ele era fundamentalmente uma pessoa que pensava que tinha uma missão histórica e que enquanto fosse vivo seria ele a dirigir o país. A questão do poder era, para ele, uma questão fundamental. A partir do momento em que sentiu que a oposição era mais forte do que o partido do governo, e a partir do momento em que sentiu, no final dos anos 1990, que os zimbabuanos brancos estavam, na grande maioria, a apoiar a oposição, ele não tinha outra solução senão esmagar por um lado o poder económico dos brancos para que não houvesse contribuições financeiras nem contribuições intelectuais por parte da população branca e, por outro lado, tinha de criar todas as condições para que a oposição não ganhasse as eleições. Então, assistimos gradualmente, sobretudo nos anos 2000 e 2001, ao aniquilar de toda a base económica que sustentava a economia mais desenvolvida do Zimbabué que estava controlada pelos brancos e
que, em certa medida, financiava a oposição. A ideia central não era destruir a economia controlada pelos brancos, a ideia principal era destruir a economia que
financiava a oposição que, por acaso, era controlada pelos brancos.

Em termos de ONU, Nova Iorque e Genebra, o lado mais central da organização, também fez parte da sua vida?
Eu estive dois anos e meio em Nova Iorque como diretor das operações para África. Tinha a exclusividade operacional, digamos assim, em relação a África.

Quem era o secretário-geral na altura?
Kofi Annan.

Aí viveu a estrutura centralizada.
Exato. Essa foi, sobretudo, uma experiência que me permitiu conhecer bem como é que funciona o secretariado e como é que funciona a sede. Depois, mais tarde,
quando estive na Serra Leoa e estive como representante especial para outras coisas, percebi bem como funcionava o Conselho de Segurança das Nações Unidas,
que é muito diferente do secretariado e da sede. Ou seja, eu tive a vantagem, ao longo dos anos, de conhecer perfeitamente como funcionava a máquina e depois de
conhecer bastante razoavelmente como funcionava o órgão de decisão que é o Conselho de Segurança.

Estamos no ano em que se celebram os 75 anos da ONU, que é um produto da Segunda Guerra Mundial e, portanto, o Conselho de Segurança e os membros permanentes são os vencedores da guerra. E o poder de veto de qualquer um deles trava qualquer coisa que se queira fazer de transformadora? A solução não seria um alargamento do Conselho de Segurança e acabar com os vetos?
Há duas questões aqui. Por um lado, a da representatividade do Conselho de Segurança, e eu estive muito implicado na discussão e no trabalho da tentativa de mudar a representatividade do Conselho de Segurança na questão do veto. Na altura pensou-se que a queda do Muro de Berlim era o momento certo. Pensou-se que seria possível ter um Conselho de Segurança mais representativo. Surgiram imediatamente vários problemas, nomeadamente quem é que representava África, seria o Egito, seria a Nigéria, seria a África do Sul… quem é que representava a América Latina, seria o México, seria o Brasil…

O Brasil, apesar da dimensão, não é consensual.
Exatamente.

E a Índia também não é consensual na Ásia?
Não, de modo algum. Exatamente. Então, surgiram este tipo de problemas. No caso da Índia lembro-me perfeitamente de que havia uma oposição muito forte de um vizinho da Índia contra a presença desta no Conselho de Segurança de uma maneira permanente. Não estou a falar da Índia com direito a veto, estou a falar só como membro permanente. Existem várias propostas relativas ao alargamento do Conselho de Segurança, mas nenhuma delas tem asas para voar.

A Economist trazia um trabalho há poucos dias sobre o direito de veto, que estava a ser pouco usado a seguir à queda do Muro de Berlim e que, nos últimos anos, tem sido muito usado. Isso significa que a ONU está a ficar paralisada?
O Conselho de Segurança, neste momento, está paralisado. A verdade é essa. Esse é um dos grandes problemas, atualmente, das Nações Unidas, da credibilidade das Nações Unidas. As divisões no seio do Conselho de Segurança são enormes, sobretudo em relação aos grandes conflitos. Nomeadamente, em relação à Síria. Vários direitos de veto foram exercidos no que diz respeito à situação e à proposta de solução da crise da Síria; a mesma coisa em relação à Líbia e, também, em relação a outras questões.

Sobretudo a China e a Rússia contribuem com muitos vetos. Vê alguma explicação para essa insistência?
A situação do Conselho de Segurança mudou radicalmente em 2011, quando foi o início da crise na Líbia. A resolução foi aprovada naquela altura pelos cinco membros permanentes. Depois, quando foi levada à prática, nomeadamente pelos europeus e através da intervenção militar de alguns países da NATO, foi uma interpretação e uma implementação que foram consideradas abusivas por parte da Rússia e, certamente, também por parte da China, e isso dividiu bastante o Conselho de Segurança. Desde então, desde 2011, temos verificado que o Conselho de Segurança, em relação às grandes questões internacionais, está muito dividido e eu diria mesmo que está paralisado. Eu continuo a considerar que o início da crise na Líbia foi um momento de viragem fundamental nas relações internacionais.

Faz o contraponto ao período entre a queda do Muro de Berlim e esse momento e o depois?
É isso, exatamente. Devo dizer que em 2011 e no período anterior havia uma esperança de alguma cooperação, nomeadamente com a Rússia, e eu lembro-me de que um dos exercícios mais importantes da Aliança Atlântica, que era o exercício para formação dos comandantes das diferentes operações, convidou comandantes russos a participarem nesse exercício. Depois, a seguir a 2011 há uma viragem total nas relações entre a Rússia e o Ocidente, viragem essa que levou a que a Rússia já não participasse nesse tipo de iniciativas de formação. A crise da Líbia em 2011 não só levou a uma alteração fundamental nesse relacionamento, como também houve uma mudança de política fundamental da China em relação a África, ou seja, a política chinesa em relação a África mudou radicalmente depois da experiência de 2011 e de tudo o que lhes aconteceu na Líbia. Finalmente, é o começo da desestabilização da região do Sahel e o começo do aparecimento do terrorismo fundamentalista no Sahel e na África Ocidental.

Victor Ângelo mediou muitos conflitos em África

Porque é que a questão da Líbia é um momento de viragem também para a China?
Porque a China estava fortemente investida na Líbia e, de repente, foi apanhada de surpresa porque os investimentos que tinha feito no país, não só foram todos por
água abaixo, como a própria China não tinha capacidade na área da segurança para poder sustentar e para poder defender esses investimentos. A partir daí, a partir de
2011, a China resolve que quando investe fortemente num determinado país, também deve investir paralelamente na área da segurança, ou seja, o investimento deve ser acompanhado por uma intervenção de defesa e segurança de modo que os dois pilares se sustentem.

Do ponto de vista do sistema da ONU, a China passou, desde então, a ser o segundo maior contribuinte e também contribui muito mais com capacetes
azuis. Está tudo relacionado?

É evidente. Tudo isso faz parte do mesmo pacote de decisões e da mesma política que a China adotou em relação à sua presença internacional, nomeadamente na sua presença em África.

Estas guerras políticas dentro do Conselho de Segurança não são novidade, mas com a pandemia percebeu-se também que mesmo uma agência técnica como a OMS podia ser palco de disputa entre os Estados Unidos e a China. A OMS sai fragilizada desta pandemia?
Em certa medida sim, pois a OMS é fundamentalmente uma agência técnica dentro do sistema das Nações Unidas e, de repente, foi apanhada no emaranhado das tensões diplomáticas que existem ao nível internacional. Ou seja, o jogo político internacional apanhou, digamos assim, a OMS, que era uma agência que não estava preparada para tratar destas questões.

Esteve mais de três décadas na ONU e trabalhou com vários secretáriosgerais. Foi uma surpresa António Guterres surgir no bloco dos favoritos e depois chegar a secretário-geral?
António Guterres foi eleito secretário-geral quando eu já tinha saído. Em certa medida, a vitória foi uma surpresa. Uma surpresa por várias razões, por um lado porque havia uma espécie de convenção não escrita que diria que o SecretariadoGeral poderia ser atribuído a alguém do leste da Europa e, por outro lado, em 2016, na altura em que ele foi eleito, havia uma enorme pressão para que o novo secretário-geral das Nações Unidas fosse uma mulher. Essa pressão vinha de várias fontes, de gente muito influente, e o facto de António Guterres conseguir ser eleito só mostra evidentemente que ele era um candidato excecional.

Para se chegar a secretário-geral, apesar daquela votação de todos os membros do Conselho de Segurança, é essencial ser-se consensual entre os cinco membros permanentes?
É fundamental, pelo menos, não ter a oposição de nenhum dos cinco membros permanentes do Conselho de Segurança. O então comissário das Nações Unidas para os Refugiados tinha conseguido manter um certo equilíbrio em relação a esses cinco membros permanentes e, mais tarde, quando ele faz a apresentação em Nova Iorque da sua candidatura, foi extremamente habilidoso na maneira como fez o seu discurso, como apresentou as suas ideias e não apareceu a nenhum dos cinco membros permanentes como um candidato que pudesse pôr em causa os interesses desses membros.